2001: UMA ODISSEIA DA TERRA
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 1972
|
|
Arthur C. Clarke
O ano 2001 está mais ou menos tão longe de nós
como a decada de 1890, em termos de transformações que
podemos esperar. Os anos de 1890 foram interessantes porque foi em
torno da virada do seculo que uma grande revolução teve
lugar, no estilo de vida de muita gente. Os elementos daquela revolução
foram poucos: agua encanada, encanamento interno, gás de cozinha
e calefação, luz eletrica e telefone.
Quando se pensa o que tudo isto representou para nós, pode-se
realmente imaginar qualquer revolução tecnica que possa
ter um efeito tão grande no conforto do futuro? Bem, poderá
ainda haver algumas grandes transformações no lar e
fora dele.
OS ALIMENTOS. Houve epoca em que todas as unidades familiares tinham
que ser virtualmente auto-suficientes, fazendo tudo aquilo de que
necessitavam. Mas essas coisas foram varridas pela produção
em massa. O unico processo manufatureiro que ainda permanece no lar
é a preparação da comida.
A cozinha já está condenada pelos alimentos congelados.
Dentro de uma decada ou mais a gente poderá comprar uma especie
de automato domestico no qual os alimentos do mês serão
conservados congelados em pacotes de cerca de 45 quilos, para uma
familia media. Isso pode não parecer muito, mas 90 por cento
da maioria dos alimentos é água: 90 por cento de você
é água. Por que é que voce há de pagar
por isso, se voce simplesmente pode acrescentar agua nos alimentos,
como fazem atualmente os astronautas? Voce preparará a refeição
que quiser, acrescentando agua, e o alimento será reconstituido
e emergirá perfeitamente cozido em cerca de 10 minutos.
A produção de alimentos naturais é tão
ineficiente que provavelmente será totalmente anti economica,
se não proibida por lei, no proximo seculo. São precisos
cerca de 4,5 quilos de forragem para se produzir meio quilo de carne.
Isso significa que para cada homem que come carne dez homens têm
que passar fome, como acontece na maior parte deste grande planeta.
Bois, carneiros e porcos estão movendo o processo fabril com
uma eficiencia de menos de 10 por cento. Nós não podemos
gastar boa terra com eles. Talvez possamos continuar a produção
de carne natural em terras marginais, usando tipos novos de animais:
antilopes, tapiras ou hipopotamos. Sim, há o mar. No mar nós
somos ainda o que eramos por toda a parte na terra, há alguns
milhares de anos atrás: caçadores primitivos. Devemos
desenvolver tanto quanto possivel o equivalente às tecnicas
da lavoura no mar, que afinal cobre três quartas partes do nosso
planeta.
Prevejo que a principal arremetida na produção de alimentos
durante o seculo 21 será sobre os materiais não vivos,
inorganicos. Li num jornal de Londres que caminhamos para a produção
de um bife sintetico que aparentemente será mais nutritivo
do que o bife existente agora, e bem mais barato. Os franceses tambem
estão desenvolvendo tipos de micro-organismos que podem tratar
e converter o petroleo em proteinas.
Mais espaço. Essa especie de coisas vai transformar a agricultura
em algo diferente do que é hoje. A agricultura é uma
invenção recente da especie humana. Tem só uns
cinco ou seis mil anos, e talvez esteja chegando ao fim.
Um dos resultados disso é a liberação de áreas
de terra gigantescas. Que é que faremos com essas terras? Espero
sinceramente que possamos reverter às selvas. Precisamos da
selva, por motivos psicologicos e fisiologicos. São precisos
25 pés quadrados (cerca de 2,3 metros quadrados) de gramado
para regenerar o ar que um ser humano precisa. Que é que estamos
fazendo para manter o sistema de vida de nosso planeta, a nossa "Nave
Especial Terra", com esses parques de estacionamentos e com as
estradas?
Cada vez que se destroi 25 pés quadrados de gramado, um homem
a menos pode respirar. Assim, espero que possa haver mais espaço
aberto no mundo do futuro. Viveremos bem nos matos, se quisermos,
em virtude de um desenvolvimento tecnico muito importante, que será
um sub-produto do programa especial: o desenvolvimento de economias
e ecologias fechadas.
Para as grandes jornadas no espaço, para as bases na lua e
nos planetas, teremos que desenvolver economias nas quais todos os
residuos serão reprocessados. Estão sendo desenvolvidos
equipamentos que custam milhões e que converterão nossos
residuos em alimentos novamente. Isso, afinal, é o que fazem
os agricultores, no ciclo do campo para a cozinha e da cozinha para
o campo, um ciclo sem fim no passado, movido pela energia solar.
O arquiteto norte-americano R. Buckminster Fuller desenvolveu muitas
dessas idéias plenamente. Ele imaginou um lar auto-suficiente
que produzirá todos os seus proprios alimentos indefinidamente.
A casa não será fundada no solo e não necessitará
de encanamento de agua. É uma casa que pode ir para onde quiser.
Teremos muito mais mobilidade no futuro.
A casa de hoje ainda é feita de materiais da Idade da Pedra
e já estamos obtendo novas substancias que são mais
leves do que o aço e tão fortes como o aço. De
fato, o aspecto mais divertido de todas as idéias de Fuller
é seu conceito de construções como abobadas geodesicas.
Podem ser feitas em tamanhos quase ilimitados. Quando essas grandes
abobadas tiverem mais de 300 metros de lado a lado, acontecerá
algo interessante: o peso do ar no interior será muito maior
do que o peso da estrutura. Aí então, se a temperatura
interior subir alguns graus, a abobada pode se transformar em um balão
de ar quente e levantar vôo. Assim, poderemos ter cidades migratorias,
que irão para o norte no verão e para o sul no inverno,
ou para qualquer outro lugar. Só para mudar de cenario.
Mesmo hoje há ainda muitas areas desabitadas deste planeta
nas quais poderiam existir e prosperar comunidades assim, usando a
nossa tecnologia. Elas são atualmente desabitadas porque não
podemos criar nenhuma comida por lá.
A comunicação revolucionária. A cultura planetaria
movel que vai chegar, demandará comunicações
universais instantaneas. Estamos agora na vespera da maior revolução
da historia no campo das comunicações. Há seis
anos atrás foi lançado o primeiro "Comsat"
comercial: o "U.S. Earlybird", que ainda presta serviços,
ainda estão em orbita. Ele pode atender 240 circuitos telefonicos
simultaneamente. O Intelsat IV, em orbita, pode atender 6.000 circuitos
simultaneos.
No fim deste seculo poderão estar em orbita satelites suficientes
para toda a raça humana poder falar entre si. Precisaremos
desses recursos. Na proxima decada chegará aos lares um aparelho
que talvez seja mais revolucionario que a televisão, o radio
ou mesmo o telefone; isso porque, em certo sentido, ele substituirá
tudo isso. Será um tipo de console de comunicações
com video, camara, linotipo, computador e, talvez, um rapido copiador
que permitirá gravar tudo o que aparecer no video.
O maior impacto dos satelites de comunicações é
o que, espero, deverá começar dentro de poucos anos.
Os atuais Comsats são muito fracos, têm baixa potencia,
e só podem ser captados por gigantescas estações
terrestres; só podem mandar suas mensagens telefonicas ou televisas
para redes locais de telefones ou sistemas de TV.
Mas agora já é possivel lançar satelites suficientemente
poderosos para serem recebidos por simples aparelhos receptores que
se pode ter em casa, munidos de uma antena extra que custará
um par de centenas de dolares. Isso quer dizer que o mundo todo pode
ser aberto à comunicação, inclusive os países
onde hoje não há nada.
A India e os Estados Unidos assinaram contrato para o lançamento
de um salelite que transmitirá programas educacionais sobre
planejamento familiar e melhoria de tecnicas agricolas, diretamente
para meio milhão de vilas contendo 600 milhões de habitantes.
As autoridades responsaveis acham que talvez o unico meio de se resolver
esses dois problemas na India será através de satelites
de comunicação.
Há pessoas bem intencionadas, mas ignorantes, que perguntam:
"Por que gastar tanto dinheiro no espaço se há
problemas aqui na Terra que ainda não foram resolvidos?"
Muitos dos piores problemas da Terra só podem ser resolvidos
através do espaço. De fato, um dos empregos mais prometedores
dos satelites será na educação. Com os satelites
pode-se prover 12 canais de TV em cores para cada escola no Brasil
ou no Mexico. É uma questão particularmente simples
nos lugares onde há uma só lingua ou duas. Na India,
onde há 14 linguas, o problema é mais dificil. De qualquer
forma pode-se providenciar 12 canais para cada escola na India ao
custo de 1 dolar anual por aluno. Nada é comparavel a isso
nem tão barato.
O Impacto. O impacto social desses "broadcasts" no espaço,
que abrirão o mundo inteiro para todas as formas de comunicação
nas proximas decadas, será revolucionário. Seu impacto
linguístico poderá vir a ser esmagador. Mais do que
isso: posso ver o dia em que, por exemplo, se o maior cirurgião
de cerebros ou do coração do mundo resolver viver em
Taiti ou em Bali, poderá morar lá e operar pacientes
de qualquer lugar do mundo sem deixar sua casa, através de
aparelhos de comunicação ligados a manipuladores remotos
que já estarão em uso nos estabelecimentos de energia
atomica.
Alguns desses micro-manipuladores são tão sensiveis
que podem operar celulas vivas singulares. Eles podem remover o apendice
de uma bacteria, se ela tiver apendice.
Quando os homens puderem se encontrar através do toque de um
botão - coisa que será mais barata e mais conveniente
do que encontrar um taxi em dia de chuva - eles escolherão
um estilo de vida mais facil, mais saudavel e mais eficiente. Haverá
pequenas cidades ou grandes metropoles, mas as contravalações
desaparecerão gradualmente, devagar, porque tijolos e argamassa
têm uma tremenda inercia e representam um enorme investimento
de capital.
"Dinossauros" da ultima era. Quase não tenho duvida
de que haverá maiores cidades no ano 2001 do que agora. Mas
elas serão "dinossauros" na sua ultima era de gigantismo.
Um seculo mais tarde só haverá ossos, a não ser
que a explosão demografica não possa ser controlada.
Nesse caso o mundo inteiro se transformará numa cidade em ebulição.
E isso não durará muito.
Embora a ciencia medica possa manter à distancia esse velho
regulador, a Morte Negra, a natureza se incumbirá de restabelecer
o equilibrio. As pragas da mente são piores do que as pragas
do corpo, e a violencia sem sentido, tão cruel em tantas comunidades,
poderá vir a ser um suave aperitivo na psicologia das futuras
super-turbas.
Agora todos aceitam a necessidade do controle populacional, apesar
de nem sempre para seu proprio país, mas muito pouco se tem
feito para se chegar aos objetivos. Isso envolve respostas muito dificeis.
Atualmente poderiamos suportar uma população muito maior
do que a atual num novo nivel de vida: mas devemos? Num mundo de comunicações
instantaneas e de transportes rapidos, em que todos somos vizinhos,
há alguma vantagem numa população de alguns milhões
a mais?
A resposta, é claro, depende do ponto de vista religioso e
filosofico de cada um, acerca da natureza da vida.
H. G. Wells disse certa vez que a historia futura será uma
corrida entre a educação e a catastrofe. Na corrida
contra a catastrofe, sobre a qual ele nos preveniu há tanto
tempo, a ultima etapa já começou. Se perdermos, o mundo
do ano 2001 será como no nosso, com seus problemas, maleficos
e vicios aumentados. Mas se ganharmos o ano 2001 poderá marcar
a grande linha divisoria entre barbarismo e civilização.
Com alguma sorte e muito trabalho, nossos filhos terão uma
chance de viver para verem o final da Idade Escura.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|