MAZZAROPI, 34 FILMES, MORRE AOS 69 ANOS


Publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 14 de junho de 1981




O ator e produtor Amácio Mazzaropi, que em 34 filmes — desde "Sai da Frente", de 1951 — interpretou e tornou popular a figura do caipira, morreu ontem de manhã em São Paulo, aos 69 anos de idade, vítima de um câncer na medula.
Velado no hospital Albert Einstein, por uma multidão de amigos e admiradores, o ator será sepultado hoje à tarde no cemitério de Pindamonhangaba.
Mazzaropi, que durante muitos anos foi o recordista absoluto do cinema nacional, em bilheterias, fez do Jeca — o caipira preguiçoso e de andar trôpego — o seu cartão de visita e o tipo mais popular do cinema brasileiro.

O cinema nacional perde seu Jeca

Mazzaropi morreu. A notícia pegou o meio artístico de surpresa. Doente desde 1976, ele desmentia sistematicamente qualquer notícia que falasse em suas precárias condições de saúde. Assim, pouca gente ficou sabendo que em fevereiro deste ano ele precisou iniciar um tratamento de radioterapia numa última tentativa de lutar contra o câncer de medula. Mesmo assim, Amácio Mazzaropi, com 69 anos não desistiu e se preparava para rodar seu 35.o filme. Mas os trabalhos não puderam se iniciar em março, como estava programado. Mazzaropi morreu às 8 horas de ontem, depois de ficar internado 26 dias no hospital Albert Einstein, onde seu corpo está sendo velado.
Logo que a notícia começou a ser veiculada, amigos acorreram ao hospital, de onde o corpo sairá às 6 horas de hoje para ser sepultado às 8 horas, em Pindamonhangaba. Mazzaropi será enterrado junto a seu pai. Agora, a grande preocupação de seu filho adotivo, Péricles Moreira, é esconder a notícia da morte, da mãe de Mazzaropi dona Clara, com 90 anos, que acredita que seu filho esteja viajando para fazer mais um filme.
Afinal, viajar não era nenhuma novidade na vida deste homem, que, em 1928, começou sua vida artística. Dos seus 34 filmes, 26 foram produzidos por ele mesmo, a partir da década de 50. Seu último filme "O Jeca e a égua milagrosa", lançado em setembro do ano passado, bateu o recorde de bilheteria de "Pixote", segundo os amigos. Seu filho adotivo, Péricles — que nasceu em sua casa, filho de uma empregada do ator — provavelmente continuará os trabalhos de sua firma, a Pam-Filmes.
Embora reconheça que "faz um cinema completamente diferente de Mazzaropi", Davi Cardoso, um dos primeiros a comparecer ao velório, diz que aprendeu tudo com ele. "Um homem, não me envergonho de contar, para quem já passei calças e engraxei sapatos." Falando da necessidade de continuar os trabalhos da Pam-Filmes, "para que ela continue dando empregos aos técnicos cinematográficos, sem fazer política", Cardoso diz que seguiu os passos de Mazzaropi "fazendo um cinema profissional e honesto".
Mas quem pode mesmo se orgulhar de ter seguido praticamente todos os passos de Mazzaropi, no sentido literal da palavra, é a atriz Geni Prado. Bastante emocionada, Geni contava como começou a fazer, no cinema, o papel de esposa de Mazzaropi, aquela que ele nunca teve em sua vida real. Tudo começou na televisão, em 1951, quando ele criou o quadro Rancho Alegre, onde Geni fazia o papel da cabocla. Rancho Alegre veio a ser o primeiro programa patrocinado na TV. Desde então, Geni trabalhou com ele em 21 filmes.
Para Hebe Camargo, a perda de Mazzaropi é irreparável. Dizendo-se chocada com a notícia — poucos sabiam que ele já estivera internado por 18 dias no Hospital Oswaldo Cruz, ficando outros dez em sua casa, antes de ir para o Einstein — Hebe dizia que Mazzaropi "cumpriu a missão mais bonita: de fazer rir". Bastante emocionada estava também a cantora Gilda Valença. Péricles, o filho adotivo de Mazzaropi, preferia apenas dizer "ele nos deu e deixou muito amor e muita paz".


"Até Figueiredo chorou quando me abraçou"


Amácio Mazzaropi nasceu em 1912 em São Paulo, à rua Vitorino Camilo n.o 5, e foi batizado na Igreja de Santa Cecília. Em 1932 foi para Taubaté, terra de sua mãe, dona Clara, ainda viva, e ali trabalho no Teatro do Soldado, cuja renda revertia em favor das viúvas e órfãos dos soldados mortos na Revolução Constitucionalista.
Anos depois, fundou o seu — o Pavilhão Mazzaropi, com o qual viajava por todos os Estados do Brasil. Com a morte de seu pai, Pindamonhangaba, Mazzaropi assinou contrato para trabalhar com a companhia de Nino Mello, estreando em São Paulo, no Teatro Oberdã. Depois que Nino Mello foi embora, Mazzaropi organizou a própria companhia e voltou para o Teatro Oberdã, onde o diretor artístico da Rádio Tupi, Costa Lima, o viu e contratou. Na Tupi, ele ficou oito anos, participando com Frei Mojica, da inauguração da TV-Tupi de São Paulo.
Nesse tempo, a Cia Cinematográfica Vera Cruz convidou Mazzaropi para fazer um teste. Aprovado, fez seu primeiro filme, "Sai da Frente".
Quando a Vera Cruz se fechou, Mazzaropi resolveu fazer um filme próprio. Vendeu casa, carro, saiu fazendo excursão e conseguiu dinheiro para fazer o filme "Chofer de Praça". Depois, não parou mais.
Mazzaropi fez mais de três dezenas de filmes, mas foi o sucesso do Jeca que marcou a sua carreira. O tipo teria sido copiado do ator Sebastião Arruda, que desde 1916 imitava o caipira em seus espetáculos. O Jeca daria a Mazzaropi a fama nacional. Ele dizia meses atrás a Romeu Garcia correspondente da "Folha" em Taubaté:
"Até o Figueiredo, quando me abraçou, chorou."


"Querem que eu mude. Pra quê?"


OSWALDO MENDES

Ele costumava dizer:
"Esse pessoal me picha, mas quando eu morrer, será que eles pensam que eu vou levar tudo isso comigo? Eu não construi nenhum império de cinema, apenas criei condições para poder trabalhar, sem depender de ninguém. Tudo o que tenho, devo ao meu público. Quando eu morrer isso tudo que eu tenho vai ficar para o cinema nacional. Eu não vou poder levar nada disso. Então, por que eles me picham tanto?"
Ele fazia que não ligava, mas o fato é que Mazzaropi sempre se ressentiu de não ter merecido da crítica, dos "tais intelectuais", como ele dizia, o reconhecimento pelo seu trabalho.
"O que é que eles querem? Que eu perca dinheiro? Só é bom quem fracassa? Se eles querem que eu faça um filme que ninguém assista, isso não farei nunca. Não vou trair esse público só para que a crítica fale bem de mim."
Conversávamos muito sobre isso. As vezes eu nem puxava o tema, mas Mazzaropi fazia questão de lembrá-lo. Talvez por achar que eu fizesse parte desses "tais intelectuais". Essa necessidade de reconhecimento estava presente desde muito tempo. Como ele não o obtinha das pessoas de cinema, parecia procurá-lo junto ao teatro. Teatro que, na verdade, foi sua primeira e permanente escola.
Mesmo já suficientemente rico para viver dos seus filmes, Mazzaropi ainda encontrava tempo para sair por esse Brasil apresentando-se em palcos de cinemas e em picadeiros de circos mambembes do interior.
Filmes, parece que só via os seus. Preferia frequentar teatros. Acompanhou todos os espetáculos do Teatro de Arena, na fase mais política e criativa do grupo, na década de 60. Chegou a pedir argumentos e roteiros cinematográficos a Gianfrancesco Guarnieri (isso ele me disse, mas nunca chequei com o Guarnieri). Mas de todas as pessoas a quem pedia roteiros, Mazzaropi recebia (ele dizia) estórias que não tinham nada a ver com ele nem com seu público.
"Eles querem que eu mude. Mas mudar para que? Eu sei do que o público gosta e não vou ficar inventando."
Mazzaropi via quase todos os espetáculos teatrais em cartaz na cidade. Alguns, via mais de uma vez. Elis Regina, que ele considerava a maior cantora do Brasil, tinha sempre Mazzaropi na sua platéia - "Falso Brilhante" ele assistiu no mínimo três vezes. Mas não era de marcar presença em camarins. Chegava ao teatro, comprava seu ingresso, assistia ao espetáculo e ia embora como uma pessoa qualquer.
O respeito que Mazzaropi tinha pelos "tais intelectuais", em relação à imprensa transforma-se numa espécie de medo. Costumava dizer que fugia de repórteres como o diabo foge da cruz. Por que? "Esse pessoal só quer saber se eu estou rico, se ganho muito dinheiro com cinema. Ninguém me pergunta nada sobre o meu trabalho. Daí eles vêm me entrevistar só para depois escrever o que lhes interessa. Estão sempre achando um jeito para meter o pau em mim".
Foi numa reunião do antigo Instituto Nacional de Cinema que eu o conheci. A sede do INC aqui em São Paulo era num prédio da 24 de Maio, próximo ao Teatro Municipal. Havia uma solenidade de entrega de prêmios aos que mais haviam faturado com seus filmes. Mazzaropi era o primeiro. Começamos a conversar ali mesmo no INC. Ele arredio diante das perguntas do repórter. Eu insistindo. Descemos para a rua. A conversa continuou no cafezinho de bar. Daí nos despedimos. Fui para a redação e entreguei a matéria. Dias depois, a entrevista já publicada, Mazzaropi liga para o jornal à minha procura.
"Você foi decente comigo. Não me esculhambou como costumam fazer. Aquilo nem foi uma entrevista. A gente apenas conversou sobre vários assuntos e eu nem me abri muito de medo do que sairia publicado depois. Eu não gosto de dar entrevista, mas quando você quiser é só me procurar."
Foi assim que Mazzaropi ficou sendo meu amigo. Quando lançou seu filme seguinte, telefonou. "Não estou querendo reportagem não. Quero que você esteja hoje na sessão das dez no Cine Art Palácio. Não precisa nem ver o filme, se não quiser. Quero só que você veja como é o meu público, como eles me recebem. "De fato, havia um toque mais caipira, mais tupiniquim que roliudiano nas estréias de Mazzaropi no Cine Art Palácio. A periferia inteira vinha para o Largo do Paissandu. Os que não entravam, ficavam na porta esperando a chegada de Mazzaropi. Depois, antes do filme ser exibido, ele subia ao pequeno palco do Art Palácio, apresentava o elenco e técnicos que trabalharam no filme e dava um pequeno show, contando velhas piadas, cantando velhas canções.
Mas eu insistia, agora mais à vontade para dizer o que eu pensava. Sempre entendi que aquela identificação que o grande público tinham com o artista, impunha-lhe uma responsabilidade cultural, no mínimo. Achava que seus filmes podiam ir além daquela ingenuidade política, daquela visão primária do bem e do mal. E ele insistia. "Minha responsabilidade é com esse público, essa gente simples que só vai a cinema uma vez por ano, quando eu lanço os meus filmes. Procuro dar a eles o melhor. Por isso, tenho muito cuidado na produção. Eu podia gastar muito menos que esse público iria me ver do mesmo jeito, mas eu prefiro que eles vejam uma coisa bem feita."
Esse público agora está órfão. Mazzaropi lhe deixa de herança apenas seus filmes. Ao cinema brasileiro, ele deixa a sua Pam Filmes com amplos estúdios e o melhor equipamento que conseguiu adquirir. Aos que, como eu, aprenderam desde crianças, num cinema qualquer de uma cidade qualquer do interior, a rir com as aventuras do Jeca e, através dele, a se identificar com o cinema nacional, sempre ingênuo mesmo quando político, fica um vazio.
Ainda lembro da última vez que encontrei Mazzaropi, casualmente, meses atrás, à porta da Pam Filmes, ao lado do Cine Ouro no Largo do Paissandu. Ele estava feliz. Havia inaugurado o seu hotel em Taubaté, mas pouco falou a respeito. "Um dia você vai até lá e vê como é. Você e a Iracema são meus convidados. E o teatro, como vai o teatro? É preciso fazer voltar o Teatro de Revista, com muitos cenários, muitas plumas. Mas você já teve a curiosidade de ver quanto está custando uma pluma? É, eu acho que nunca mais vamos ter Teatro de Revista no Brasil."
A notícia agora da morte de Mazzaropi me faz lembrar uma outra coisa que ele sempre me dizia.
"Pois é, falam mal de mim. Só quero ver quando eu morrer. Daí vão fazer festivais com os meus filmes e tem gente que é capaz até de falar que eu fui um gênio. Quer saber? Deixa pra lá... Quando eu morrer isso já não terá nenhuma importância..."


Os filmes, desde "Sai da Frente"


Foram os seguintes os filmes interpretados por Mazzaropi: "Sai da Frente" (1951), "Nadando em Dinheiro" (1952), "Candinho" (1953), "O Gato da Madame" (1954), "A Carrocinha" (1955), "Fuzileiro do Amor" (1955), "O Noivo da Girafa" (1956), "Chico Fumaça" (1956), "Chofer de Praça" (1958), "Jeca Tatu" (1959), "As Aventuras de Pedro Malazartes" (1959), "Zé do Periquito" (1960), "Tristezas do Jeca" (1961), "O Vendedor de Linguiça" (1961), "Casinha Pequenina" (1962), "O Lamparina" (1963), "Meu Japão Brasileiro" (1964), "O Puritano da Rua Augusta" (1965), "O Corintiano" (1966), "O Jeca e a Freira" (1967), "No Paraíso das Solteironas" (1968), "Uma Pistola para Djeca" (1969).
Do primeiro filme até o último, "O Jeca e a Égua Milagrosa", Mazzaropi atuou somente como ator até "Chico Fumaça". Depois, já a partir de "Chofer de Praça", em 1959, além de ser o intérprete principal em todas as suas comédias rurais, ele passou a acumular também as funções de produtor, roteirista ou argumentista, colaborando frequentemente com os seus diretores. Nos anos 70, Mazzaropi interpretou alguns filmes que satirizavam grandes sucessos comerciais de Hollywood, fazendo "Jeca Macumbeiro", "Portugal Minha Saudade", "O Grande Xerife", "Jeca, um Fofoqueiro no Céu", "Jeca Contra o Capeta", satira a "O Exorcista", "Um Caipira em Bariloche" e, por último, "O Jeca e a Égua Milagrosa".
Quase sempre ignorado pelos intelectuais, que apenas começaram a aceitar a existência desse cinema popularesco — o filme rural, caipira ou que seja, feito tanto por Mazzaropi quanto por Teixeirinha, no Sul — depois que um dos mais badalados homens do cinema brasileiro, Nelson Pereira dos Santos, fez "A Estrada da Vida", com a dupla Milionário e Zé Rico, Mazzaropi sempre tinha, pronta, uma resposta para a aversão, que tinham por ele e por suas comédias:
"O zé povinho sabe bem o que quer, e o reflexo disso são os recordes de bilheteria de meus filmes, que são chamados de fitinhas e não vão a festivais. A crítica, no começo, me arrasava, agora silencia. Alguns críticos nem mencionam meus filmes nas indicações, como se não existisse. Mas há uma coisa que ninguém pode negar: pouca gente contribuiu tanto para o cinema brasileiro quanto eu e o meu Jeca."


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