PLÁGIO


Recente lançamento do "Dicionário dos Plagiários" é motivo de inquietação na França

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 14 de julho de 1990

BERNARDO CARVALHO
De Paris

Quase ninguém escapa. De Apollinaire a Zola, passando por Baudelaire, Cendrars, D'Annunzio, Diderot, Lamartine, Montaigne, Musset, Pascal, Rabelais, Sade, Stendhal, Valéry e Voltaire. Todos pilharam na obra alheia. Às vezes num ato confesso e voluntário. Outras vezes, na surdina e torcendo para não serem descobertos. Na maior parte, nunca imaginavam que isso fosse possível e quando menos esperavam tinham que inventar uma justificativa literária para o plágio mais escancarado, dando-lhe ares mais amenos de pastiche, paródia, compilação, colagem ou alusão. O fato é que dificilmente haveria literatura sem o plágio. É o que deixa claro o "Dictionnaire des Plagiares" (Dicionário dos Plagiários, ed. Perrin, 320 páginas, 135 francos), de Roland de Chaudenay, recém-publicado na França.
Os pilantras devem estar lambendo os beiços. Mas não basta plagiar para conseguir um lugarzinho ao lado dos grandes plagiadores. Uns são apenas "copiadores sonsos", outros "imitadores sem vergonha". Há sobretudo crimes e crimes. Uns funcionam, outros não. Também há épocas e épocas. Seria ridículo dizer que a obra de Racine é um plágio das tragédias gregas -o autor figura no dicionário sob alegação de ter roubado aqui e ali os versos de desconhecidos que lhe eram praticamente contemporâneos. Tão ridículo quanto acusar Corneille de ter chupado tudo o que precisou do teatro espanhol. O autor do "Cid" foi incluído no dicionário por outro tipo de contrafação, por ter furtado inclusive de seu conterrâneo Montaigne, aliás um compilador confesso que, em contrapartida, acabaria tendo alguns trechos de seus "Ensaios" reproduzidos também pelos "Pensamentos" de Pascal. Em resumo, um bordel.
A modernidade trouxe o álibi da colagem e a pós-modernidade, o do simulacro, da simulação. Grande coisa. Nem por isso, Apollinaire, Cendrars, Valéry ou o pretensioso Michel Tournier foram poupados. Estão todos ali, em ordem alfabética, como plagiários. Apollinaire roubou de Cendrars para compor seu poema "Zone". Cendrars roubou de um pobre coitado chamado Gustave Le Rouge, escritor de gêneros menos nobres, como o folhetim. Valéry tirou o que precisava para o seu "Cimetière Marin" (Cemitério Marinho) de um tal de "Cimitière au Bord de la Mer" (Cemitério à Beira-Mar), do desconhecido Pierre-Antoine Lebrun. Tournier já vai se explicando de início para evitar os mal-entendidos: "A parte propriamente inventada é mínima em meus romances".
Espantoso mesmo é que um dos versos mais conhecidos de um dos poetas mais ilustres ("Lamartine é a poesia") da língua francesa seja uma cópia "ipsis literis" de um desconhecido poeta crioulo, Nicolas-Germain Léonard. "Un seul être me manque, et tout est dépeuplé" ("Só um ser me falta, e tudo está despovoado", escreveu Léonard para permanecer eternamente no limbo do anonimato. "Un seul être vous manque, et tout est dépeuplé" ("Só um ser vos falta, e tudo está despovoado"), escreveria Lamartine a caminho da glória e depois de ter lido com atenção os versos de Léonard.
Por falar em glória, um outro conhecido alexandrino de Lamartine - "La gloire n'est jamais ou la vertu n'est pas" ("A glória nunca está onde a virtude não estiver") - foi cuidadosamente retirado de uma peça de Le Franc de Pompignan: "Mas il n'est pas de gloire ou la vertu n'est pas" ("Não existe glória onde não houver virtude").
Outros grandes da literatura francesa também se envolveram nessa curiosa história de pequenos furtos e, por vezes, grandes estelionatos de letras. Voltaire roubou estrofes inteiras de um padre jesuíta - Le Moyne - morto em 1672. Logo ele, sempre pronto a denunciar os plagiários e desclassificar a qualidade literária das vítimas de seus próprios plágios. Depois de chamar Rabelais de "bufão bêbado", Voltaire vai se embebedar na fonte carnavalesca do autor de "Gargantua" para construir sua próprias sátiras.
Balzac e Victor Hugo são dos que têm como álibi para um plagiozinho eventual a dimensão (no caso, sobretudo quantitativa) da obra. Como escrever tanto sem falhar nunca e tendo que levar paralelamente o que se chama de vida? Basta acumular uma documentação exaustiva e se esquecer de vez em quando de onde pode ter saído aquilo que está escrevendo, de onde pode ter vindo o "insight". A descrição da "Beatrix" de Balzac é, na realidade, uma seleção de frases e adjetivos de "Les Portraits Contemporains", de Théophile Gaultier. Não faz mal. Estão entre colegas de profissão, embora Gaultier não faça parte dos eleitos do "Dicionário de Plagiários".
Lautréamont, por outro lado, encabeça a lista dos profissionais assumidos e convictos. Um militante do plágio: "O plágio é necessário. Ele estuda de perto a frase de um autor, usa suas expressões, apaga uma idéia falsa e a substitui pela idéia correta". Tudo o que o autor dos "Cantos de Maldoror" roubar de outros autores (em especial da "Enciclopédia de História Natural", do doutor Chenu) vai ter o sentido invertido. De tal maneira que não se poderá mais falar de plágio.
Não é bem o que acontece com Baudelaire e muito menos com Musset. O primeiro não hesitou em quase reproduzir alguns versos de Longfellow, Thomas Gray e Edgar Allan Poe, por quem nunca escondeu sua admiração. Um dos projetos de prefácio de "Les Fleurs du Mal" fazia referência explícita a esses "empréstimos". Musset foi mais longe. Sua peça "Lorenzaccio" foi tirada de uma primeira versão escrita por Georges Sand (sua amante), que por sua vez havia tirado tudo das "Crônicas Florentinas", de Benedetto Varchi. Ladrão que rouba ladrão. É assim que se faz a literatura. pelo menos a que fica na história.

Autor sofre pressão do editor

De Paris

Não foi sem problemas que Roland de Chaudenay, 50, conseguiu publicar seu "Dicionário dos Plagiários". Engenheiro, industrial e ator (fez uma ponta - o conde de Forcheville, com quem Odette acaba se casando - em "Un Amour de Swann", de Schloendorf). Passou três anos pesquisando em edições críticas, diários, correspondências, revistas e jornais, e seis meses redigindo. "Coleciono livros antigos, trabalho com dicionários bibliográficos. Isso me apaixona. Há uma história dos livros e da escritura a ser contada, contanto que seja com alguma graça. Achei que o melhor seria contá-la pelo plágio", disse ele à Folha.
Quando Chaudenay comentou com um amigo editor que estava fazendo um dicionário de plagiários, o interesse foi imediato. Daí para a publicação teria sido um passo se a menção a certos plagiadores atuais não tivesse criado alguns empecilhos de política editorial. Quando tudo estava praticamente pronto, o editor lhe telefonou para dizer que alguns nomes teriam que desaparecer do dicionário. Um era Jean Vautrin (prêmio Goncourt de 89), que em seu romance "Un Grand Pas Vers le Bon Dieu" havia chupado todo o estranho vocabulário (que acabou reivindicando como sendo sua invenção) de uma pesquisa assinada por Patrick Griollet sobre as línguas cadjun e crioula no estado de Luisiana (EUA). "Seria impossível para Vautrin escrever seu romance, que foi premiado pelo Goncourt, se não estivesse com o livro de Griollet ao lado ou mesmo dentro de seu computador", diz Chaudenay, acrescentando: "Christian Bourgois, irmão do proprietário da editora Perrin, exigiu que o nome de Vautrin desaparecesse do dicionário". Bourgois também é editor e havia convidado Vautrin para dirigir uma coleção. Um diretor de coleção plagiário não ficaria bem.
O próprio Chaudenau não teve escrúpulos em se incluir entre os plagiadores de seu dicionário, aliás sua única obra: "Todos os plágios que levantei já tinham sido descobertos. Fiz apenas uma complicação. Por isso coloquei meu nome. Só queria fazer um livro que fosse divertido para quem gosta de literatura". (BC)

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