A PROPOSITO DE CARETAS


Publicado na Folha da Manhã, segunda-feira, 19 de dezembro de 1927

Neste texto foi mantida a grafia original


É interessante observar a extraordinaria habilidade com que as creanças, mal abandonam os berços, e logo se põem a praticar a toda sorte de caretas. Não ha nada que as detenha nessa especie de passatempo, a transformar o rosto nas medonhas physionomias dignas de metter medo a um santo.
Um menino houve, que jamais poude ser castigado por persistir nesse habito. Não houve methodo do ensino nem ensino de ameaças que o fizessem desistir da sua preoccupação constante acerca de caras e caretas. Onde quer que elle estivesse, e fosse lá com quem fosse, seria certo estar elle a fazer das suas, isto é, caretas.
Suas contorsões faciaes tornaram-se famosas pela visinhança; seus companheiros de folguedos se dispunham a presenteal-o com os mais valiosos mimos, desde uma simples bola de gomma até um alçapão completo para pegar passarinhos os mais esquivos. E tudo isso para que o menino careteiro desenvolvesse mais e mais as suas proezas e habilidades, para gaudio de quantos o assistiam nessa exhibição prodigiosa de terrorismo e palhaçada.
Esse menino, nos treinos de se fazer vesgo, contorcer os labios de todas as maneiras, lamber a testa com a propria lingua, emfim, quasi que capaz de realizar o impossivel, conseguiu viver para assistir ao dia em que viria ser o maior caroteiro do mundo, ganhando a vida a custo de suas caras e caretas. Apenas essa denominação vulgar tomou outra expressão: elle agora é um mestre em "caracterizações".
Trata-se de Lon Chaney, mais conhecido como o "homem das mil caras", habilidade que lhe é um legado da infancia.
A carreira de Lon Chaney tem sido uma das mais accidentadas. Logo que se tornou elle capaz de ganhar a vida, fez-se, ainda menino, um auxiliar de bastidores num theatro, trabalhando ás ordens de Richard Menstfeld, eminente da época. E emquanto o artista se punha a fazer as suas caracterizações. Chaney punha-se a espiar por um buraco existente na parede do camarim, deixando-se ficar nessa observação por longo tempo.
Mais tarde, do fundo dos bastidores foi elle attrahido pelo proprio palco, sem contudo enfrentar qualquer valiosa vantagem pecuniaria. Tempo chegou, porém, em que Lou Chaney se resolveu a deixar o palco e entregou-se ao mister de pintar decorações interiores. A variedade das côres e o chiro das tintas o attrahiam particularmente. Pouco depois, lá voltava elle novamente para o palco, tornando-se parte de companhias pequenas, do estylo de comedias apalhaçadas.
Sua natural habilidade para as caracterisações puzeram-n'o em destaque, e assim foi elle enveredando por todos os ramos, o quando o trabalho no palco escasseava, punha-se elle como simples ajudante, martellar pelos bastidores e a auxiliar a todos. Mesmo assim, as coisas foram do mal a peior, e Lon Chaney desistiu do theatro. Já a esse tempo, o cinema ia sendo uma attracção. Elle metteu-se pelo cinema, a principio como simples extra, com salarios insignificantes, mas sempre a cuidar da perfeição nas suas caracterisações.
Na fita "O corcunda de Notre Dame", elle conseguiu apresentar-se com uma corcunda admiravel, e com uma cara absolutamente nova, usando para isso de recursos que só elle seria capaz de applical-os. O seu sucesso foi universal; a fama vinha ao seu encontro. Na fita "The Road Mandalay", elle conseguiu apparecer magnificamente caolho. Geralmente, um artista contenta-se em fechar um olho, ou usar qualquer coisa cobrindo a vista, para simular a cegueira. Mas com Lon Chaney, a coisa é differente! Elle faz questão de impressionar a quem o vê, mas impressionar com alguma coisa de realidade. De sorte que na referida fita, surgiu elle de olhos abertos mas visivelmente, com um delles affectado, e isto o conseguiu a custo de verdadeiro sacrificio, sujeitahndo-se á applicação de um preparado chimico, doloroso nos seus effeitos, comquanto inoffensivo ao orgão visual. Em "The Black Bird", apparece elle completamente aleijado, curvo da espinha dorsal e a arrastar uma perna.
Mas Lon Chaney é tambem um mestre nosso sem o recurso para essas presenças impressionantes. Ao natural, sua arte é riquissima, porque ella é bem um artista completo. Em "Rumo ao mar!" em que apparece juntamente com William Haines, Lon Chaney dá-nos um typo de militar realmente apreciavel.
A sua longa pratica no estudo das caracterisações faciaes, fel-o um astro na anatomia do rosto. E é a isto que elle deve o seu grande successo, o que aliás, como menino careteiro, já elle o havia granjeado entre a garotada da visinhança.


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