FERNANDO
PESSOA E A DISCIPLINA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 1977
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Fernando Pessoa (1888/1935), poeta português, tido como o maior
deles, ao lado de Camões, e uma das mais altas expressões
da moderna poesia, em todo o mundo. Nascido em Lisboa, transferiu-se
com a família, ainda criança, para a África do
Sul. Cresceu em Durban e frequentou a Universidade da Cidade do Cabo.
Daí sua anglicização: o inglês foi sua
segunda língua e nela escreveu alguns de seus melhores poemas.
Um dos renovadores da poesia portuguesa. Em 1914, nascem seus principais
heterônimos (Alberto Caieiro, Álvaro de Campos, Ricardo
Reis): não se trata de pseudônimos do poeta, mas de verdadeiras
personalidades, cada uma com estilo próprio, intelectualizado
e por vezes hermético um fenômeno que até
hoje desafia a crítica literária. Fernando Pessoa publicou
em vida apenas um volume "Mensagem". Sua prosa, dispersa
em jornais da época, panfletos ou simplesmente inédita
até bem pouco tempo, abrange os mais variados assuntos, dos
literários aos políticos. Sua visão política
revela um peculiar nacionalismo místico. O trecho abaixo foi
escrito em 1928, numa época conturbada da vida portuguesa,
pouco antes do advento do salazarismo. Fui usada a edição
Aguilar.
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Das feições de alma que caraterizam o povo português,
a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina.
Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina
social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa
que seja e eu não creio que a disciplina seja boa
por força que há de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa
que mais parece que somos um exército de que uma nação
de gente com existências individuais. Nunca o português
tem uma ação sua, quebrando com o meio, virando as costas
aos vizinhos. Age sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está
sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por milagre
de desnacionalização temporária, pratica a traição
à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento
independente, a sua audácia nunca é completa, porque
não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção
da sua crítica.
Parecemo-nos muito com os alemães. Como eles, agimos sempre
em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso, como na Alemanha, nunca é possível determinar
responsabilidade; elas são sempre da sexta pessoa num caso
onde agiram cinco. Como os alemães, nós esperamos sempre
pela voz de comando. Como eles, sofremos doença da Autoridade
acatar criaturas que ninguém sabe porque são
acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objetiva
autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de
competência nomeou para as responsabilidades da ação.
Como os alemães, nós compensamos a nossa rígida
disciplina fundamental por uma disciplina superficial, de crianças
que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos
mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros
e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são
as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em que a individualidade
se atrofiou.
Diferimos dos alemães, é certo, em certos pontos evidentes
das realizações da vida. Mas a diferença é
apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamentalmente
neles como em nós, a um sistema de estado e de governo; ao
passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes,
nunca infringimos a nossa rude disciplina social, especializando-a
para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente
entregue ao próprio vulto integral da sociedade. De aí
a nossa decadência!
Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos
uma "revolução" foi para implantar uma coisa
igual ao que já estava. Manchamos essa revolução
com a brandura com que tratamos os vencidos. E não nos resultou
uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma
anarquia, uma perturbação das consciências. Ficamos
miseravelmente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto
infantil, de superfície e fingimento.
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indiciplinadores que
temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como
não acontecer assim, se é da nossa raça que eles
saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na
nossa vida política traem logo a sua missão. Qual é
a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina
por uma fatalidade ancestral.
Trabalhemos ao menos nós, os novos por perturbar
as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós
próprios, a desintegração mental como uma flor
de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos
no doentio e no dissolvente. E a nossa missão, a par de ser
a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais
moral e a mais patriótica.
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