JOSÉ AMÉRICO, PATRIARCA DA LIBERDADE

O homem que derrubou Vargas completa 90 anos, lúcido e sem amarguras, na Paraíba, "Regaço maternal e doce repouso"

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1977

Neste texto foi mantida a grafia original

Severino Ramos
Correspondente na Paraíba

Num cenário bucólico, onde entram mar, areias e as montanhas verdejantes das encostas do Cabo Branco, o ponto extremo da América do Sul, José Américo de Almeida chega aos 90 anos, recolhido em sua casa de amplas varandas, onde o silêncio é invariavelmente quebrado pelo trinado de um bando de pássaros que passam o dia se alimentando dos frutos de seu pomar. Um jardim de papoulas, bougavilles e sempre-vivas, por ele mesmo cuidadas, estendendo-se à sombra de coqueiros e uma frondosa gameleira ergue-se, imponente, à entrada do portão principal da residência deste homem que participou durante mais de meio século, dos mais importantes episódios de nossa vida republicana.
Quando se afastou da vida pública, José Américo de Almeida recolheu-se a essa espécie de retiro voluntário, e logo ficou conhecido no Brasil inteiro como "O Solitário de Tambaú". Contudo não há noticia de solidão mais frequente do que a de José Américo, que recebe de manhã à note visitas das mais diversas figuras e personalidades, estudantes, escritores, jornalistas, políticos, homens do povo, turistas, Ministros de Estado, Generais, comandantes de Exército. O Governador da Paraíba vai à sua casa, no mínimo, duas vezes por semana. Todos os governadores do Estado, nos últimos 16 anos passaram por lá, e até presidentes da República.
A sua impressionante vitalidade física e mental fazem dele um dos homens mais lúcidos do País, e também um dos mais bem informados. Políticos de Brasília, deputados jovens da Arena ou do MDB chegam aqui e se mostram surpresos com a sua visão dos fatos e seu conhecimento dos acontecimentos mais recentes nas altas esferas nacionais.
Nascido a 10 de janeiro de 1887, José Américo de Almeida é uma personagem viva da História do Brasil; o escritor que deu novos rumos ao romance nordestino, precursor do regionalismo; o Ministro de Estado que, por duas vezes - em 32 e 54 - salvou toda uma região de ser dizimada pela seca; o revolucionário de 1930, artifíce de um dos mais autênticos movimentos de liberalização institucional e de novas conquistas democráticas; o político que com uma entrevista derrubou em 1945 um regime de força e de repressão que sufocara o País. Hoje ele passa o aniversário ao lado do filho - General Reynaldo de Almeida - da nora, dos netos, dos amigos. Fugiu de tudo e foi para a fazenda de um amigo, em Areia, sua terra natal e também do pintor Pedro Américo.


O homem no tempo e na história

Para as gerações mais jovens, absorvidas por outros valores que emergiram com as transformações atuais, é preciso situar José Américo de Almeida dentro de sua época e na dimensão exata do papel que ele desempenhou em favor do nosso desenvolvimento político, cultural e social. Uma síntese do que ele foi: Promotor Público, aos 24 anos. Procurador Geral do Estado, aos 27 anos, Consultor Jurídico Vitalício, em 1924; Secretário Geral do Governo de João Pessoa, em 1929; Interventor da Paraíba e Chefe do Governo Revolucionário no Norte, em 1930; Ministro da Viação no mesmo ano; Embaixador do Brasil no Vaticano, em 1934, que renunciou antes de assumir; Senador da República, em 1937; novamente Senador em 1945; Presidente nacional da UDN, em 1946; Governador da Paraíba, em 1950; novamente Ministro da Viação, em 1952; Reitor da Universidade da Paraíba (da qual foi fundador), em 1956; eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1967.
Seus livros: Reflexões de uma Cabra, 1922; A Paraíba e seus Problemas, 1923; A Bagaceira, 1928; O Ciclo Revolucionário do Ministério da Viação, 1934; Boqueirão, 1935; Coiteiros, 1935; Ocasos de Sangue, 1954; A Palavra e o Tampo, 1965; Discursos do seu tempo, 1965; O Ano do Nego, 1965; Eu e Eles, 1970; Quarto Minguante (poesias), 1975; Antes que me Esqueça (memória), 1976.
Esta síntese biográfica e bibliográfica explica porque este homem, mesmo que o quisesse, jamais conseguiria se isolar ou se ausentar do panorama político e intelectual do nosso País. E também ele nunca foi de ausências. Sempre esteve presente ou à frente dos fatos marcantes assinalados numa das fases mais agitadas do nosso controvertido quadro político-institucional.
Apesar de não lhe darem tempo (muitas são as visitas que recebe e nunca deixou de receber ninguém), José Américo dedica-se há quase 20 anos à preparação de suas memórias. Já tem prontos ou esquematizados alguns volumes, mas só agora publicou o primeiro - Antes que me Esqueça - "a reconstituição da idade ingênua, uma espécie de renascimento" que abrange as suas primeiras impressões da infância, "restaurando o tempo vivido com a sua caracterização elementar".
Já confidenciou a amigos que alguns capítulos dessas memórias não poderão ser publicados agora, pois muitos personagens ainda vivem e nem todas as feridas foram de todo cicatrizadas. E ele tem evitado, nessa quadra da vida, todo assunto polêmico, por isso sempre tem se esquivado, em suas entrevistas, a perguntas de natureza política - ou polêmica. Procura falar sobre literatura, dar uma interpretação pessoal dos fatos, sem nunca procurar comprometer, hoje, a sua autoridade e a sua palavra em favor de quaisquer movimentos ou filosofias. Junta-se trechos de suas obras básicas de carater político, é possível reconstituir o pensamento deste notável nonagenário.

A revolução de 1930

"Podia ter sido, realmente, uma revolução, no seu sentido amplo, com um conteúdo reformista, em vez de simples mudança do poder, para, restaurada a legalidade, recair tudo na mesma. Não passou de uma simples revisão, sem alterar os costumes, nem a estrutura. Apenas substituindo grupos e deixando alguns traços positivos, como o voto secreto, o voto feminino, a justiça eleitoral, a previdência social e a erradicação do caudilhismo nordestino. Devemos, porém, reconhecer que, se a Revolução de 1930 não mudou a face do Brasil, inaugurou uma política diferente, pela participação das massas. As alianças do centro e a política dos governadores seriam abaladas por essa intervenção. O sindicato teria sua hora, aliás, sem um programa trabalhista, sem nenhum programa ideológico. A representação de classe, que poderia ter sido outra tônica da República nova, foi manipulada pelo personalismo político baixando o nível da Câmara dos Deputados. Deu algumas boas figuras, mas o comum era o desclassificado.
"Com a queda dos velhos quadros e o apoio coletivo, até o desencanto, tudo favorecia a reforma solicitada pelas campanhas mais ativas que precederam a eclosão armada. Faltou o centro regulador e as linhas divergentes deixaram de funcionar com a eficácia manifestada, em outras circunstâncias. Chocaram-se tenentes e os "carcomidos", prejudicando a obra comum. A Constituinte, incolor e ambígua, refletiria essa disparidade. (...) Alguns tenentes egressos do exílio tinha trazido uns fumos de esquerdismo. O lema "representação e justiça" era vago e limitado. O clube 3 de outubro deixou de cristalizar um programa. E não havia uma concepção da democracia moderna. A vanguarda do movimento nutria tão pouco idealismo que, quase sem exceção, apoiou o totalitarismo em 1937. Nada de fator econômico como móvel do golpe; tudo se originou da ruptura do eixo Minas-São Paulo que monopolizava o Governo da República. Desfeitos esses elos, organizaram-se novas forças que venceram pelas armas, apelando para um Estado aguerrido".
(Discurso de posse na Academia B. de Letras, 1967).

Getulio Vargas

"Getúlio Vargas era o contrário do gaúcho exuberante que dominava pela sedução pessoal. Faltava-lhe tudo na aparência física e nas próprias maneiras de representar a imagem de um condutor. Deixou de adquirir uma expressão. Para o povo era o Chucu, isto é, sem sabor, o neutro. Assim o apelidavam, menos pelo formato do que pela desconfiança na ação. Por sua simplicidade, seria também o Gegê, o íntimo, o inofensivo, o bonzinho. Encolheu-se. Omitiu-se um conselho secreto, de que eu fazia parte, tomava as deliberações mais importantes. Só se afirmaria, muitos anos depois, no exercício do poder pessoal. E mesmo aí o culto da personalidade seria simplesmente publicitário. Era uma natureza complexa, difícil de definir, por sua versatilidade. A melhor forma de dirigir é fazer-se compreender, ser claro e direto, com rapidez e decisão. Aprecio algumas particularidades que explicam melhor a sua formação. Lidei com ele muitos anos e sempre o observei, interessado em decifrá-lo. Perdura sua fama, mas pouco se sabe de sua personalidade.
"O aspecto tranquilo aparentava calma, às vezes, trágica. Era tido como homem frio. Puro engano. Pude surpreender sua emotividade. A forma mais aguda, se estava contrariado, era o assobio, andando e assobiando, dentro do gabinete, de maneira quase imperceptível, como um sopro de fadiga. Quando arqueava as sobrancelhas ou passava a mão na face estava intranquilo. E os olhos para cima era um sinal de dúvida. Se chegava a arroxear-se estava preso de uma paixão reprimida. Jamais alterou a voz; não sabia gritar com humildes nem com poderosos. Nenhuma impulsividade. Havia um furor secreto que lhe mudava as feições.
"Não era o tipo reservado que se julga. Ocultava, discretamente, o pensamento, para não ser discutido. Não era também o calculista. Ao contrário, esperava tudo das circunstâncias, deixando que as coisas seguissem sem rumo até amadurecerem ou se retirarem de cena. E não vacilo em desfazer uma lenda: a de sua habilidade política. Deverão objetar que é um absurdo. Como poderia ele, sem essa arte, deter o poder, ilimitadamente, interrompendo um sistema de temporariedade democrática? Tinha sorte para galgar as posições e era destituído de qualidade para conservá-las. Em 1937 sofrera tal desgaste no governo que perdera a base parlamentar e o apoio dos grandes Estados. Foi preciso que o Ministro da Guerra desse um golpe de força derrubando as instituições para mantê-lo no Catete. Feito ditador, seria deposto em 1945: sem um tiro solidário. Nem todos os poderes concentrados o consolidariam. Em 1954 estava liquidado. Desesperou e foi levado ao suicídio por estar desamparado de qualquer defesa'. (idem);

O golpe de 37

"Aceitando minha candidatura à Presidência da República em 1937, não deixei de avaliar à delicada situação que teria pela frente. Os elementos mais chegados ao presidente Getúlio Vargas já se movimentavam, em plena conspiração, preparando um golpe de Estado que o mantivesse no poder, além do período para que fora eleito. Eu começava de olhos abertos, se bem que confiante. O antigo ditador que já sucedera a si mesmo não reunira condições para repetir a parada. Politicamente, estava liquidado. Viera perdendo terreno desde o início do governo e, por último, agravara-se a situação. O condutor de tantos anos perdera o leme e não tinha mais voz ativa. Era eu, no páreo sucessório, o favorito dos revolucionários de 1930 que ainda ocupavam grande área de domínio político. (...) Os conspiradores aficiosos não paravam. Renasciam suas esperanças e amiudavam-se os indícios de novos aliciamentos. Eram poucos, mas ativos. E tinham sob seu controle todo o oficialismo que servia, automaticamente, aos objetivos visados. (...) O general Eurico Dutra, ministro da Guerra, estivera distante de toda a maquinação. Mas, trabalhado pelo general Gois Monteiro, que o fizera ministro, acabara colocado no centro da conspiração, como seu executor. Achava-se apalavrado. Só então compreendi que estava perdido. Já tinham tomado todas as medidas, num aparato de forças que ampliava o raio de ação, para que a investida não corresse nenhum risco. Nunca um combate se revestiu de mais segurança. Era o estado de sítio; era o estado de guerra baseado no plano Cohen, de uma falsidade flagrante.
"Numa reunião do comitê, revelei minhas dúvidas sobre a possibilidade da eleição. Ninguém queria convencer-se desse risco. Voltei-me para Batista Luzardo: "Ouçamos o ministro da Guerra. Se quer, iremos juntos. Vamos a sua casa e ele dirá". Lá fomos. Dito e feito. Fui logo de entrada soltando: "Não será por minha causa que se perca a democracia no Brasil. Se depende de mim, não há questão. Abro mão de tudo". Vendo-me entrar em companhia de um que já era senhor do segredo, pensou que eu já estava a par de tudo e desembuchou, de dentes cerrados:
"Em 1889 o Exército ouviu o apelo do povo e agora vai fazer o mesmo.
"Não perdi a linha mas também não me contive que não retrucasse: "Em 1889 o povo ficou mais bestificado; agora nem isso se dá, porque ignora tudo. Está na rua a meu favor. O sentimento público revela-se da forma mais viva, por já achar-se politizado". Insisti na minha proposta, mostrando o desastre que seria o decesso de nosso nível político. Diante de meus argumentos saiu-se ele com esta, como se estivesse dizendo a coisa mais natural deste mundo: "Agora só o Presidente resolve. Já estou comprometido com ele".
"Era um ministro e aprendera que a disciplina não passava de uma regra de obediência. Considerava o pacto irrecorrível. Descoberto, o ministro da Guerra tomou-se de apreensões. A surpresa seria a primeira condição de êxito de um golpe branco. E o fato consumado teria aceitação imediata. Deu-se pressa o general Eurico Dutra em ir ao Palácio Guanabara para mostrar a necessidade de antecipação do golpe que estava marcado para o dia 15 de novembro, por falsa analogia com a Proclamação da República, devendo, por motivo da denúncia, recuar para 10 do mesmo mês, antes que se organizasse a resistência. (...) Fizeram-se os últimos arranjos. Retocou-se a Constituição tirada do bolso e tudo ia consumar-se, sem apelação possível. O sistema coercitivo impedia qualquer manifestação.
(...) "Fui despertado no meu quarto, de manhãzinha, para ter conhecimento do sucedido. Não me alterei. Deus me concedeu a virtude de saber reconhecer os seus desígnios. É o dom da aceitação do irreparável. Foi um descanso. Respirei das fadigas da campanha, depois de tantos incômodos, e regressei, satisfeito, à minha obscuridade. Não me considerava derrotado; fora queimado. Sentia-me vítima de um poder mais alto, como se estivesse soterrado por um elemento da natureza (...) O povo recebeu a surpresa com a mesma filosofia: poder é poder. De minha parte, não podendo passar à ação, não iria perder a cabeça. Não adiantava gritar e soara o toque de silêncio. Eu Não era um frustrado. Era um desarmado. (...) Era dia de sessão no Tribunal de Contas. Como se nada tivesse sucedido, saí para meu trabalho, com um carro de polícia atrás, a vigiar-me. Nenhuma novidade na rua. O povo de 1889 e 1937 estava ausente. Não se mexeu. A democracia era extirpada com as suas raízes e nem choro havia. Não vi gente andando, nem parada. Nenhum movimento. Sucedeu a mesma coisa que iria suceder em 1945, na deposição do todo-poderoso desse dia: não se ouviu um tiro". (A Palavra e o Tempo, 1964).

A queda da ditadura

"Vou contar como as coisas se passaram. O Estado Novo era um fiasco. Brutalidade, irresponsabilidade, corrupção, coisas que nunca tinham acontecido. Vendo mundo recobrar a plenitude democrática, o Estado Novo intentava sobreviver, com outro rótulo, imitando um processo utilizado pelas ditaduras gastas. Exercia-se sobre mim uma pressão ininterrupta para que publicasse um manifesto contra o Estado Novo. Virgilio de Melo Franco chegara a chamar Juraci Magalhães do Recife, onde se achava servindo, como pessoa capaz de convencer-me a dar esse passo. Além dos civis, apareciam oficiais meus amigos, com a mesma exigência, ao que eu respondia, pilheriando: "Vocês que têm a espada tratem de desembainhá-la". (...) Até que uma noitinha, foi Carlos Lacerda visitar-me. Palavra vai, palavra vem, concluiu que eu estava em condições de falar, e pediu uma entrevista para o "Diário Carioca". Prometi. Viesse depois. Veio, e se ditei com segurança o que me vinha à cabeça, foi melhor a apresentação. Mas, esse jornal, avaliando o que adviria do meu arrojo, enfrentando o DIP, não pôde publicá-la. Ocorreu então, a idéia de uma divulgação simultânea em vários jornais, raciocinando que seria fácil fechar um, mas não a imprensa. No princípio, houve boa vontade da parte de todos, nada menos de cinco, dos mais importantes. Alguma coisa transpirou. Benjamin Vargas já blaterava contra mim, jurando represálias. Levou-se tempo. Não se obtendo a publicação conjunta, ficou tudo suspenso. Enfim, certo dia, ao pegar o 'Correio da Manhã", depois do café, lá estava eu em corpo inteiro, fazendo minhas declarações. Costa Rego, depois de certas providências, inclusive um estoque de papel, fizera a surpresa.
"Preparei-me para o pior, com o sangue-frio que não me falta nessas ocasiões. Mas, Getúlio Vargas tonteou. Supôs que, com meu atrevimento, eu tivesse atrás de mim uma força poderosa e já não confiava no seu séquito. O que mais o abalou foi ver Francisco Campos, o autor da "polaca", de sua esdrúxula Constituição, bandear-se. Conta Luís Vergara, no seu Fui Secretário de Getúlio Vargas, o seguinte: "Ao entrar pela manhã, no seu gabinete, o Presidente passou-me o jornal que tinha sobre a mesa e me disse de fisionomia contraída: - Já viste isto? Até o Campos fraquejou". Daí a tempos, os Generais Eurico Dutra e Góis Monteiro, autores do golpe, iriam depô-lo. De repente, tudo mudou. Nunca fui tão festejado. Até rancorosos inimigos correram para abraçar-me. Fez-se um carnaval na rua. Tiravam os jornais edições sobre edições. A censura acabara-se. Restabeleceu-se a liberdade da palavra escrita e falada, quer dizer, o Estado Novo que vivia do silêncio estava morto". (A Palavra e o Tempo).

Madrugada de sangue

Em 1952, o Nordeste sofria o impacto de nova seca. Getúlio Vargas reconciliava-se com José Américo e o convocava para o Ministério da Viação, para fazer face à nova calamidade. Dois anos depois, o Presidente suicidava-se.
"Despertado pelo telefone, eu mesmo fui atender, pressentindo más notícias, como triste prognóstico das crises que desabavam sobre uma situação agonizante. Era uma voz apagada que me chamava ao Catete, em nome do Presidente, sem dizer do que se tratava. Já passava de 1 hora. Saí só, pensando sobressaltado no que poderia ser, conjeturando que já fosse a eclosão do movimento, de forma inopinada e violenta, sem embargo do otimismo que reinava nas rodas oficiais, quanto à segurança do Governo. (...) Já encontrei a postos dois ministros: Edgar Santos, da Educação, e Hugo Faria, do Trabalho, ambos ignorando, como eu, o motivo da convocação. (...) Fomos chamados ao salão de despachos, onde penetramos justamente no momento em que vinha chegando do outro lado o Presidente Getúlio Vargas, acompanhado dos demais ministros, menos o das Relações Exteriores, Vicente Ráo, que estava ausente. Ocupamos nossos lugares marcados por pastas com a indicação dos Ministérios, tendo também tomado assento o Marechal Mascarenhas de Morais, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Embora um pouco mais magro, o Presidente estava em forma, no seu natural, sem nenhuma lividez, nem a menor alteração no semblante ou na voz que refletisse um distúrbio interior. Dir-se-ia um despacho coletivo, sem qualquer encenação, só com a diferença que, pouco a pouco, foi sendo rodeada por pessoas estranhas. Dada a palavra, o general Zenóbio da Costa confessou, sem rodeios, que um fato novo viera modificar a posição do Exército em relação ao Governo: dos 80 generais que serviam no Rio nada menos de 35 já haviam assinado um manifesto de apoio aos brigadeiros virtualmente sublevados. No seu modo de falar, cortando as frases, aos jactos, com um vigor impressionante, reconhecia a gravidade do momento, mas dispunha-se a reagir, se assim fosse decidido. Ressalvando futuras responsabilidades, advertia, com expressiva insistência: "Mas haverá derramamento de sangue, muito sangue". Era um bravo que se curvava à realidade das coisas. Não mantinha nenhuma ilusão quanto às consequências da ofensiva. O Presidente estava impassível e impassível ficou, como se nada tivesse ouvido. O Almirante Renato Guilobel já não podia ter voz ativa, dada a linha adotada pelos seus camaradas da Marinha. Tinha um ar discreto de vencido que vinha, lealmente, confirmar a derrota. E foi positivo: "A Marinha não pensa em levantar-se nem em depor o Presidente, mas já se manifestou ao lado da Aeronáutica".
"O Brigadeiro Epaminondas Santos, apesar de sua dedicação, não ocultou, por igual, a impotência em que se achava, em vista da unanimidade dominante em sua arma de oposição ao governo, de arcar com o compromisso de resistência e de luta. Passaram-se então a ser ouvidos os ministros civis, na ordem das colocações. (...) E chegou a minha vez. Colhido de surpresa, minha reação só poderia ter sido puramente instintiva; mas, já tinha a mente preparada para, se dependesse de mim, encarar com realismo o colapso iminente. Fora ao Catete, numa segunda-feira, fora de meu despacho, o que era raro, sugerir-lhe a conveniência de se licenciar, dando, assim, uma prova de isenção, até que se esclarecesse o crime e fossem punidos os culpados. O que mais visava, entretanto, era poupá-lo aos vexames que lhe seriam impostos, quando já lhe faltava o controle do governo, de braços cruzados, diante das hostilidades que o golpeavam. (Nesse ponto, José Américo narra, detalhadamente, todas as sugestões e debates havidos na reunião, para depois concluir): Com a mesma aparência calma, o ar tranquilo, a fala mansa, encerrou o Presidente a reunião com estas palavras incisivas: "Como não chegaram a nenhuma conclusão, declaro que aceito a licença. Mas, se vierem depor-me, encontrarão o meu cadáver".
"Horrorizava-o a idéia de um fim da carreira triunfal mofino e humilhante. Preferia [?] com sangue a derrota. O plano da aventura [?] trema contra todas as forças, todas as [?] de bater-se sozinho, vinha de outros episódios. Dito isto, retirou-se, sem se despedir, sem nem uma palavra. Tinha então o passo firme, [?] testa franzida, a fisionomia quase carregada. Era só decisão. Parecia resignado à fórmula cruenta, conformado com o alvitre pacificado. Mas premeditava o ato heróico se fossem [?] feiteá-lo. Receberia a bala qualquer intimação para deixar o governo. E já tinha guardado o documento dessa determinação da fibra endômita.
Voltando a casa, ao clarear do dia, saturado de emoções, não consegui mais dormir. Foram chegando alguns amigos curiosos da noitada trepidante. E eis, quando, passadas algumas horas, um deles, aturdido, saltou, com um grito de espanto, precipitando-se para o rádio que ainda reproduzia a notícia estarrecedora: "Presidente Getúlio Vargas acaba de suicidar-se". Corri ao Catete. E por onde passava via um povo estupefato, na maior consternação, chorando o seu ídolo, o homem simples que gostava dos simples. (...) Entrei no quarto. Lá estava ele estendido, muito pequeno, tombado na plenitude de suas energias, com o peito varado. Não aguentei. Saí por não poder aguentar. Fora a solução shakesperiana do homem que, desamparado, despojado de seus títulos, ao despertar, no ambiente matinal que é um convite de vida nova via fugirem todas as suas razões de ser, ao impacto das últimas impressões que lhe eram ministradas. E, então, só distinguiu o vácuo que o devorou como uma atração de abismo. Ferira-se no coração, no grande coração de amigo, que o matara. Não tendo a quem enfrentar, enfrentou a morte. Deu grandeza ao epílogo". (Ocasos de sangue, 1954)

A revolução de 64

"Vamos ser justos. Proclamemos os benefícios já produzidos por essa revolução. Se não promoveu todo o bem evitou todo o mal. Imaginemos o que seria nossa primeira guerra ideológica, a mais atroz e catastrófica das lutas entre irmãos. E levantemos as mãos para os céus agradecidos pela tranquilidade que voltou depois de tantos sobressaltos; pelo sangue que não se derramou; pelo restabelecimento da unidade das classes armadas, garantia da paz interna; pela felicidade de ter o brasileiro deixado de passar pela vergonha de ser considerado o mais corrutor e corruto de todos os povos".
(Discursos do seu Tempo, 1965).

A imortalidade

Precursor do romance regionalista, com "A Bagaceira, publicada em 1928 e que mereceu o elogio consagrador de Alceu de Amoroso Lima, José Américo de Almeida logo se transformou numa das nossas mais importantes figuras literárias. O romance ganhou nova dimensão a partir da sua "iniciativa ousada", manifestada naquele "grande livro de vestes quase andrajosas", no dizer do crítico e pensador católico. Em 1967, ganhava a imortalidade literária ao ingressar na Academia Brasileira de Letras. Quando lhe perguntam como se fez romancista, ele responde:
- Foi uma fuga, evadindo-me de minha austeridade, para um espetáculo profano. Estabeleci outra convivência, imaginária, livre de compromissos, como uma desintegração. Procurando ser natural, regressei às impressões da infância que devolveu elementos nativos, para engajar na minha estória. Experimentaria essa pressão dos fenômenos mais sensíveis esbatidos pelo tempo, para perderem sua vulgaridade.
Como escritor, como político, com um dos maiores tribunos do seu tempo, José Américo sempre defendeu a liberdade de expressão:
- Limito-me a fazer votos pela preservação do que interessa mais de perto à inteligência que representamos: a liberdade de expressão. O Congresso goza de imunidades para ter iniciativa e para as críticas. A representação merece esse privilégio. O que repugna é a demagogia, por sua insinceridade e seus venenos. O objetivo da imprensa, como do rádio e da televisão, é informar e comentar esclarecendo. O espírito público equilibra-se nessa corrente de divulgação e poderá atingir a unidade, se não for ludibriado. Sendo controlado, o jornal desorienta, em vez de educar e organizar opinião. O que se condena é o excesso de linguagem, é a falsidade, é a parcialidade ilícita. A cultura dirigida ou sob censura perde a originalidade e o vigor, não passando de um padrão monótono. Os doutrinadores mais puros serão, quanto mais afirmativos, mais sinceros. A palavra é a mais nobre faculdade do homem, não deve morrer na garganta". (Discurso de posse na Academia B. de Letras, 1967).

O segredo da longa idade

Perguntei-lhe como se sentia ao alcançar essa idade maravilhosa dos 90 anos, em plena lucidez, com um vigor físico invejável:
- Devo a longevidade à dieta moral e ao regime alimentar. Não me desgastei na juventude e conheço meu organismo, sabendo pela experiência o que lhe faz bem e o que lhe faz mal. Nesse ponto, sou irresistível, nada que seja nocivo me tenta. Morre-se muito pela boca.
Recorro, então, ao discurso que fez nas homenagens dos seus 80 anos, quando disse: "A velhice é a maior das minhas vitórias, que é a vitória contra o eterno, contra o tempo. Só tenho medo que a cabeça envelheça, porque poderia faltar-me até os olhos, que eu teria imaginação para descobrir outros mundos. Sem a cabeça, sem a claridade, sem a luz, eu nada seria".

A terra amada

Um telúrico, menino de engenho, como José Lins do Rego, ele nunca se afasta da Paraíba, seu ambiente natural, e explica:
- Aqui sinto meu todo reanimar-se. Encontro o primeiro ar que bafejou a minha vida; o primeiro sol que entrou na minha vida; o primeiro caminho, o caminho direito que foi o princípio e será o fim de minha vida. Já sofri muito. Conheço todos os espinhos. O poder nunca me deu nenhum júbilo; em vez da ostentação e do gozo, foi sempre um posto de penosas resistências. Agora só quero minha Paraíba amada. Só quero o regaço maternal que será, depois de tantas lutas, o meu final e doce repouso.

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