Prof. Silveira Bueno
Em
toda as partes do mundo a giria dos vagabundos e dos ladrões
é das mais estudadas. Apresenta um carater internacional,
arcaico e hermetico: prova o primeiro caracteristico a organização
mundial da classe e o comercio constante de individuos, chefes e
dirigentes, cada qual a trazer a sua contribuição
propria. Prova o segundo a antiguidade da associação,
diriamos hoje, da sindicalização de tais operarios.
Prova o terceiro o cuidado de manter os iniciados a coberto de estranhos,
possivelmente, perigosos a seus intuitos. Dos paises europeus os
que mais concorreram foram a Italia, a Espanha e a França.
Mais tarde apareceram as contribuições da Alemanha
e da Inglaterra. O que me leva a estudar esta giria não é
somente a curiosidade de sua linguagem de grupo social, mas, sobretudo,
o intuito de explicar o aparecimento e a significação
de certos termos, já hoje, correntes na lingua geral do país,
que vieram, sem duvida alguma, do contato com o argot dos mendigos
e dos malfeitores. Já em outros artigos me tenho ocupado
destes assuntos e quero trazer ao conhecimento dos interessados
mais este, resultado de novas pesquisas e leituras.
Não faz muito tempo que apareceu entre nós a palavra
CAMUFLAR, no sentido de ocultar, disfarçar para não
ser reconhecido. Atribuíram alguns à guerra de 1914,
epoca em que se começou a divulgar tal termo. É de
origem e de data muito antiga, pertencendo ao argot dos malfeitores
italianos, criado no norte da Italia, no dialeto franco-provençal,
CAMUFFARE e depois levado à França CAMOUFLER. Daqui
certamente foi que nos chegou, dando-se como galicismo. A historia
da palavra é mais longa do que isto: se o termo apareceu
no norte da Italia, vinha já de epoca muito anterior, da
Alemanha; a raiz CA é o que resta de CAPO, cabeça,
em italiano; mas MUFFARE forma-se de MUF, germanico, que se encontra
no moderno MUFFELEN, revestir, enrolar, cobrir, vender e no inglês
MUFFLE, no francês MOUFLE. Já no latim medieval apareceu
a forma MUFFULA, especie de luva, de guante. Retomando, pois, os
elementos: CA + MUFFARE, significa o italiano: COBERTA DE CABEÇA.
O intuito era esconder, ocultar, para não ser conhecido.
Com esta significação é que pertence ao argot
dos malfeitores. Muito mais nova é a palavra BAITA, sinonimo
de grande, imenso, enorme: um BAITA homem, uma BAITA mulher, etc.
Vamos encontrar a mesma voz na giria dos gatunos franceses, vindo
tambem do norte da Italia, mas com pronuncia um pouco diversa: dizem
BAITA, acentuando o I, dando, portanto, três silabas ao vocabulario:
BA + I + TA.
O celebre linguista italiano ASCOLI, estudando os dialetos do norte
da Italia, que muito se assemelham aos do sul da França,
e por isto, deu o nome de franco-provençais, explica o termo
BAITA: é o mesmo que CASA. Mas como foi que CASA, isto é,
BAITA, passou a significar GRANDE, ENORME? Muito facilmente: recordem-se
os leitores das nossas experiências semelhantes; É
UM BONDE! É UM BARCO! Ouvimos constantemente tais expressões
comparativas: "uma mentira do tamanho de um bonde; um bolo
que era um bonde grande!" Do mesmo modo, tomaram BAITA (casa)
por termo de comparação e o vocabulo passou a significar
grande, enorme. Daí o dizermos ainda agora: um BAITA doce!
E notem os leitores que a apalavra não tem genero, servindo
para qualquer deles: um baita homem, uma baita mulher. Entre os
motoristas, militares e pessoas que já passaram pela caserna,
designa-se o revolver por BERRO, BERRANTE, BERRADOR. É o
que tambem se passa em italiano e francês: ABBAIATO, BAYAFE,
de ABBAIARE, ABOYER, latir, berrar. O nosso termo é um decalque.
BOLINAR é outro termo e dos mais interessantes: já
encontrei a explicação de que vinha da linguagem nautica,
IR, NAVEGAR À BOLINA, isto é, em zigue-zague, não
em linha reta e daqui, sem destino certo à aventura. Este
significado explicaria muito bem o atual sentido do verbo, penso
que muito conhecido dois leitores. Mas a origem é outra:
provem do italiano BOLINO e tambem escrito BURINO, instrumento de
ferro e aço, o nosso buril, que serve para limar, entalhar,
etc. Na giria dos ladrões passou a designar, primeiramente,
FURAR PAREDE para roubar e secundariamente, o proprio roubo e depois
o furto. Nesse sentido, numa multidão, num cinema, num teatro,
numa igreja, etc., o ladrão devia, antes de tudo, apalpar
a vitima para ver onde estava a carteira, a jóia, o objeto
que desejavam furtar: é justamente o significado de BOLINA,
BOLINAR, na moderna giria brasileira. Não me parece, portanto,
que venha da lingua nautica. Há um guarda de jardim, meu
conhecido, que sempre tem consigo um pedaço de pão
para mastigar. Cada vez que lhe falo do apetite, responde-me sempre:
"Enquanto estou MORFANDO, estou vivo". MORFAR, comer,
é palavra muito empregada pelo nosso povo. Outros mais chegados
à policia, empregam MORFAR e tambem MANJAR com o significado
de vigiar, observar os atos de alguem suspeito. Chegou-nos a palavra
na França, mas foi feita na Italia, com elementos do alemão
antigo: MORPFEN, comer, apresentar e já em holandês,
MORFEN. Ambas estas formas supõem MURF, boca e daqui o italiano
MORFIRE, MORFIA, SMORFIA e o francês MORFIER. Adaptou-se o
verbo ao português e fez-se MORFAR, COMER. Outra palavra que
nos veio da mesma procedencia é ESGANAR, estrangular e tambem
esfomeado, faminto: fulano é esganado por doce; fulano foi
esganado pelo assaltante, etc. O italiano SCANNARE forma-se de S-CANN-ARE
onde se encontra a palavra CANNA como sinonimo de GARGANTA. Basta
compreender os termos para se estender o vocabulario todo. TRUCO,
TRUCAR, no sentido de enganar, primeiramente, no jogo, TRUCAR em
falso e depois em sentido geral, TRUQUES, golpes, recursos, expedientes.
Do italiano TRUCCARE, TRUCCO, foi divulgado pelos vagabundos, mas,
a palavra prende-se ao alemão DRUCK. Truccare significa TROCAR,
berganhar, depois ENGANAR, mormente no jogo. No sentido de ventosidade
é puramente onomatopaíco. Do jogo veio-nos tambem
CASSINO: o italiano CASINO, cuja pronuncia é CAZINO, certamente,
por causa dos dialetos do norte, aparece já nas obras de
Rabelais sob a forma de CASSINE. No dialeto dos malfeitores franceses
ainda conserva a sibilante surda: CASSINO o que aduzo para corrigir
o ensino anteriormente dado, atribuindo a pronuncia CASSINO a uma
influencia espanhola. É mais antiga a palavra, anterior ainda
à colonização da America do Sul. Em outra oportunidade
voltarei ao assunto.
|