MESA-REDONDA
A OBRA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
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Publicado
na Folha da Noite, sexta-feira, 14 de setembro de 1956
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Sérgio Milliet: "Com Grande Sertão: Veredas temos
o grito de independencia de nossa literatura. Depois deste livro será
preciso reescrever a gramatica do português do Brasil. É
de imaginar com assombro o que sairá dessas paginas milionarias
de invenção e observação, de poesia e
de psicologia. Nelas irá faiscar o escritor brasileiro do futuro,
e as aguas do manancial são inesgotaveis de pepitas de excelente
quilate. Grande Sertão: Veredas é, sem duvida alguma,
o nosso grande acontecimento literario e linguistico do seculo".
Um livro como Grande Sertão: Veredas escapa ao juizo da critica.
É uma obra que se impõe com seu feitio intocavel sua
mensagem total. Há quem não goste de Rabelais ou quem
não aprecie Camilo. Eles são o que são. Guimarães
Rosa, igualmente, é o que é.
Alcantara Silveira: "O que acontece é que o estilo do
ficcionista é tão saboroso e tão vivo, que chega
a prejudicar a propria intriga, pois dificil é ao leitor acompanhá-la
e, ao mesmo tempo, prestar atenção à linguagem.
De qualquer forma, Guimarães Rosa, constituiu-se em algo novo
e à parte na literatura nacional, seja como estilista, seja
como regionalista."
Adonias Filho: "O novo livro de Guimarães Rosa - Corpo
de Baile (Ed. José Olimpio) - apesar do interesse que possa
oferecer aos estudiosos de linguistica, constitui um equivoco literario
que necessecita ser imediatamente desfeito. Continuando o caminho
que abrira com Sagarana, perturbado talvez pelo exito da linguagem
que fascinara uma parte da critica, exagerou de tal modo o veiculo
de expressão que, os invés de transmitir um mundo em
uma trama, isola as novelas em uma especie de fatigante divertimento
verbal. À revolução linguistica, em consequencia,
no comportamento literario da ficção brasileira, Guimarães
Rosa não acrescentou coisa alguma. Em Corpo de Baile o genius
linguistico - que se não manifesta em favor de um só
elemento cultural - encontra seu maior obstaculo na arbitraria interferencia
de Guimarães Rosa. Não respeitando a fala natural, quebrando
o padrão fonetico, o que faz é reproduzir, em outro
plano, o divorcio entre o povo e a lingua."
Luis Martins: "Nunca li - a não ser, que me lembre, o
Guerra e Paz, de Tolstoi, e o Le Ruge et le Noir, de Stendhal - um
romance que me prendesse tanto, entusiasmasse tanto, absorvesse tanto,
como o livro que, esta madrugada, cheguei à ultima pagina,
numa estirada longa de quatro horas de leitura, em seu trecho final.
Há quase uma semana que não pego em outro volume, dedicando
todas minhas horas vagas a esse romance único em nossa literatura,
diferente de tudo que já vi. Macunaima? Dom Quixote? O Ulisses,
de Joyce? Sim, tudo isso, tudo isso e céu tambem. Saga? poema?
romance de aventuras? Ah! de certo, tudo isso, tudo isso - porem bem
mais do que isso. Que extraordinario romance é esse? Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Livro
intraduzivel, aspero, agreste, profundo, onde a poesia borbulha em
cada periodo, em cada frase, em cada palavra, com uma seiva, uma força,
um colorido que fere, deslumbra e desnorteia."
Eurialo Canabrava: "Corpo de Baile suscita questões de
ordem tecnica que põem em jogo todos os recursos da critica
literaria. O realismo magico manipula os dados sensoriais e os transfigura,
emprestando-lhe o toque da fantasia, submetendo-os a uma especie de
depuração residual para conservar, apenas, a sua essencia.
A construção desses recontos obedece a regras e principíos
que são aplicados estrategicamente: o escritor incute nos seus
personagens a vida que vem deles mesmos e não de quem os cria.
O epico se mistura com a lenda, o mito e o romance medieval nessa
historia do velho Camilo sobre o menino vaqueiro e o Boi Bonito. O
ritmo de poema barbaro, o colorido intenso das cenas que se sucedem,
o sopro heróico que anima essas paginas, onde as palavras se
entrechocam como vagas de mar revolto - tudo isso empresta à
narrativa qualquer coisa de estranho, uma atmosfera de magia e encantamento."
Paulo Ronai: "Há em todos esses romances uma intocavel
população de comparsas, figuras excentricas, esquisitões,
perfeitamente individualizados, que lamento nem sequer poder enumerar
aqui, e que dão ao livro o colorido, o movimento e a graça
grotesca de quadros de Breughel e de Granach."
Renato Jobim: "Há qualquer coisa de euclidiano neste livro
com que João Guimarães Rosa estréia no romance.
Qualquer coisa que não apenas sugere mas impõe uma personalidade
mascula e onividente na retratação de uma comunidade
marginal dos campos-gerais do nordeste mineiro. Foram precisas, de
fato, as qualidades inconfundiveis do autor de Os Sertões,
para fixarem nessas palavras ainda frementes e asperas do ato de criação
as preocupações, os dilemas, os desejos secretos, as
ações ignobeis, os momentos de alegria, as lutas pela
sobrevivencia, desse bando de jagunços chefiados por uma complexa
constituição humana; Diadorim, que desde já se
incorpora à galera das grandes personagens do romance nacional."
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Excerto
de "Grande Sertão: Veredas" |
- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não.
Deus esteja. Alvejei mira em arvore, no quintal, no baixo do corrego,
Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha
mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro
branco, erroso, os olhos de nem ser - se viu -; e com mascara de cachorro.
Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como
nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa.
Cara de gente, cara de cão: determinaram - era o demo. Povo
prascovio. Mataram. Dono dele nem quem for. Vieram emprestar minhas
armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas...
Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorra pega a
latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu
mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem
que não seja: que situado sertão é por campos-gerais
a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do
Urucuia. Toleima. Para os do Corinto e do Curvelo, então, o
aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os postos carecem de fechos;
onde um poder torar dez, quinze leguas, sem topar com casa de morador;
é onde os postos carecem de fechos; e onde crimonoso vive seu
cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos
montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá
- fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render,
as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O "gerais"
corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um
o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em
toda a parte.
Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso
receio,
desfalam no nome dele - dizem só: o "Que-Diga". Vôte!
Não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num
Aristides - o que existe no buritizal primeiro desta minha mão
direita, chamado a Vereda-da-Vaca-de-Santa-Rita-todo o mundo crê:
ele não pode passar em três lugares, designados: porque
então a gente escuta o chorinho, atrás, e uma vozinha
que avisando: - "Eu já vou! Eu já vou!..."
-que é o capiroto, o "que diga..." E um Jisé
Simplicio - quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miudo
satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganancia que executa; razão
que o Simplicio se empresa em vias de completar de rico. Apre, por
isso dizem tambem que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não
deixando, quando ele quer amontar... Superstição. Jisé
Simplicio e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim
não ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias
de epoca, tem gente porfalando que o Diabo proprio parou, de passagem,
no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá
se louvou que, para aqui vir - normal, a cavalo, dum dia-e-meio -
ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque
costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, tambem, quem sabe -
sem ofensas -não terá sido, por um exemplo, até
mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá,
por prazido divertimento engraçado? Háde, não
me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis.
Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão
de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, quis
mangar. Pois, bem, que, despontas o Rio pelas nascentes, será
mesma coisa que se um redobrar nos internos deste nosso Estado nosso,
custante viagem de uns três meses... Então? "Que-Diga?"
Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele
esses nomes de rebuço, é que é mesmo querer invocar
ele forme forma, com as presenças!
Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele
a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe
digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa
nos Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista,
muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta
com uma vara de maria-preta na mão - proseou que ia adjutorar
o padre, para extrairem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois,
ele ia com o vigario do Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não
é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quemelem
descreve que o que revela efeito são os baixos espiritos descarnados,
de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ansias de se travarem
com os viventes - dão "encosto". Compadre meu Quemelem
não é quem muito me consola - Quemelem de Góis.
Mais ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti
Pardo... Arres, me deixe lá, que - em endomoniamento ou com
encosto - o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos,
homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi.
Rincha-Mãe, Sangue d'Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo,
Faca-Fria, e Francho-Bode, um Treciziano, o Azinhave... o Hermogenes...
Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não
sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser de jagunço
se entrete, já é por alguma competencia entrante do
demonio. Será não? Será?
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não
possuía os prazos. Vivi puxando dificil, peixe vivo no moquem:
quem mói no asp'ro, não fantasia. Mas, agora, feita
a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede.
E me inventei nestes gostos, de especular idéia. O diabo existe
e não existe? Dou o dito. Abrenuncio. Essas melancolias. O
senhor vê: existe cachoeira; é pois? Mas cachoeira é
barranco de chão, e agua se caindo por ele, retombando; o senhor
consome essa agua, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver
é negócio muito perigoso.
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem
- ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por
si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!
- é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco -
é alta mercê que me faz: pedir posso, encarecido. Este
caso - por esturdio que me vejam - é de minha certa importancia.
Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado
e instruido, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço!
Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia,
esperava por ela - já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece
de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum.
Nem espirito. Nunca vi. Alguem devia de ver, então era eu mesmo,
este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado
preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças
- eu digo. Pois não é ditado: "menino - trem do
diabo"? E nos usos, nas plantas, nas aguas, nas terra, no vento...
Estrumes... O DIABO NA RUA, NO MEIO DO REDEMUNHO...
"Grande Sertão: Veredas" - (Pags. 9 a 12) Edição
José Olimpio - Rio, 1956.
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