LIVRO EXPÕE MONTAGENS DE TV NA GUERRA DO VIETNÃ


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 13 de agosto de 1989


Da Reportagem Local

O livro "The Military And The Media, 1962-1968"("Os Militares e a Mídia, 1962-1968") do historiador norte-americano William Hammond, lançado nos EUA no final de julho, afirma que um câmera da CBS encorajou um soldado americano a cometer um crime durante a guerra do Vietnã.
O livro diz que John Smith, após ter visto vários corpos mutilados nos campos de batalha, forneceu sua faca ao soldado americano que o acompanhava e o persuadiu a cortar a orelha de um vietnamita morto, filmando a cena. A história sobre mutilação de corpos em batalha apareceu dois dias depois, em 11 de outubro de 1967, na edição do telejornal vespertino da CBS.
O episódio foi chamado de "Souvenir Of War" (Lembrança de Guerra). A reportagem começava com o correspondente de guerra Don Webster prevenindo a audiência de que o que eles iriam assistir era uma representação factual do tipo de atrocidades de guerra que haviam se tornado comuns no Vietnã. Num close, um jovem soldado curvado sobre um cadáver cortava uma das orelhas do defunto. Era o seu "souvenir" da batalha.
Os telespectadores, incomodados, provavelmente não pensaram em questionar o que acabavam de assistir. Mas o exército americano o fez e protestou imediatamente, culpando Webster de ter encenado o fato.
O livro afirma que "a raridade de novos acontecimentos e a violação das leis de guerra que aconteciam, se tornaram irresistíveis à CBS. Don Webster narrou o fato como se a ocorrência que ele descrevia tivesse sido inteiramente espontânea".
Webster - que deixou a CBS em 86 - e o câmara John Smith - ainda na emissora - negam veementemente que esta "encenação" tenha ocorrido, mas hoje já admitem que foi um erro fornecer a faca. A emissora acata a posição dos dois. A opinião dos outros correspondentes é de que os dois jornalistas não agiram profissionalmente no incidente.
Hammond diz que Webster nunca foi implicado no incidente. Smith foi acusado como responsável mas nenhuma ação contra ele foi levantada. O soldado foi condenado pela corte marcial, rebaixado de patente e solto sob fiança (US$ 68). Apesar de citados durante o processo, nenhum dos dois jornalistas se apresentou. Webster estava de férias nos Estados Unidos e Smith na Austrália. Os dois negam que tivessem "evitado" testemunhar.
O episódio coloca questões importantes. Se os padrões de qualidade da CBS não foram flagrantemente violados, eles certamente foram levados ao seu extremo. Quando a CBS analisou o problema na época, "havia muito alvoroço", conforme lembrou seu noticiário. Mas a história jamais foi esclarecida.
De acordo com o livro o incidente foi um marco nas relações entre a imprensa e o exército. Hammond escreve que mesmo que não tenha havido encenação, houve transgressão. Segundo ele os personagens principais do drama foram os dois funcionários da CBS.
Como Smith e Webster contam, em 9 de outubro eles foram de helicóptero para uma base na selva, onde unidades da 1o. Divisão da Infantaria estavam limpando o terreno após uma batalha noturna. Os dois decidiram se dividir. Smith conta que passou por quatro soldados que mostravam troféus de batalha: orelhas. Ele lembra que pouco tempo depois, seu acompanhante pediu uma faca. "Eu não sabia o que ele ia fazer, mas tinha uma vaga idéia". Com a câmera filmando, o soldado usou a faca para conseguir seu próprio prêmio.
Hammond diz que o exército evitou um confronto com os jornalistas para preservar as relações entre a imprensa e o exército, que haviam atingido seu ponto mais baixo. Num esforço de diminuir a repercussão negativa, o general Winant Sidle, chefe de informação em Saigon, decidiu enviar soldados relações públicas aos campos com as equipes de reportagem, na esperança de que o exército pudesse influenciar nas coberturas. No caso do "Souvenir Of War", a estratégia não funcionou. O soldado que acompanhava Smith, e que depois cortou a orelha do vietnamita, era um dos relações públicas de Sidle.
"A cada dia a televisão tenta controlar as circunstâncias e fazer as coisas acontecerem segundo suas conveniências", diz o ex-produtor do jornal da CBS, Herford. Ele afirma que os entrevistados frequentemente "atuam" para a câmera ou perguntam ao repórter o que devem responder. Acha que existem vários graus de encenação ou semi-encenação do noticiário na TV. "Todas estas coisas se acumulam e você acaba jogando com sua credibilidade".
O "episodio da orelha" não foi o único.
"Os tempos de guerra criaram circunstâncias estranhas e inusuais, que sempre se desencadeiam numa fração de segundos", diz Herford. "Nada deve surpreender".
"É muito ruim que um único incidente como este possa levantar suspeitas sobre outras dez mil reportagens precisas", diz Lawrence Lichty, professor de rádio, TV e cinema na Universidade de Northwestern e especialista na cobertura do Vietnã. "Não se trata de se Smith encenou ou não o acontecimento, nem de se ocorreram ou não muitos casos de mutilação. O fato é que se tratava da faca de Smith. A questão é, porque Smith deu a faca ao soldado?".
Hammond diz que há uma moral para o episódio da "orelha". "Você pode culpar a imprensa se estiver do lado dos militares ou você pode culpar os militares se estiver do lado da imprensa. Mas este episódio foi uma falha mútua".

Âncora decidiu opinião nos EUA

Da redação


O telejornal nunca foi tão influente na vida dos EUA como durante a guerra do Vietnã. O programa "CBS Evening News", com o âncora Walter Cronkite, detinha a liderança da audiência. Todas as noites, durante o jantar, os americanos viam cenas reais em que seus filhos eram personagens de situações de violência, drama e sofrimento. Conkrite era a personalidade pública mais respeitada do país. Suas opiniões, muitas vezes manifestadas apenas por expressões faciais, tinham grande repercussão junto à opinião pública. Sua oposição à guerra foi decisiva para o repúdio generalizado que se verificou nos anos 70.

Falsificação de imagens ainda existe

De Nova York

Pelo menos um caso comprova que a prática da falsificação de imagens ainda não foi erradicada pela televisão norte-americana. No último dia 21 de julho, o telejornal "ABC News Tonight", da ABC, exibiu imagens que mostravam um homem de meia-idade, identificado como o diplomata americano Felix Bloch, passar uma maleta para outro, identificado como um agente da KGB. Rigorosamente falsa, a sequência foi apresentada como material exclusivo e deu aos milhares de telespectadores que assistiam ao telejornal a impressão de estarem diante de uma prova cabal contra o diplomata, suspeito de entregar informações confidenciais a um agente soviético.
Na mesma noite a ABC voltou a exibir a sequência, acrescida de uma tarja em que se lia a palavra "simulação". Quatro dias mais tarde, o âncora Peter Jennings, que apresenta o telejornal, apresentou um pedido oficial de desculpas da rede, dizendo que a falta da tarja "simulação", na primeira exibição, era devido a um "erro de produção".
Encenada por dois membros da equipe de jornalismo da rede, um deles escolhido por sua semelhança física Bloch, a sequência não pode ser classificada como uma reconstituição, já que não há registros oficiais de que a cena dramatizada tenha acontecido na realidade.
As imagens receberam um tratamento final que reforça sua semelhança com um testemunho verídico - a sequência foi ao ar granulada e tremida, como se tivesse sido produzida por uma câmera oculta.
O material apresentado pela ABC como "exclusivo" aproxima-se do "docudrama", um termo que é utilizado nos Estados Unidos para designar dramatizações de fatos supostamente verídicos. O "docudrama" é comum em vários programas de televisão norte-americanos, especialmente os que trabalham com abordagens sensacionalistas e noticias de apelo popularesco, situando-se a meio caminho entre a realidade e a ficção, o telejornalismo propriamente dito e o programa de entretenimento.

(Maria Ester Martinho)

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