AMORES CELEBRES: JORGE BOULANGER E MARGARIDA


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 17 de maio de 1953

Neste texto foi mantida a grafia original


Jorge Boulanger foi general e famoso politico francês, tendo ocupado o posto de ministro da Guerra. Imiscuiu-se em intrigas politicas e viu-se envolvido num ruidoso e singular processo. Boulanger nasceu em Bruxelas no ano de 1837 e suicidou-se em 1891.

A praça Saint-Germain-des-Prés tem, à hora do crepusculo, um céu cor heliotronica. É uma praça que conserva certo encanto provinciano, certa tranquilidade penetrante e feliz; é uma pausa no centro de Paris, para onde acorrem os que voltam de uma viagem, os solitarios, os enamorados e os poetas.
Corria o ano de 1888 e era o general Jorge Boulanger o homem que concentrava em sua pessoa os problemas politicos em que se debatia a republica. Há um momento em que os homens sobre os quais pesam grandes responsabilidades necessitam alhear-se um pouco, caminhar sob o céu sem que ninguem os reconheça nem procure influir sobre suas futuras resoluções.

Um Acidente com Consequencias

E foi isto o que fez Jorge Boulanger numa tarde de outono, quando as folhas caidas estendiam um tapete dourado a seus pés. Metido em sua capa cinzenta, fumando o cachimbo, com o passo grave e repousado de um homem de 50 anos, Boulanger entrou na praça enquanto continuava envolto em seus pensamentos.
— "Basta-me dar uma ordem e a resolução será feita" —dizia a si mesmo, enquanto cruzava a rua com um ar ausente.
— "Oh... cuidado!" —ouviu, ao mesmo tempo que tinha a sensação de que algo ruidoso lhe vinha em cima. Quase não teve tempo de levantar a cabeça e só por milagre aquela carruagem tirada por dois cavalos não o atropelou.
— "Machucou-se muito?" —perguntou-lhe, um segundo depois, uma mulher cuja formosa cabeça assomava pela portinhola.
— "Oh, não!... felizmente não foi nada" —respondeu Boulanger!
— "Mas sua mão está sangrando!"
— "É preciso olhar para a frente!" —vociferou o cocheiro, sem poder dominar sua colera.
— "Cale-se Francois. Cuide de seus cavalos —disse a jovem. E ajude ao cavalheiro a subir. Em casa o trataremos."
Boulanger se recusou, mas tão doce e persuasiva era o tom da jovem, que não pôde deixar de atender.
Não tardou em apresentar-se a jovem: era ela a viscondessa Margarida de Bonnemains. Sua figura irradiava esse encanto especial das mulheres educadas sobriamente, com ar aristocratico em cada movimento. Era extremamente palida, de pele translucida e dominadores olhos claros, que mudavam de tonalidade segundo a luz do ambiente em que se achava.
Apenas foi pensado o ferimento de Jorge Boulanger, este se dispôs a sair. Mas, quando alguns minutos mais tarde, voltava caminhando em direção à sua casa, já não podia dizer que fosse o mesmo homem. Será estranho acreditar que um homem grave, maduro, como era o general, pudesse sofrer uma perturbação tão profunda como a que experimentava pelo conhecimento repentino de uma mulher. Não era já um adolescente incapaz de resistir aos embates do amor, nem um jovem exposto pela inexperiencia da paixão. No entanto, o conhecimento de Margarida de Bonnemains lhe havia apresentado uma interrogação que se torna fatal quando se dá com um homem consciente e responsavel:
— "Não terei vivido sempre enganado? Não será necessario que, agora, reconheça o meu erro e me entregue, inteiramente, a este flamante sentimento que acaba de nascer em mim?"

Um Casal Chega ao Havre

A partir daquela tarde acidental, a politica deixou de ter importancia para ele, e, militar aguerrido, sempre preocupado com o sentimento do dever, pensou na debil viscondessa que era tenue, apagada, terna e leve como uma aparição.
Os acontecimentos se precipitaram porque se a viscondessa tinha causado uma forte impressão ao general, não menor foi a impressão que este causou no espirito da jovem.
Possivelmente ela sempre havia pensado que ia enamorar-se de um homem apenas um pouco mais velho do que ela, de um jovem de aspirações abstratas, capaz de enviar-lhe bilhetes de amor. Por que, então, diante da grave maturidade de Boulanger caía irremediavelmente vencida?
A estranha paixão fulminante não tardou a ter consequencias e, ante o assombro de Paris, o general Boulanger desapareceu do cenario politico, quando sua presença era reclamada com mais insistencia. Numa manhã brumosa, numa carruagem guiada misteriosamente, chegou um casal ao Havre. Alojou-se em uma discreta casinha perto do porto, que, na vespera, fora alugada por um amigo intimo do general. Era uma casa simples, com postigos azuis e um pequeno jardim na frente; um pequeno jardim triste e abandonado.
Ambos chegaram ali ocultando-se de todos, com as mão entrelaçadas como estudantes furtivos que se amam pela primeira vez. Mas, evidentemente, os grandes homens não tem vida privada. O silencio não os isolou totalmente e Paris, tão condescendente nos assuntos de amor, foi desta feita um juiz severo e implacavel, a tal ponto que o apaixonado general teve de abandonar a França e refugiar-se na Belgica.
Nem o abandono da carreira, nem o exilio, foram problemas para o Jorge Boulanger; começara a compreender que o verdadeiro sentido de sua vida era, justamente, amar Margarida acima de tudo. Frequentemente, lhe chegavam da França cartas com noticias e censuras. Ele as rasgava depois de lidas e procurava evitar que sua amada se aborrecesse. Graças ao seu zelo e dedicação, foram felizes durante uns cinco anos, mais ou menos.

A TERNURA COMO ÚNICA VERDADE

Até que um dia Margarida caiu enferma, aparentemente de mal passageiro; no entanto, começaram a passar os dias e a recuperação se tornou dificil. Então, foi necessario consultar um medico.
— "Anemia... anemia e muito avançada" - disse o medico, ao despedir-se de Boulanger, no jardim.
Como pareceram tristes e escuras as nuvens nesse momento ao general! Que mensagens queriam transmitir os lirios?
Uma ansiedade devoradoura se apoderou então dele, como se a única coisa importante fosse amar e amar acima de tudo, até o fim. Ao voltar ao quarto, Margarida, segurando-lhe as mãos disse:
— "Eu já sabia. Mas não quis que se preocupasse. Temos sido muito felizes e assim continuaremos enquanto eu viver. Não tema, meu pobre Jorge. Ainda não me irei. Talvez no proximo inverno..."
— "Não fale assim, meu amor. Bem sabe que eu não poderia continuar sem você!"
E beijaram-se. Beijaram-se com a intensidade do desespero, com o fervor dos que se querem muito e sabem que lhes resta pouco tempo, que cada minuto não volta mais e que a ternura é a única verdade eterna...
A partir daquele momento o amor de Jorge e Margarida tomou uma dimensão distinta. Condenados como estavam à separação, para eles valia tanto um minuto como a propria eternidade. Juntos se embriagaram com beijos e caricias, com palavras, com promessas e juramentos. Às vezes, em meio das tardes ou das noites ela costumava fazer reflexões estranhas e encantadoras ao mesmo tempo. Costumava dizer-lhe:
— "Como sou feliz, Jorge! Percebe que, para estarmos juntos como agora, foi preciso produzir-se quase um milagre historico? Coincidimos no espaço de tempo, que é a forma mais dificil de coincidir. Você poderia ter nascido em outras epocas, na Grecia ou em Roma... Podiamos ter-nos desencontrados por milhares de anos, e mesmo nascendo na mesma epoca, eu poderia viver na França e você no Brasil, por exemplo. No entanto, tudo coincidiu para que nos encontrassemos, uma tarde, acidentalmente, na praça de Saint-Germain-des-Prés."
— "Minha querida Margarida!... Nessa tarde nossas vidas começaram a caminhar juntas, e nada nem ninguem poderá separá-las."
— "Não, não. Talvez..."
— "Nada. Eu juro que nem o que você pensa terá força suficiente para nos separar" —disse, em tom emocionado, Jorge Boulanger.

A MORTE

Era uma tarde descolorida e intensamente fria. Com os olhos cravados na janela que dava para o pequeno jardim. Margarida agonizava segurando a mão de Jorge. Este, mordendo os labios, prodigalizava-lhe suas ultimas caricias sobre os sedosos cabelos que caiam abandonados sobre a almofada. Estavam frias as mãos e a fronte da enferma. Palida, de uma brancura quase azulada, seu rosto começou a perfilar-se definitivamente. Somente um suave sorriso ficou nos seus labios, e um fulgor brilhante nos olhos, com o qual continuou a falar a Boulanger quando seus labios não podiam articular palavra. Sua vida se apagou sem lagrimas, como convem aos que viveram sem ruido.
Depois, o acolhedor cemiterio, intimo, com arvores e erva fresca. Um cemiterio discreto, nada lugubre, que os passaros costumavam alegrar com seus cantos. Numa tumba humilde, democratica, foi enterrada a viscondessa de Bonnemains. Um olmo lhe servia de guarda, amistosamente, ao lado.
Todas as tardes, Jorge Boulanger, o enamorado inconsolavel, visitava o lugar onde ela repousava. Trazia em suas mãos um ramos de rosas vermelhas com grande cuidado, como se aquelas flores pudesse quebrar-se.
— "Pobre Margarida! —exclamava. Arrebatada assim de meus braços, em plena juventude. Não podia ser eu, que era o mais velho? Por que a vida nos leva sempre o que mais queremos e pretende consolar-nos com a resignação?" E, depois mirando o olmo, acrescentava: "Cuide de minha amada na minha ausencia. Ela é muito boa e merece nosso desvelo".
Depois de deixar as rosas sobre a sepultura, voltava com passos lentos e meditados, com os passos caracteristicos dos que não têm pressa de chegar. Lá fora, a vida continuava como sempre: reuniões, discursos, salarios, entrevistas, encontros, despedidas, negocios... Tudo esteril, tudo vão diante do problema derradeiro e definitivo.
A medida que transcorriam os dias, as marcas do sofrimento se tornavam mais notorias no rosto de Boulanger. Numa carta enviada a um amigo, resume seu calvario desta maNeira: "O que estou sofrendo é demasiado para um homem. Ah, se houvesse uma batalha ou uma guerra em alguma parte, com que ganas iria para ela!"

"OS CABELOS SOBRE O PEITO"

Transcorreu o tempo de um modo monotono e triste para o general. Durante boa parte do dia permanecia escrevendo. Os amigos de Paris, seus correligionarios, seus adeptos, receberam instruções expressas acerca do que ele pensava em materia politica. Tudo previu. Com prolixidade de cientista fez conhecer seu pensamento e procurou solucionar de maneira adequada os diversos problemas que havia abandonado ao conhecer a doce Margarida.
Pouco depois, resolveu todas as suas questões financeiras e, finalmente, escreveu seu testamento pessoal.
— "Já está tudo pronto —disse, enquanto selava e lacrava o envelope. Afinal, concluí tudo o que me ligava a este mundo de sofrimentos."
Seguiu pela mesma rua de sempre: deteve-se diante da habitual loja de flores. A florista, ao vê-lo, não pronunciou uma só palavra e envolveu cuidadosamente o ramo de rosas vermelhas. Apenas trocaram as seguinte palavras:
— "Boa tarde, senhor".
— "Boa tarde."
Jorge Boulanger tomou o caminho da avenida que conduzia ao cemiterio. As fontes cantavam solitarias no passeio; traçavam caprichosa geometria os passaros no céu; ao longe, um sino metalizava o ar com seu repique ritmado.
Chegou à mesma hora de sempre diante do tumulo em que repousavam os restos de Margarida. Havia no seu rosto uma expressão de alivio e tranquilidade; colocou o ramo de rosas cuidadosamente na floreira. Depois fixou a olhar num ponto perdido no espaço. Passaram-se assim alguns minutos e, depois, como quem vai fazer algo inexoravel, tirou de dentro de sua roupa um revolver. Dessa maneira ia unir-se a sua querida companheira, que, certamente, o esperava no outro mundo.
Quando os seus parentes mais proximos abriram o testamento, emudeceram de emoção ao ler estas frases peremptorias e belas: — "Quero que ponham um retrato de Margarida sobre o meu ataude e sobre o meu peito um cacho de seus cabelos, que está no bolso direito de minha roupa. Sobre a lápide deve ser gravada a seguinte inscrição: "Não sei como pude viver dois meses e meio sem teu amor!"

Anibal de la Vharga



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