BOB DYLAN

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 1972

Neste texto foi mantida a grafia original


Acho que a melhor maneira de fotografar Dylan é antecipar a foto e não ficar forçando uma. Fotos estão sempre surgindo e aparecendo ao mesmo tempo, de um modo natural no ambiente que se vive e no curso dos acontecimentos. Se o fotógrafo consegue antecipar as ações e as reações do sujeito que está fotografando, além dos seus movimentos, ele tem todos esses elementos diante da camara para fazer a foto. Quando as fotos são feitas assim, quase sempre ficam melhores que a variedade de poses - elas são mais verdadeiras, com certeza. Quem falou isso foi Daniel Kramer, em 67, depois que passou um ano e meio fotografando Dylan.
Estão acontecendo alguns fatos hoje em dia que deixam a cabeça de muitas pessoas em crise. Esses fatos fazem essas pessoas duvidar que existe uma cultura da reflexão dos anos 60 em diante, como se a única maneira de ver a vida fosse através da prática. Mas uma coisa não existe mais sem a outra. O que confunde é que, às vezes, as pessoas na sua violenta urgência de viver se tornam ansiosas e inúteis, então sentem-se culpadas quando pensam somente na teoria. E se alguém faz do pensamento e da ação uma coisa única chamado modo-de-viver, passa a ser considerado mais culpado. Ou louco, pelos mais cultos. Por exemplo, a tentativa de mostrar numa canção toda uma série de fatos que estão acontecendo ao nosso lado no dia a dia. Tentando deixar também claro que na história que está acontecendo (ou fazendo), quando não muda o objeto da indagação, mudam os métodos que o autor usa para interpretar sua pergunta. E procurando chegar por sua própria experiência não a um modo de ver ou interpretar a vida - mas, se usando, alcançar um novo modo de vida mais justo e mais livre.
Talvez, a visão da possibilidade de uma nova relação na vida tenha sido antecipada por esta forma teórica e prática de pensar. E, se hoje, uma pessoa consegue sentir uma sociedade diferente, esta sociedade foi antecipada. Pelo modo como isso se manifestou em outras pessoas que usaram a capacidade que tinham (no caso aqui de escrever canções) para contar o que estavam sentindo ou vendo.
E compreender uma pessoa dentro do tempo em que ela vive é a mais profunda experiência que se pode tentar. Com suas palavras, ele consegui delinear as experiências de uma geração inteira e compreende-la a partir dele mesmo. E é bem provável que por causa disso Bob Dylan não aceitou ser líder de coisa alguma, ou como ele mesmo diz, preocupado em deixar claro que não é nada de tão novo assim - abra os olhos e os ouvidos e você será influenciado, não há nada que possa fazer a esse respeito... as respostas estão vindo com o vento... eu simplesmente uso as coisas que vão acontecendo no meu caminho e jogo para fora.
Todos nós estamos vivendo dentro de um mundo onde a sensibilidade chama atenção porque assusta a rotina das pessoas: a maioria delas se amedronta com a menor manifestação de inteligência que surge em qualquer campo. Parece que só pode se esperar de outra pessoa é que ela não dê trabalho, que faça alguma coisa que não nos obrigue a pensar. Usar a cabeça é somente um modo de falar.
Mas paralela a essa maneira silenciosa de ver as coisas, sempre existiu o barulho que uma consciência faz. Principalmente quando descobre que a autoridade que a maioria obedece é a mesma que essa maioria, ao mesmo tempo, não respeita em nenhum nível.
Uma consciência perturba muita gente pelo fato de perguntar se algum de nós tem alguma coisa nova para mostrar - incomoda ouvir alguém dizer que o trabalho que fazemos também é desprezado até por quem nos paga para fazê-lo.
A consciência que Dylan coloca no que fala não fica se justificando, como forma de insegurança. Ela pede para ser desmentida insinuando que muitas cabeças seriam explodidas se fosse descoberto algum dos sonhos que passam por dentro delas. "Mas está tudo bem, mãe. Isso é a vida, somente a vida". "Não se está ocupado nascendo. Se está ocupado morrendo".
Bob Dylan não tem como base uma filosofia que ele aprendeu primeiro na teoria e usou depois na prática para responder a todas suas perguntas, no lugar disso ele possui sentidos, uma coisa mais simples e real porque todo mundo já nasce com cinco.
Ele prefere o individualismo enquanto for o caminho que cada pessoa possa ser para encontrar o seu destino. O que não pode ser admitido pela sua cabeça é a uniformização. Além da pessoa o problema, maior está nos processos de submissão, de estandardização que cada individuo escolhe: só porque tem alguma consciência que faz parte de um rebanho o homem se sente menos culpado. E aceita, pelo menos, a proposta mais alta para fazer parte dêle.
É um modo de pensar sofisticado ter como base o individualismo, mas é uma tentativa de se manter em pé. Como o individuo que se descobre e por causa disso escolhe seu proprio caminho.
Cada pessoa usa as ferramentas que sabe manejar para satisfazer a sua sensibilidade (ou a dos outros), que pode ser uma casa ou uma canção. Dylan usa as que conhece para construir a imagem do seu mundo:
— Daniel Kramer quando cumprimentou Dylan pela primeira vez, notou uma coisa engraçada —... nós apertamos as mãos, e achei estranho como seu aperto era delicado. A sensação que ele projeta na tv é uma sensação forte. Seu aperto de mão suave parece uma coisa que não tem nada a ver com ele.
— A voz de Bob Dylan parece que vem das montanhas, soa como velha no sentido de vivida. As vezes é mais um lamento um pouco rouco, modificado de vez em quando pelo barulho da garganta. É uma voz enferrujada e sem cuidados. Pode soar aborrecida mas sem o som de uma queixa. E quase nunca murmura. Se acredita nela porque não tem um tom profissional. Talvez uma pessoa com essa voz nunca pudesse ser um cantor. Mas ela facilita as coisas quando não se gosta dela, porque se fica procurando alguma coisa a mais. Então se passa a prestar mais atenção no que a voz está dizendo.
— Ele se acompanha com um violão, que ele usa muito mais do que toca, no sentido convencional do termo. Seus arranhões nas cordas são para ajudar a deixar claro o que está dizendo naquele momento na canção.
— Quando sopra a gaita, o som fica diferente, como se fosse mais um modo de sentir que aparece na música. Algumas vezes para mostrar um tipo de tristeza ou uma alegria do tipo relaxada. E muitas vezes o sentimento novo que a gaita vem trazendo aos poucos parece mais ternura ou tranquilidade.
Se a arte reflete a realidade, ela a reflete com muita antecipação. E não há antecipação que não contribua de alguma maneira para provocar o aparecimento daquilo que anuncia.
A antecipação só tem compromisso com o talento. A primeira coisa que o artista que sabe que na frente dos outros mostra é que ele não se preocupa com isso. O seu talento lhe dá uma certeza: a certeza de que sempre existe uma idéia melhor.


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