PORTINARI VENCE A RESISTENCIA DO CLERO
Apresentação e benção das telas
do famoso pintor na igreja-matriz de Batatais - Serenados os animos
na paz do Senhor Bom Jesus da Cana Verde - A reação
popular - "Não houve recuo", afirma o artista -
"Não fiz concessões nem de ordem politica, nem
de ordem artistica" - "Os criticos só servem para
atrapalhar" - Uma Pampulha diferente.
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Publicado
na Folha da Noite, segunda-feira, 16 de março de 1953
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Neste texto foi mantida a grafia original
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BATATAIS, 14 (Dos enviados especiais) - Finalmente, os animos
serenados na paz de São Bom Jesus da Cana Verde, procedeu-se,
na tarde de hoje, como parte principal das comemorações
do 114o aniversario da elevação da Freguesia de Batatais
à categoria de Vila, à inauguração da
Igreja Matriz e apresentação das telas de Portinari.
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A
solenidade |
A solenidade foi iniciada às 15h30 na entrada da Igreja que
se situa no centro do belo jardim onde as mãos de um imaginoso
jardineiro transformaram plantas em animais. Presentes cerca de duas
mil pessoas, o vigario da paroquia, conego Mario da Cunha Sarmento,
saudou as autoridades e falou no papel que através da Historia
desempenhava a Igreja como protetora das artes. O sr. José
Arantes Junqueira, presidente da Comissão de Obras da Igreja
Matriz, procedeu à entrega do templo, saudando o famoso pintor,
nascido na Fazenda Santa Rosa, no Municipio de Batatais, que agora,
com o seu reconhecido talento, vinha decorar a igreja onde fora batizado.
O prefeito Alberto Gaspar Gomes, em nome do povo, agradeceu os trabalhos
tão bem conduzidos a termo pela Comissão de Obras. Usou
da palavra, a seguir, dom Luís Amaral Mousinho, bispo diocesano
de Ribeirão Preto, e, por fim, na qualidade de representante
do presidente da Republica, o major Herman Santiago da Costa.
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As
telas |
Terminados os discursos, o bispo dom Luís Mousinho procedeu
à benção das 14 telas, formando 7 conjuntos,
assim discriminados: "São Bom Jesus da Cana Verde",
conjunto de cinco telas, medindo 5 por 4 metros, no altar-mor, vendo-se,
ao centro, Cristo durante o julgamento; à esquerda e à
direita, os Apostolos; na parte superior, numa tela em semicirculo,
o Divino Espirito Santo; e, na parte inferior, o Tumulo de Jesus,
guardado por dois anjos. "Nossa Senhora da Aparecida", conjunto
de quatro quadros, que no seu todo mede 1m70 por 1m50, situado na
ala direita do templo, representando, ao centro, Nossa Senhora da
Aparecida; à direita e à esquerda, os "Seis Milagres";
e, ao alto, em semicirculo, uma tela representando o "Santuario
da Aparecida". Na ala esquerda, "A Transfiguração
de Jesus", um quadro de 3m50. Ainda no lado esquerdo do templo,
estão "A Sagrada Familia", quadro de 2m10 por 1m90;
"A Fuga para o Egito", com as mesmas medidas do anterior;
e "O Batismo de Jesus", de 3m50 por 2m50. Novamente na ala
direita, logo à entrada, está o "São Sebastião",
cujas medidas são as mesmas do "Batismo de Jesus".
De acordo com a escritura hoje assinada, a doação das
telas de Portinari à Igreja Matriz de Batatais foi feita pela
Comissão de Obras, com clausulas de impenhorabilidade, inamovibilidade
e guarda.
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Reação
popular |
Ao som das musicas sacras, executadas pelo novo orgão da Matriz,
milhares de pessoas, desta e de outras cidades, desfilaram ante as
telas luminosas, transparentes, de Candido Portinari, que ali se achava
com sua esposa e seu pai, residente em Brodosqui, a 12 quilometros
desta cidade.
A curiosidade, aumentada pela obstinada resistencia do conego Sarmento
(desde o inicio o padre se opôs aos desejos da Comissão
de Obras de contratar Portinari), foi finalmente vencida pela atitude
do proprio bispo dom Luís Mousinho, que durante algum tempo
se revelara contrario ao convite a Portinari, uma vez que fora candidato
a senador pelos comunistas e autor das combatidas pinturas da Igreja
de Pampulha, em Belo Horizonte; pela fama do pintor e por outros fatores,
havia criado uma atmosfera de ansiosa expectativa.
Agora, ali estavam os quadros. Diferentes dos da Pampulha, sem as
deformações tão criticadas pelos inimigos da
arte moderna, enfim, um Portinari novo, inesperado, despido de escandalos,
em paz com a religião, não obstante ateu confesso, e
mesmo tradicional na concepção das cenas biblicas.
Pode-se afirmar que a grande parte gostou dos quadros, da luminosidade
e transparencia das suas figuras. Após o grande silencio inicial,
as opiniões começaram a manifestar-se. Alguns diziam
não compreender; outros criticavam pormenores. Houve quem exigisse
sangue das feridas de São Sebastião. Durante o resto
do dia, Batatais não falou noutra coisa. O certo é que
a apresentação das telas do conhecido pintor erigiu-se
em acontecimento religioso, artistico, social, literario e politico.
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"Não
houve recuo" |
O reporter entrevistou Portinari, algumas horas antes da solenidade,
em sua residencia de Brodosqui, uma casa terrea, ampla e confortavel,
antiga, cercada de flores e arvores, situada numa praça pobre,
em cujo centro fica a Igreja de Santo Antonio, com o santo, pintado
por Candido Portinari, no altar-mor.
Candido, o segundo dos onze filhos do casal Portinari, está
bem humorado. Muitas vezes, principalmente quando trabalha, fica terrivel,
mas hoje é dia de estar alegre. Está com os pais, os
irmãos, a esposa, menos o filho ("ele nasceu na praia
e não pode ficar longe do mar; voltou ontem para o Rio), contente
com a obra que realizou e que dentro em pouco será apresentada
ao publico. Pequeno, os olhos que são uma mistura de azul,
cinza e verde, muito vivos, atrás dos oculos os cabelos castanhos,
ralos e cuidadosamente penteados, diz:
"Como sempre, fiz o melhor que pude. Mas, quem vai julgar é
o publico. Não fiz concessões nem de ordem politica,
nem de ordem artistica. Não houve, pois, como querem alguns
criticos, recuo de nenhuma natureza. Trabalhei com absoluta liberdade
na realização dos quadros. Aliás, devo assinalar
que a Comissão das Obras da Matriz, que me havia convidado
para decorar a igreja, resistiu bravamente a todas as tentativas de
perturbar essa liberdade e garantiu o compromisso que assumira comigo
nesse sentido."
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Os
criticos só atrapalham |
Portinari é um homem de maneiras e fala simples:
"Eu nada entendo de "ismos". Acho que o pintor deve
concentrar-se em sua obra. Deve fazer, com sinceridade, o melhor que
pode e não ligar para mais nada. Apontam mudanças em
mim; claro que tenho de mudar; sempre estudando e pesquisando, não
posso deixar de apresentar em 1953 um desenvolvimento tecnico maior
do que em 1920. Houve epoca em que eu usava deformar as figuras; hoje,
acho que a deformação nada mais era do que uma tentativa
de dar expansão ao que desejava exprimir sem encontrar uma
forma adequada. Agora, consigo mais facil e adequadamente realizar
o que sinto, graças a um apuro maior da minha tecnica. Mas
chegam os criticos e dizem uma porção de coisas, muitas
das quais não entendo. É sempre assim: o pintor pinta
e depois vem a critica e estabelece as teorias. Sabe de uma coisa?
Sou pintor e quero que me deixem pintar; os criticos só servem
para atrapalhar..."
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Uma
Pampulha diferente |
Logo adiante, refere-se o artista às suas obras da Pampulha,
representando a Via Sacra, que tanta celeuma provocaram:
"Naquelas figuras, houve maior preocupação do desenho.
Nas telas de Batatais, há mais pinturas. É a predominancia
da cor. Hoje, se fosse de novo decorar a Pampulha, executaria a Via
Sacra de modo totalmente diverso. Isso, entretanto, não significa
que eu renegue aquela fase. O que aconteceu foi somente evolução
de um pintor. Quanto à celeuma provocada, não creio
que ela se deva unicamente à minha decoração
da Pampulha; houve um conjunto de circunstancias que deram origem
àquela reação."
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