"NÃO PRETENDO TORNAR-ME CENTENÁRIO"
George Bernard Shaw, com 91 anos de idade, ri-se dos novos
esforços dos cientistas britanicos no sentido de aumentar
a duração da existencia humana
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Publicado
na Folha da Manhã, domingo, 14 de setembro de 1947
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Neste texto foi mantida a grafia original
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LONDRES, setembro - "Atualmente, morremos na infancia
aos 70 anos, jogando gude, chupando sorvetes de chocolate e fumando.
Nada poderia ser menos natural!" - disse Bernard Shaw.
"Mas chegará o tempo em que poderemos viver até
os 300 anos, não apenas sem enfraquecimento de nossas faculdades,
mas com elas grandemente desenvolvidas."
Mr. Shaw, que completou 91 anos em 26 de julho ultimo, fez as declarações
citadas nesta entrevista durante a visita que fiz à sua casa,
em Ayot St. Lawrence, perto de Welwyn. No fim dessa entrevista baniu-me
para sempre de sua presença, em virtude da minha temeridade
em mencionar seu proximo aniversario.
"Meu nonagesimo aniversario já teria liquidado com qualquer
outro homem" - afirmou ele.
Mas antes do incidente acima mencionado pude ouvir de Mr. Shaw - que
anteriormente me dissera ser necessaria uma existencia de 300 anos
para atingir-se à maturidade politica - que ele nada espera
dos resultados das novas tentativas em curso em nosso país
para descobrir-se o meio de aumentar a duração da vida
humana até 100 anos ou mais.
Depois de me informar de que Bernard Shaw, como seria de esperar,
estava ciente de que um grupo de cientistas, que espera eventualmente
"protelar a senilidade", tinha iniciado suas experiencias
em Oxford, perguntei-lhe se achava que eles estavam bem orientados
nas pesquisas.
"Não! - respondeu ele, com desprezo. - Trabalham com ratos.
Qualquer imbecil pode fazer o mesmo. O estudo serio da humanidade
só se pode realizar no homem."
"A morte aos setenta anos certamente que não é
"natural". Em que idade - se for possivel marcar uma idade
certa - a morte poderia ser considerada natural, isso não sabemos.
E não iremos descobri-lo lidando com ratos!"
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O
horror da imortalidade |
Shaw, quanto a si mesmo, não espera viver até os 300
anos, e nem mesmo até os 100, se bem atualmente pareça
que vai consegui-lo - contra os seus desejos, afirma-o.
Embora me assegurasse, a seu respeito, que aos 91 anos de idade "não
tem ainda idade suficiente nem para ser menino de recados de um subsecretario
de Estado", não sente o menor desejo de enriquecer-se
em anos o bastante para se candidatar nem mesmo a um cargo um pouquinho
mais elevado.
"Não quero nem sequer chegar ao centenario - disse-me
ele, em um de nossos primeiros encontros. - Tenho medo de que isso
aconteça. Fui o primeiro a denunciar os horrores da imortalidade
individual."
Contudo, acha que os homens em geral precisam de 300 anos de vida
- ou pelo menos precisam deles os "eleitos" da humanidade.
E explicou-me porque:
"A vida, tal como é hoje, não é suficientemente
longa para ser levada a serio. Dêem a um homem apenas 70 anos
de vida e ele cantarolará: - Tratemos de comer e beber, porque
amanhã estaremos mortos. - Dêem-lhe 300 anos e ele se
transformará num novo homem. E são os ideais que orientam
a conduta."
Mas a simples idéia de viver tanto tempo é horrorosa,
pelo menos para mim - protestei. Que prazer ou proveito poderiamos
tirar de uma vida de 300 anos, ou mesmo de 200, "sem dentes,
sem olhos, sem paladar, sem nada", como muito bem disse Shakespeare?
"Mas ninguem mencionou a possibilidade realmente horrivel de
uma raça de Struldbrugs - respondeu Shaw. - Swift pôs
um ponto final nessas preocupações!"
(Os Struldbrugs são um povo das "Viagens de Guliver"
amaldiçoados com a imortalidade. Perdendo todas as faculdades,
eram o povo mais miseravel da Terra.)
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A
morte não é "inevitavel" |
"O que seria desejavel para uma existencia politica - explicou
Mr. Shaw - seria um seculo de infancia e adolescencia, um segundo
seculo de madureza politica e um terceiro de sabedoria oracular, sem
direito a voto. Este ultimo seria o necessario para estudiosos, administradores
e senadores."
"A morte não deve ser considerada como natural e inevitavel
- acrescentou ele. - Morremos porque não sabemos viver, e porque
nos matamos com uma porção de habitos letais. A mortalidade
deveria reduzir-se aos assassinios, suicidios e acidentes fatais,
os quais a estatistica prova que devem atingir cada um de nós,
mais cedo ou mais tarde."
Deus me livre de não concordar com esse ponto de vista - disse
eu. Mas, voltando um pouco atrás, por favor, não compreendi
bem... Como foi que Swift pôs um ponto final à possibilidade
de uma raça de Struldbrugs?
"No que Swift pôs um ponto final - replicou Shaw - foi
na noção de que a imortalidade seria uma benção,
qualquer que fosse o preço pago por ela. Os homens ainda alimentam
a estupida ambição de viver para sempre, mas não
sob a condição de se transformarem em Struldbrugs."
Em que trabalho o senhor se ocupa atualmente? - perguntei-lhe.
"No trabalho de sempre - respondeu ele: - escrevo um prefacio
para minha nova peça, que ultimei recentemente e que será
apresentada durante o Festival de Malvern."
Por que acha o senhor que suas peças precisam de prefacios?
- perguntei.
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"Aniversario?
Suma!" |
"Minhas peças não precisam de prefacios - replicou
ele -, mas a gente que compra meus livros precisa de variedade e quantidade
que lhes dure no minimo uma semana, nestes dificeis tempos. Os que
gostam de ensaios politicos, e não gostam de peças de
teatro, podem pular as peças. Os que gostam de peças,
e não gostam de ensaios politicos, podem pular os prefacios.
Desse modo, todos saem satisfeitos.
"A combinação de um prefacio-panfleto com uma peça
de teatro é tradicional na literatura inglesa, mas até
hoje ninguem a realizou em tão justa medida como eu. O unico
inconveniente é que pessoas estupidas e totalmente ignorantes
do que seja tradição, e que não lêem minhas
peças nem as de ninguem, imaginam que os prefacios explicam
as peças, e que estas são incompletas sem eles. Ora,
é claro que se trata de trabalhos completamente independentes."
Foi nessa altura que cometi meu erro fatal. (Faltava um ou dois dias
para 26 de julho.)
A aproximação do seu nonagesimo-primeiro aniversario
sugere-lhe alguma coisa mais com o tempo ele me perdoe. - perguntei.
O senhor sente-se mais velho do que se sentia há um ano atrás?
"Aniversario? - fungou Shaw. - Suma daqui! Vá embora!
O homem que na minha presença pronuncia essa palavra não
pode ser meu amigo: o meu nonagesimo aniversario teria liquidado com
qualquer outro que não eu. Não quero mais saber de aniversario!
Boa tarde. E não me apareça mais!"
Agora só posso esperar que com o tempo ele me perdoe. Talvez
daqui a um par de seculos, quem sabe?
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