O ACCÔRDO ORTHOGRAPHICO MOVIMENTA OS INTELLECTUAES PAULISTAS


Publicado na Folha da Noite, quinta-feira, 14 de maio de 1931

Neste texto foi mantida a grafia original

 
Antonio de Alcantara Machado, Menotti Del Picchia, Origenes Lessa e Hermes Lima manifestam sua opinião à "Folha da Noite"

Innumeros intellectuaes cariocas que estão fóra do quadro fardado da Academia Brasileira de Letras protestaram contra o accôrdo orthographico ha pouco firmado, encouraçando-se neste argumento: - a "ilustre companhia" não póde falar, não póde fazer nada em nome de 40 milhões de brasileiros.
Deslocando as operações da opinião para S. Paulo, a "Folha da Noite" entrevistou hoje quatro intellectuaes.

Fala o sr. Antonio de Alcantara Machado

— "Desde 1916, quando ainda não fazia literatura para uso dos outros, que adoto a ortografia official portuguesa. Por uma questão de comodidade sobretudo. Trata-se de um sistema feito por gente de indiscutivel competência. Porquê não segui-lo? O que havia antes lá era uma embrulhada que ninguem entendia, eterno pretexto para os filólogos brigarem. Pois é o que há ainda aqui. E me parece muito mal empregado brasileirismo querer a continuação da mixórdia. Se preferirem, êsse desejo é mais uma manifestação bem brasileira, mais uma prova do apêgo nacional, feito de preguiça e atrazo, ás coisas complicadas e obscuras, á desordem em tudo".

Menotti Del Picchia está com a palavra

Psychologia do accordo

— Um accordo orthographico é como um tratado de paz: é feito para não ser cumprido.
Basta que uns homens fixem um ponto de vista da acção commum, para que os demais divirjam delle.
O caso do accordo orthographico luso-brasileiro é um "casus belli" nos arraiaes literarios. Estes, tomados pelo espirito legionario e guerreiro deste instante mavortico, estão louquinhos por mais uma insurreição. A iniciativa da Academia de Sciencias e da Academia Brasileira offereceu opportunidade para nossos letrados darem sua "opinião": toda opinião é personalissima, logo é um factor de divergencias. Ha em cada uma a ancia da originalidade, logo da discordancia.

O accordo em si mesmo...

seria ideal. A uniformização orthographica representa simplificação e certa logica convencional em meio á complexa barafunda orthographica. Não creio, porém, que seja realizavel. A razão é simples: a lingua é uma coisa viva, de elaboração instinctiva e diuturna. Quem a faz é o proprio povo. Elle a cria e as élites intellectuaes a consagram. Seria inverter seus factores geneticos acreditar que são os sabios que a offertam ao povo, crystalizada nas suas formulas eruditas. Um idioma é um phenomeno humano collectivo. Nasce como as plantas. Os literatos não são mais que jardineiros dando formas ellegantes á barbara ecclosão dos seus sadios idiotismos, aos seus modismos espontaneos, ás vezes expressiva e pictorescamente excentricos.
A graphia de uma lingua é longamente crystalizada em suas formulas simplificadas e irreductiveis pela lei do minimo esforço. É como esses pedregulhos inicialmente cheios de quinas e que acabam lisos e redondos mercê da paciente acção das aguas.

O ponto de vista scientifico

Scientificamente é o arbitrio que determina a graphia, isso porque se fossemos attender a considerações eruditas, a etymologia iria crear verdadeiros aleijões graphicos em cada palavra.
Os sabios em materia grammatical são accordes em verificar, nas metamorphoses graphicas por que passa um vocabulo, phases de evolução. Como, pois, arrestar-se essa evolução determinando uma fórma academica, convencional e definitiva de graphia?
O respeito totemistico á etymologia, em nome da sciencia da linguagem, é uma heresia scientifica. Isso porque se uma lingua é originaria de outra, a simples deslocação territorial dessa lingua dentro de um novo ambiente social, implica na creação autonoma de um typo idiomatico. A orthographia é ahi essencial, como causa propria de identificação e de alforria idiomatica. Rebuscar as raizes da lingua nova é deturpal-a e trahil-a. As razões etymologicas são tão absurdas como as pesquizas fidalgas de linhagem dentro das democracias.

Que se deve fazer?

Deve-se fazer o que se faz: entregar-se a elaboração dos idiomas aos seus sabios instinctos de creação e evolução. A vida de um povo elabora, acima das convenções dos eruditos, suas formulas verbaes de communicação espiritual. Um povo nunca erra e as Academias erram quasi sempre.
A lingua brasileira, viva, rica, dymnamica, caminha para sua identificação e salta, como agua inquieta, acima das maternas comportas classicas dentro das quaes em vão se a procura estagnar.
A lei do minimo esforço cria o arbitrio salutar das suas formulas orthographicas mais logicas e mais racionaes. É inutil qualquer convenção erudita contra o instincto. Um idioma é um depoimento vital trazido dia a dia para o quadro das necessidades de um povo.

E o caso do accôrdo das academias?

Deante delle estou como está meu caro amigo e grande poeta Guilherme de Almeida: contemplativo e sorridente.
Conhece aquella historia de Monteiro França, do doente, do gallo e do remedio? Por falta de relogio na casa do enfermo, o medico, dando á mulher do doente as pilulas que o salvariam, ordenou solennemente:
— Quando o gallo cantar, dê-lhe estas pilulas.
A mulher interpretou ao pé da letra a prescripção medica e quem enguliu as pilulas foi o gallo, mal soltou, pela manhã, seu "corococó" festivo. O gallo morreu e o doente sarou...
O que póde acontecer é que o accôrdo morra. Como vê o collega não é grande o mal, uma vez que nossa linda lingua não virá a soffrer de paralysia orthographica. Continuaremos a escrever deliciosa e arbitrariamente errado, procurando instinctivamente, as formulas graphicas mais consentaneas com a indole do nosso povo. O accôrdo, como vê, não nos fará nenhum mal..."

A opinião de Origenes Lessa
- "Não sei qual foi o famoso accôrdo orthograhico a que os jornaes vêm diariamente se referindo. Nada li sobre o assumpto nem me interessa a questão. Em materia de orthographia estou sempre de accôrdo com os revisores dos jornaes em que escrevo."

Hermes Lima manifesta-se

— "Pessoalmente, tenho seguido até o momento em que escrevo estas palavras, a orthographia chamada usual, cheia de erros, aparatosa na multidão de suas letras inuteis. Reconheço a utilidade de uma simplificação e no caso do recente accôrdo, entre a Academia Brasileira e a Academia de Sciencias, de Lisboa, vejo-o com sympathia e estou mesmo disposto a seguil-o nos meus escriptos. A reforma portugueza possue grande merecimento. Penso que, vencidas as divergencias mais importantes que impediam a sua adopção no Brasil, só teremos a lucrar, de parte a parte, com uma orthographia commum aos dois paizes, terminando assim, a terrivel confusão reinante no assumpto".


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