JOSÉ AMÉRICO, PATRIARCA DA LIBERDADE
O homem que derrubou Vargas completa 90 anos, lúcido
e sem amarguras, na Paraíba, "Regaço maternal
e doce repouso"
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1977
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Severino Ramos
Correspondente na Paraíba
Num
cenário bucólico, onde entram mar, areias e as montanhas
verdejantes das encostas do Cabo Branco, o ponto extremo da América
do Sul, José Américo de Almeida chega aos 90 anos,
recolhido em sua casa de amplas varandas, onde o silêncio
é invariavelmente quebrado pelo trinado de um bando de pássaros
que passam o dia se alimentando dos frutos de seu pomar. Um jardim
de papoulas, bougavilles e sempre-vivas, por ele mesmo cuidadas,
estendendo-se à sombra de coqueiros e uma frondosa gameleira
ergue-se, imponente, à entrada do portão principal
da residência deste homem que participou durante mais de meio
século, dos mais importantes episódios de nossa vida
republicana.
Quando se afastou da vida pública, José Américo
de Almeida recolheu-se a essa espécie de retiro voluntário,
e logo ficou conhecido no Brasil inteiro como "O Solitário
de Tambaú". Contudo não há noticia de
solidão mais frequente do que a de José Américo,
que recebe de manhã à note visitas das mais diversas
figuras e personalidades, estudantes, escritores, jornalistas, políticos,
homens do povo, turistas, Ministros de Estado, Generais, comandantes
de Exército. O Governador da Paraíba vai à
sua casa, no mínimo, duas vezes por semana. Todos os governadores
do Estado, nos últimos 16 anos passaram por lá, e
até presidentes da República.
A sua impressionante vitalidade física e mental fazem dele
um dos homens mais lúcidos do País, e também
um dos mais bem informados. Políticos de Brasília,
deputados jovens da Arena ou do MDB chegam aqui e se mostram surpresos
com a sua visão dos fatos e seu conhecimento dos acontecimentos
mais recentes nas altas esferas nacionais.
Nascido a 10 de janeiro de 1887, José Américo de Almeida
é uma personagem viva da História do Brasil; o escritor
que deu novos rumos ao romance nordestino, precursor do regionalismo;
o Ministro de Estado que, por duas vezes - em 32 e 54 - salvou toda
uma região de ser dizimada pela seca; o revolucionário
de 1930, artifíce de um dos mais autênticos movimentos
de liberalização institucional e de novas conquistas
democráticas; o político que com uma entrevista derrubou
em 1945 um regime de força e de repressão que sufocara
o País. Hoje ele passa o aniversário ao lado do filho
- General Reynaldo de Almeida - da nora, dos netos, dos amigos.
Fugiu de tudo e foi para a fazenda de um amigo, em Areia, sua terra
natal e também do pintor Pedro Américo.
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O
homem no tempo e na história |
Para as gerações mais jovens, absorvidas por outros
valores que emergiram com as transformações atuais,
é preciso situar José Américo de Almeida dentro
de sua época e na dimensão exata do papel que ele desempenhou
em favor do nosso desenvolvimento político, cultural e social.
Uma síntese do que ele foi: Promotor Público, aos 24
anos. Procurador Geral do Estado, aos 27 anos, Consultor Jurídico
Vitalício, em 1924; Secretário Geral do Governo de João
Pessoa, em 1929; Interventor da Paraíba e Chefe do Governo
Revolucionário no Norte, em 1930; Ministro da Viação
no mesmo ano; Embaixador do Brasil no Vaticano, em 1934, que renunciou
antes de assumir; Senador da República, em 1937; novamente
Senador em 1945; Presidente nacional da UDN, em 1946; Governador da
Paraíba, em 1950; novamente Ministro da Viação,
em 1952; Reitor da Universidade da Paraíba (da qual foi fundador),
em 1956; eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1967.
Seus livros: Reflexões de uma Cabra, 1922; A Paraíba
e seus Problemas, 1923; A Bagaceira, 1928; O Ciclo Revolucionário
do Ministério da Viação, 1934; Boqueirão,
1935; Coiteiros, 1935; Ocasos de Sangue, 1954; A Palavra e o Tampo,
1965; Discursos do seu tempo, 1965; O Ano do Nego, 1965; Eu e Eles,
1970; Quarto Minguante (poesias), 1975; Antes que me Esqueça
(memória), 1976.
Esta síntese biográfica e bibliográfica explica
porque este homem, mesmo que o quisesse, jamais conseguiria se isolar
ou se ausentar do panorama político e intelectual do nosso
País. E também ele nunca foi de ausências. Sempre
esteve presente ou à frente dos fatos marcantes assinalados
numa das fases mais agitadas do nosso controvertido quadro político-institucional.
Apesar de não lhe darem tempo (muitas são as visitas
que recebe e nunca deixou de receber ninguém), José
Américo dedica-se há quase 20 anos à preparação
de suas memórias. Já tem prontos ou esquematizados alguns
volumes, mas só agora publicou o primeiro - Antes que me Esqueça
- "a reconstituição da idade ingênua, uma
espécie de renascimento" que abrange as suas primeiras
impressões da infância, "restaurando o tempo vivido
com a sua caracterização elementar".
Já confidenciou a amigos que alguns capítulos dessas
memórias não poderão ser publicados agora, pois
muitos personagens ainda vivem e nem todas as feridas foram de todo
cicatrizadas. E ele tem evitado, nessa quadra da vida, todo assunto
polêmico, por isso sempre tem se esquivado, em suas entrevistas,
a perguntas de natureza política - ou polêmica. Procura
falar sobre literatura, dar uma interpretação pessoal
dos fatos, sem nunca procurar comprometer, hoje, a sua autoridade
e a sua palavra em favor de quaisquer movimentos ou filosofias. Junta-se
trechos de suas obras básicas de carater político, é
possível reconstituir o pensamento deste notável nonagenário.
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A
revolução de 1930 |
"Podia ter sido, realmente, uma revolução, no seu
sentido amplo, com um conteúdo reformista, em vez de simples
mudança do poder, para, restaurada a legalidade, recair tudo
na mesma. Não passou de uma simples revisão, sem alterar
os costumes, nem a estrutura. Apenas substituindo grupos e deixando
alguns traços positivos, como o voto secreto, o voto feminino,
a justiça eleitoral, a previdência social e a erradicação
do caudilhismo nordestino. Devemos, porém, reconhecer que,
se a Revolução de 1930 não mudou a face do Brasil,
inaugurou uma política diferente, pela participação
das massas. As alianças do centro e a política dos governadores
seriam abaladas por essa intervenção. O sindicato teria
sua hora, aliás, sem um programa trabalhista, sem nenhum programa
ideológico. A representação de classe, que poderia
ter sido outra tônica da República nova, foi manipulada
pelo personalismo político baixando o nível da Câmara
dos Deputados. Deu algumas boas figuras, mas o comum era o desclassificado.
"Com a queda dos velhos quadros e o apoio coletivo, até
o desencanto, tudo favorecia a reforma solicitada pelas campanhas
mais ativas que precederam a eclosão armada. Faltou o centro
regulador e as linhas divergentes deixaram de funcionar com a eficácia
manifestada, em outras circunstâncias. Chocaram-se tenentes
e os "carcomidos", prejudicando a obra comum. A Constituinte,
incolor e ambígua, refletiria essa disparidade. (...) Alguns
tenentes egressos do exílio tinha trazido uns fumos de esquerdismo.
O lema "representação e justiça" era
vago e limitado. O clube 3 de outubro deixou de cristalizar um programa.
E não havia uma concepção da democracia moderna.
A vanguarda do movimento nutria tão pouco idealismo que, quase
sem exceção, apoiou o totalitarismo em 1937. Nada de
fator econômico como móvel do golpe; tudo se originou
da ruptura do eixo Minas-São Paulo que monopolizava o Governo
da República. Desfeitos esses elos, organizaram-se novas forças
que venceram pelas armas, apelando para um Estado aguerrido".
(Discurso de posse na Academia B. de Letras, 1967).
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Getulio
Vargas |
"Getúlio Vargas era o contrário do gaúcho
exuberante que dominava pela sedução pessoal. Faltava-lhe
tudo na aparência física e nas próprias maneiras
de representar a imagem de um condutor. Deixou de adquirir uma expressão.
Para o povo era o Chucu, isto é, sem sabor, o neutro. Assim
o apelidavam, menos pelo formato do que pela desconfiança na
ação. Por sua simplicidade, seria também o Gegê,
o íntimo, o inofensivo, o bonzinho. Encolheu-se. Omitiu-se
um conselho secreto, de que eu fazia parte, tomava as deliberações
mais importantes. Só se afirmaria, muitos anos depois, no exercício
do poder pessoal. E mesmo aí o culto da personalidade seria
simplesmente publicitário. Era uma natureza complexa, difícil
de definir, por sua versatilidade. A melhor forma de dirigir é
fazer-se compreender, ser claro e direto, com rapidez e decisão.
Aprecio algumas particularidades que explicam melhor a sua formação.
Lidei com ele muitos anos e sempre o observei, interessado em decifrá-lo.
Perdura sua fama, mas pouco se sabe de sua personalidade.
"O aspecto tranquilo aparentava calma, às vezes, trágica.
Era tido como homem frio. Puro engano. Pude surpreender sua emotividade.
A forma mais aguda, se estava contrariado, era o assobio, andando
e assobiando, dentro do gabinete, de maneira quase imperceptível,
como um sopro de fadiga. Quando arqueava as sobrancelhas ou passava
a mão na face estava intranquilo. E os olhos para cima era
um sinal de dúvida. Se chegava a arroxear-se estava preso de
uma paixão reprimida. Jamais alterou a voz; não sabia
gritar com humildes nem com poderosos. Nenhuma impulsividade. Havia
um furor secreto que lhe mudava as feições.
"Não era o tipo reservado que se julga. Ocultava, discretamente,
o pensamento, para não ser discutido. Não era também
o calculista. Ao contrário, esperava tudo das circunstâncias,
deixando que as coisas seguissem sem rumo até amadurecerem
ou se retirarem de cena. E não vacilo em desfazer uma lenda:
a de sua habilidade política. Deverão objetar que é
um absurdo. Como poderia ele, sem essa arte, deter o poder, ilimitadamente,
interrompendo um sistema de temporariedade democrática? Tinha
sorte para galgar as posições e era destituído
de qualidade para conservá-las. Em 1937 sofrera tal desgaste
no governo que perdera a base parlamentar e o apoio dos grandes Estados.
Foi preciso que o Ministro da Guerra desse um golpe de força
derrubando as instituições para mantê-lo no Catete.
Feito ditador, seria deposto em 1945: sem um tiro solidário.
Nem todos os poderes concentrados o consolidariam. Em 1954 estava
liquidado. Desesperou e foi levado ao suicídio por estar desamparado
de qualquer defesa'. (idem);
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O
golpe de 37 |
"Aceitando minha candidatura à Presidência da República
em 1937, não deixei de avaliar à delicada situação
que teria pela frente. Os elementos mais chegados ao presidente Getúlio
Vargas já se movimentavam, em plena conspiração,
preparando um golpe de Estado que o mantivesse no poder, além
do período para que fora eleito. Eu começava de olhos
abertos, se bem que confiante. O antigo ditador que já sucedera
a si mesmo não reunira condições para repetir
a parada. Politicamente, estava liquidado. Viera perdendo terreno
desde o início do governo e, por último, agravara-se
a situação. O condutor de tantos anos perdera o leme
e não tinha mais voz ativa. Era eu, no páreo sucessório,
o favorito dos revolucionários de 1930 que ainda ocupavam grande
área de domínio político. (...) Os conspiradores
aficiosos não paravam. Renasciam suas esperanças e amiudavam-se
os indícios de novos aliciamentos. Eram poucos, mas ativos.
E tinham sob seu controle todo o oficialismo que servia, automaticamente,
aos objetivos visados. (...) O general Eurico Dutra, ministro da Guerra,
estivera distante de toda a maquinação. Mas, trabalhado
pelo general Gois Monteiro, que o fizera ministro, acabara colocado
no centro da conspiração, como seu executor. Achava-se
apalavrado. Só então compreendi que estava perdido.
Já tinham tomado todas as medidas, num aparato de forças
que ampliava o raio de ação, para que a investida não
corresse nenhum risco. Nunca um combate se revestiu de mais segurança.
Era o estado de sítio; era o estado de guerra baseado no plano
Cohen, de uma falsidade flagrante.
"Numa reunião do comitê, revelei minhas dúvidas
sobre a possibilidade da eleição. Ninguém queria
convencer-se desse risco. Voltei-me para Batista Luzardo: "Ouçamos
o ministro da Guerra. Se quer, iremos juntos. Vamos a sua casa e ele
dirá". Lá fomos. Dito e feito. Fui logo de entrada
soltando: "Não será por minha causa que se perca
a democracia no Brasil. Se depende de mim, não há questão.
Abro mão de tudo". Vendo-me entrar em companhia de um
que já era senhor do segredo, pensou que eu já estava
a par de tudo e desembuchou, de dentes cerrados:
"Em 1889 o Exército ouviu o apelo do povo e agora vai
fazer o mesmo.
"Não perdi a linha mas também não me contive
que não retrucasse: "Em 1889 o povo ficou mais bestificado;
agora nem isso se dá, porque ignora tudo. Está na rua
a meu favor. O sentimento público revela-se da forma mais viva,
por já achar-se politizado". Insisti na minha proposta,
mostrando o desastre que seria o decesso de nosso nível político.
Diante de meus argumentos saiu-se ele com esta, como se estivesse
dizendo a coisa mais natural deste mundo: "Agora só o
Presidente resolve. Já estou comprometido com ele".
"Era um ministro e aprendera que a disciplina não passava
de uma regra de obediência. Considerava o pacto irrecorrível.
Descoberto, o ministro da Guerra tomou-se de apreensões. A
surpresa seria a primeira condição de êxito de
um golpe branco. E o fato consumado teria aceitação
imediata. Deu-se pressa o general Eurico Dutra em ir ao Palácio
Guanabara para mostrar a necessidade de antecipação
do golpe que estava marcado para o dia 15 de novembro, por falsa analogia
com a Proclamação da República, devendo, por
motivo da denúncia, recuar para 10 do mesmo mês, antes
que se organizasse a resistência. (...) Fizeram-se os últimos
arranjos. Retocou-se a Constituição tirada do bolso
e tudo ia consumar-se, sem apelação possível.
O sistema coercitivo impedia qualquer manifestação.
(...) "Fui despertado no meu quarto, de manhãzinha, para
ter conhecimento do sucedido. Não me alterei. Deus me concedeu
a virtude de saber reconhecer os seus desígnios. É o
dom da aceitação do irreparável. Foi um descanso.
Respirei das fadigas da campanha, depois de tantos incômodos,
e regressei, satisfeito, à minha obscuridade. Não me
considerava derrotado; fora queimado. Sentia-me vítima de um
poder mais alto, como se estivesse soterrado por um elemento da natureza
(...) O povo recebeu a surpresa com a mesma filosofia: poder é
poder. De minha parte, não podendo passar à ação,
não iria perder a cabeça. Não adiantava gritar
e soara o toque de silêncio. Eu Não era um frustrado.
Era um desarmado. (...) Era dia de sessão no Tribunal de Contas.
Como se nada tivesse sucedido, saí para meu trabalho, com um
carro de polícia atrás, a vigiar-me. Nenhuma novidade
na rua. O povo de 1889 e 1937 estava ausente. Não se mexeu.
A democracia era extirpada com as suas raízes e nem choro havia.
Não vi gente andando, nem parada. Nenhum movimento. Sucedeu
a mesma coisa que iria suceder em 1945, na deposição
do todo-poderoso desse dia: não se ouviu um tiro". (A
Palavra e o Tempo, 1964).
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A
queda da ditadura |
"Vou contar como as coisas se passaram. O Estado Novo era um
fiasco. Brutalidade, irresponsabilidade, corrupção,
coisas que nunca tinham acontecido. Vendo mundo recobrar a plenitude
democrática, o Estado Novo intentava sobreviver, com outro
rótulo, imitando um processo utilizado pelas ditaduras gastas.
Exercia-se sobre mim uma pressão ininterrupta para que publicasse
um manifesto contra o Estado Novo. Virgilio de Melo Franco chegara
a chamar Juraci Magalhães do Recife, onde se achava servindo,
como pessoa capaz de convencer-me a dar esse passo. Além dos
civis, apareciam oficiais meus amigos, com a mesma exigência,
ao que eu respondia, pilheriando: "Vocês que têm
a espada tratem de desembainhá-la". (...) Até que
uma noitinha, foi Carlos Lacerda visitar-me. Palavra vai, palavra
vem, concluiu que eu estava em condições de falar, e
pediu uma entrevista para o "Diário Carioca". Prometi.
Viesse depois. Veio, e se ditei com segurança o que me vinha
à cabeça, foi melhor a apresentação. Mas,
esse jornal, avaliando o que adviria do meu arrojo, enfrentando o
DIP, não pôde publicá-la. Ocorreu então,
a idéia de uma divulgação simultânea em
vários jornais, raciocinando que seria fácil fechar
um, mas não a imprensa. No princípio, houve boa vontade
da parte de todos, nada menos de cinco, dos mais importantes. Alguma
coisa transpirou. Benjamin Vargas já blaterava contra mim,
jurando represálias. Levou-se tempo. Não se obtendo
a publicação conjunta, ficou tudo suspenso. Enfim, certo
dia, ao pegar o 'Correio da Manhã", depois do café,
lá estava eu em corpo inteiro, fazendo minhas declarações.
Costa Rego, depois de certas providências, inclusive um estoque
de papel, fizera a surpresa.
"Preparei-me para o pior, com o sangue-frio que não me
falta nessas ocasiões. Mas, Getúlio Vargas tonteou.
Supôs que, com meu atrevimento, eu tivesse atrás de mim
uma força poderosa e já não confiava no seu séquito.
O que mais o abalou foi ver Francisco Campos, o autor da "polaca",
de sua esdrúxula Constituição, bandear-se. Conta
Luís Vergara, no seu Fui Secretário de Getúlio
Vargas, o seguinte: "Ao entrar pela manhã, no seu gabinete,
o Presidente passou-me o jornal que tinha sobre a mesa e me disse
de fisionomia contraída: - Já viste isto? Até
o Campos fraquejou". Daí a tempos, os Generais Eurico
Dutra e Góis Monteiro, autores do golpe, iriam depô-lo.
De repente, tudo mudou. Nunca fui tão festejado. Até
rancorosos inimigos correram para abraçar-me. Fez-se um carnaval
na rua. Tiravam os jornais edições sobre edições.
A censura acabara-se. Restabeleceu-se a liberdade da palavra escrita
e falada, quer dizer, o Estado Novo que vivia do silêncio estava
morto". (A Palavra e o Tempo).
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Madrugada
de sangue |
Em 1952, o Nordeste sofria o impacto de nova seca. Getúlio
Vargas reconciliava-se com José Américo e o convocava
para o Ministério da Viação, para fazer face
à nova calamidade. Dois anos depois, o Presidente suicidava-se.
"Despertado pelo telefone, eu mesmo fui atender, pressentindo
más notícias, como triste prognóstico das crises
que desabavam sobre uma situação agonizante. Era uma
voz apagada que me chamava ao Catete, em nome do Presidente, sem dizer
do que se tratava. Já passava de 1 hora. Saí só,
pensando sobressaltado no que poderia ser, conjeturando que já
fosse a eclosão do movimento, de forma inopinada e violenta,
sem embargo do otimismo que reinava nas rodas oficiais, quanto à
segurança do Governo. (...) Já encontrei a postos dois
ministros: Edgar Santos, da Educação, e Hugo Faria,
do Trabalho, ambos ignorando, como eu, o motivo da convocação.
(...) Fomos chamados ao salão de despachos, onde penetramos
justamente no momento em que vinha chegando do outro lado o Presidente
Getúlio Vargas, acompanhado dos demais ministros, menos o das
Relações Exteriores, Vicente Ráo, que estava
ausente. Ocupamos nossos lugares marcados por pastas com a indicação
dos Ministérios, tendo também tomado assento o Marechal
Mascarenhas de Morais, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
Embora um pouco mais magro, o Presidente estava em forma, no seu natural,
sem nenhuma lividez, nem a menor alteração no semblante
ou na voz que refletisse um distúrbio interior. Dir-se-ia um
despacho coletivo, sem qualquer encenação, só
com a diferença que, pouco a pouco, foi sendo rodeada por pessoas
estranhas. Dada a palavra, o general Zenóbio da Costa confessou,
sem rodeios, que um fato novo viera modificar a posição
do Exército em relação ao Governo: dos 80 generais
que serviam no Rio nada menos de 35 já haviam assinado um manifesto
de apoio aos brigadeiros virtualmente sublevados. No seu modo de falar,
cortando as frases, aos jactos, com um vigor impressionante, reconhecia
a gravidade do momento, mas dispunha-se a reagir, se assim fosse decidido.
Ressalvando futuras responsabilidades, advertia, com expressiva insistência:
"Mas haverá derramamento de sangue, muito sangue".
Era um bravo que se curvava à realidade das coisas. Não
mantinha nenhuma ilusão quanto às consequências
da ofensiva. O Presidente estava impassível e impassível
ficou, como se nada tivesse ouvido. O Almirante Renato Guilobel já
não podia ter voz ativa, dada a linha adotada pelos seus camaradas
da Marinha. Tinha um ar discreto de vencido que vinha, lealmente,
confirmar a derrota. E foi positivo: "A Marinha não pensa
em levantar-se nem em depor o Presidente, mas já se manifestou
ao lado da Aeronáutica".
"O Brigadeiro Epaminondas Santos, apesar de sua dedicação,
não ocultou, por igual, a impotência em que se achava,
em vista da unanimidade dominante em sua arma de oposição
ao governo, de arcar com o compromisso de resistência e de luta.
Passaram-se então a ser ouvidos os ministros civis, na ordem
das colocações. (...) E chegou a minha vez. Colhido
de surpresa, minha reação só poderia ter sido
puramente instintiva; mas, já tinha a mente preparada para,
se dependesse de mim, encarar com realismo o colapso iminente. Fora
ao Catete, numa segunda-feira, fora de meu despacho, o que era raro,
sugerir-lhe a conveniência de se licenciar, dando, assim, uma
prova de isenção, até que se esclarecesse o crime
e fossem punidos os culpados. O que mais visava, entretanto, era poupá-lo
aos vexames que lhe seriam impostos, quando já lhe faltava
o controle do governo, de braços cruzados, diante das hostilidades
que o golpeavam. (Nesse ponto, José Américo narra, detalhadamente,
todas as sugestões e debates havidos na reunião, para
depois concluir): Com a mesma aparência calma, o ar tranquilo,
a fala mansa, encerrou o Presidente a reunião com estas palavras
incisivas: "Como não chegaram a nenhuma conclusão,
declaro que aceito a licença. Mas, se vierem depor-me, encontrarão
o meu cadáver".
"Horrorizava-o a idéia de um fim da carreira triunfal
mofino e humilhante. Preferia [?] com sangue a derrota. O plano da
aventura [?] trema contra todas as forças, todas as [?] de
bater-se sozinho, vinha de outros episódios. Dito isto, retirou-se,
sem se despedir, sem nem uma palavra. Tinha então o passo firme,
[?] testa franzida, a fisionomia quase carregada. Era só decisão.
Parecia resignado à fórmula cruenta, conformado com
o alvitre pacificado. Mas premeditava o ato heróico se fossem
[?] feiteá-lo. Receberia a bala qualquer intimação
para deixar o governo. E já tinha guardado o documento dessa
determinação da fibra endômita.
Voltando a casa, ao clarear do dia, saturado de emoções,
não consegui mais dormir. Foram chegando alguns amigos curiosos
da noitada trepidante. E eis, quando, passadas algumas horas, um deles,
aturdido, saltou, com um grito de espanto, precipitando-se para o
rádio que ainda reproduzia a notícia estarrecedora:
"Presidente Getúlio Vargas acaba de suicidar-se".
Corri ao Catete. E por onde passava via um povo estupefato, na maior
consternação, chorando o seu ídolo, o homem simples
que gostava dos simples. (...) Entrei no quarto. Lá estava
ele estendido, muito pequeno, tombado na plenitude de suas energias,
com o peito varado. Não aguentei. Saí por não
poder aguentar. Fora a solução shakesperiana do homem
que, desamparado, despojado de seus títulos, ao despertar,
no ambiente matinal que é um convite de vida nova via fugirem
todas as suas razões de ser, ao impacto das últimas
impressões que lhe eram ministradas. E, então, só
distinguiu o vácuo que o devorou como uma atração
de abismo. Ferira-se no coração, no grande coração
de amigo, que o matara. Não tendo a quem enfrentar, enfrentou
a morte. Deu grandeza ao epílogo". (Ocasos de sangue,
1954)
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A
revolução de 64 |
"Vamos ser justos. Proclamemos os benefícios já
produzidos por essa revolução. Se não promoveu
todo o bem evitou todo o mal. Imaginemos o que seria nossa primeira
guerra ideológica, a mais atroz e catastrófica das lutas
entre irmãos. E levantemos as mãos para os céus
agradecidos pela tranquilidade que voltou depois de tantos sobressaltos;
pelo sangue que não se derramou; pelo restabelecimento da unidade
das classes armadas, garantia da paz interna; pela felicidade de ter
o brasileiro deixado de passar pela vergonha de ser considerado o
mais corrutor e corruto de todos os povos".
(Discursos do seu Tempo, 1965).
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A
imortalidade |
Precursor do romance regionalista, com "A Bagaceira, publicada
em 1928 e que mereceu o elogio consagrador de Alceu de Amoroso Lima,
José Américo de Almeida logo se transformou numa das
nossas mais importantes figuras literárias. O romance ganhou
nova dimensão a partir da sua "iniciativa ousada",
manifestada naquele "grande livro de vestes quase andrajosas",
no dizer do crítico e pensador católico. Em 1967, ganhava
a imortalidade literária ao ingressar na Academia Brasileira
de Letras. Quando lhe perguntam como se fez romancista, ele responde:
- Foi uma fuga, evadindo-me de minha austeridade, para um espetáculo
profano. Estabeleci outra convivência, imaginária, livre
de compromissos, como uma desintegração. Procurando
ser natural, regressei às impressões da infância
que devolveu elementos nativos, para engajar na minha estória.
Experimentaria essa pressão dos fenômenos mais sensíveis
esbatidos pelo tempo, para perderem sua vulgaridade.
Como escritor, como político, com um dos maiores tribunos do
seu tempo, José Américo sempre defendeu a liberdade
de expressão:
- Limito-me a fazer votos pela preservação do que interessa
mais de perto à inteligência que representamos: a liberdade
de expressão. O Congresso goza de imunidades para ter iniciativa
e para as críticas. A representação merece esse
privilégio. O que repugna é a demagogia, por sua insinceridade
e seus venenos. O objetivo da imprensa, como do rádio e da
televisão, é informar e comentar esclarecendo. O espírito
público equilibra-se nessa corrente de divulgação
e poderá atingir a unidade, se não for ludibriado. Sendo
controlado, o jornal desorienta, em vez de educar e organizar opinião.
O que se condena é o excesso de linguagem, é a falsidade,
é a parcialidade ilícita. A cultura dirigida ou sob
censura perde a originalidade e o vigor, não passando de um
padrão monótono. Os doutrinadores mais puros serão,
quanto mais afirmativos, mais sinceros. A palavra é a mais
nobre faculdade do homem, não deve morrer na garganta".
(Discurso de posse na Academia B. de Letras, 1967).
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O
segredo da longa idade |
Perguntei-lhe como se sentia ao alcançar essa idade maravilhosa
dos 90 anos, em plena lucidez, com um vigor físico invejável:
- Devo a longevidade à dieta moral e ao regime alimentar. Não
me desgastei na juventude e conheço meu organismo, sabendo
pela experiência o que lhe faz bem e o que lhe faz mal. Nesse
ponto, sou irresistível, nada que seja nocivo me tenta. Morre-se
muito pela boca.
Recorro, então, ao discurso que fez nas homenagens dos seus
80 anos, quando disse: "A velhice é a maior das minhas
vitórias, que é a vitória contra o eterno, contra
o tempo. Só tenho medo que a cabeça envelheça,
porque poderia faltar-me até os olhos, que eu teria imaginação
para descobrir outros mundos. Sem a cabeça, sem a claridade,
sem a luz, eu nada seria".
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A
terra amada |
Um telúrico, menino de engenho, como José Lins do Rego,
ele nunca se afasta da Paraíba, seu ambiente natural, e explica:
- Aqui sinto meu todo reanimar-se. Encontro o primeiro ar que bafejou
a minha vida; o primeiro sol que entrou na minha vida; o primeiro
caminho, o caminho direito que foi o princípio e será
o fim de minha vida. Já sofri muito. Conheço todos os
espinhos. O poder nunca me deu nenhum júbilo; em vez da ostentação
e do gozo, foi sempre um posto de penosas resistências. Agora
só quero minha Paraíba amada. Só quero o regaço
maternal que será, depois de tantas lutas, o meu final e doce
repouso.
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