OS ANARQUISTAS SAEM DO LIMBO

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 11 de fevereiro de 1986

Da reportagem local

Se a utopia de hoje é a realidade de amanhã, como defendem os anarquistas, há bons motivos para que o Centro Cultural Social - um dos raros redutos anarquistas que sobreviveram às últimas duas décadas - possa sonhar, ainda com a volta dos velhos tempos, em que libertários como Edgard Leuenroth (1881-1968) e Praeativo Raimundo Soares (1871-1947) agitavam a bandeira negra do movimento.
Reinaugurado há quase um ano, em abril de 1985, o CCS, instalado em duas modestas salas de um prédio do antigo bairro operário da zona leste de São Paulo, no Brás, reinicia, agora, seus contatos internacionais. "Tudo para restabelecer o sentimento de solidariedade entre os trabalhadores do mundo", como justifica o secretário-geral do Centro, Jaime Cubero, 58, sapateiro de profissão.

Intelectuais

Animado com a reabertura do CCS, o anarco-sindicalista espanhol Manoel Olmedo Domillero, do secretariado geral da AIT (Associação Internacional de Trabalhadores) que, em suas origens, congregava o que Lauenroth chamava de "estadistas autoritários" (marxistas) e "antiautoritários contrários ao Estado" (anarquistas) - veio a São Paulo, para saber como funciona esse pequeno Centro, com pouco mais de sessenta filiados.
Desnecessário dizer que o secretário da AIT não viu, aqui, a agitação necessária para um "putsch" anarquista ao estilo do início do século, quando operários promoviam greves e produziam suas peças teatrais para o lazer, aliás o ponto de partida para a criação do CCS, em 1933, época em que os autores como o sapateiro autodidata Pedro Catallo (1900-1969) faziam o maior sucesso com peças como "A Insensata", "A Madrid" e "Uma Mulher Diferente".
Nos anos 30, peças escritas por eles eram normalmente encenadas no teatro Colombo, inaugurado em 1908 e demolido após um incêndio na década de 60. Os jornais, na época, criticavam o fato de a municipalidade ceder o luxuoso teatro, localizado na avenida Rangel Pestana (zona Leste de São Paulo), a operários. Os CCS funcionava como um centro aglutinador de talentos e local de conferências de anarquistas célebres como José Oiticica (autor de "A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos") e o próprio Lauenroth, que chegou a fazer palestras para os operários do Brás.

Anarquistas conservadores

Hoje, o CCS - localizado na mesma rua de origem e no mesmo prédio (rua Rubino de Oliveira, 85) - ainda pretende manter o mesmo espírito, mas os tempos são outros. "Não posso dizer que o Centro é anarquista, porque existem associados que não estão ligados ao movimento, apenas colaboram dando cursos, fazendo palestras, enfim, comparecendo às nossas reuniões", diz o secretário-geral, Jaime Cubero.
Entre os nomes que participaram das conferências, estão figuras respeitadas no meio universitário, como o professor Maurício Tragtemberg (que fez uma palestra sobre a Revolução Russa), a socióloga Lúcia Barreto Bruno, da PUC, ou Miriam Moreira Leite, historiógrafa da USP. Desde a reinauguração, poucos operários aparecem, "mas posso garantir que todos eles têm o maior interesse pelo movimento operário", diz Cubero.
Os dezessete anos em que o CCS esteve fechado - de 1968-1985 - contribuíram, ao que parece, para uma mudança radical no perfil dos anarquistas paulistanos. Cubero revela que ainda colaboram com o centro os remanescentes do movimento anarco-sindicalista do início do século - como o chofer de táxi Antonio Padilha, o vigia Antonio Ruiz - ou heróis da resistência fascista na Espanha franquista, como o italiano Carlos Aldeghieri. "Mas a maioria dos frequentadores é formada por gente jovem", diz, não escondendo sua desaprovação à corrente dos anarquistas-individualistas que participaram das reuniões prévias para a reabertura do Centro.

Quase tudo

"Não sei, eles vinham com umas idéias malucas ligadas à sexualidade e outros temas, quando nos reuníamos na sede da UBE (União Brasileira de Escritores), antes de reabrimos o Centro". Convém lembrar que mesmo na década de 60, segundo frequentadores do CCS, a corrente dos individualistas não era bem vista pelos anarco-sindicalistas.
O poeta Roberto Piva, 47, era um dos frequentadores inseridos na primeira categoria. Ele lembra que, por volta de 1962 ou 1963, tomava o bonde e comparecia às conferências junto de amigos como o poeta Roberto Bicelli. "O panorama cultural de São Paulo, na época, era dominado pelo Partidão (PCB) e o grupo anarquista do CCS era uma clareira para o debate de idéias, extraordinariamente arejado, onde se podia discutir tudo, ou quase tudo".
O "quase tudo" fica por conta do que Piva classifica de "ranço moralista do velho anarquismo". Ele conta que, certa vez, sugeriu uma conferência sobre o tema homossexualidade e, indignado, um velho anarquista do Centro levantou-se e disse: "Isso é contra os nossos princípios". Entretanto, o secretário-geral, Cubero, afirma que inexistem, hoje, temas considerados como um tabu. "Fomos os primeiros a falar de feminismo, de amor livre e, para mim, o anarquismo, apesar das diferenças, continuando sendo, fundamentalmente, uma atitude ética em face da injustiça e um movimento contra o Estado".

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