O LEITOR MODERNO É O MAIS INCOMPLETO DA HISTÓRIA


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 1991

Dificilmente uma menina que começa a dançar aos 15 anos será uma grande bailarina. Um rapaz que principie na mesma idade o aprendizado do violino tampouco tem grandes chances de virar um virtuose. Após determinada idade, quase ninguém pode se tornar falante nativo de um idioma. A idade impõe limites ao aprendizado de uma disciplina, à aquisição de uma habilidade, à absorção de um saber. A literatura não foge a essa regra. Quem chegar à melhor faculdade de letras sem um domínio, por mais desorganizado e intuitivo, dos elementos que compõem uma obra literária só conseguirá um resultado satisfatório se suas aptidões forem realmente excepcionais.
Sucede que é assim mesmo que a maioria dos alunos chega às faculdades de letras: não verdes, mas prematuramente podres. Literatura -como samba- não se aprende na escola, pelo menos não na universidade. O máximo que esta pode fazer é ensinar disciplinas como crítica literária, história da literatura, filologia, liguística etc. Ou seja, ela pode contribuir para a sistematização de um conhecimento prévio, disciplinando uma maneira de ler. Se falta, por pior que seja, esta maneira, não há o que disciplinar ou sistematizar. O vácuo organizado em regras, jargões, modas e cacoetes é o que se pode chamar de "Crítica Acadêmica Média" , ou seja, aquela capaz de discorrer sobre tudo, exceto, obviamente, sobre o essencial.
Outras características da "CAM": ela dirige-se de preferência aos seus próprios acólitos; seu pretenso objeto, a literatura, não é ponto de partida ou de chegada, mas apenas desculpa; ela não sai à busca de seus objetos nem os descobre, ela os inventa; ela se autoperpetua; ela rende mais do que seu objeto; ela só aposta no seguro; ela deve, em primeiro lugar, lealdade a outras disciplinas, imolando a estas seu objeto; segundo ela, seu objeto deve-lhe gratidão eterna; ela fala muito em sociedade, mas socialmente não existe; por mais correta em termos sintáticos e gramaticais, ela sempre escreve mal.
Não há, porém, por que culpar a "CAM" pelo quer que seja, pois, da mesma forma que seu praticante individual é produto direto de uma carência, ela é não uma moléstia nem seu vetor, mas somente o sintoma de um problema bem maior. A decodificação e posterior recodificação dos valores geralmente aceitos desvestiram a literatura de suas funções corriqueiras que, embora irrelevantes, facultavam o acesso às suas funções reais. Documento da religião, testemunho do passado, exemplo de moral, instrumento de educação, assunto para conversas de salão. A literatura já foi tudo isso. Estabelecido o contato, ela poderia cuidar do resto.
Desfeitas tais conexões, ou ocorre espontaneamente um encontro cujo resultado talvez leve à apreciação de um mundo, como diz Auden em outro contexto, secundário (nem por isso irrelevante ou desligado do primário), ou se programa impositivamente um "rendez vous" sem consequências, ou, o que é mais frequente, nem isso acontece. Não é à maioria, feliz a seu modo, que se colocamos portanto, os dilemas complexos. A minoria, privilegiada à sua maneira, é que depara com complicações quase desumanas.
Pois, se bastavam ao grego antigo a "Ilíada" e a "Odisséia", aos judeus a "Torá" e seus comentários, aos cristãos a "Bíblia" e obras devocionais, ao iluminista a "Enciclopédia" e os clássicos, ao homem culto oitocentista um conjunto restrito de obras-primas e seus complementos, o verdadeiro leitor moderno está proibido de se esquivar do interesse por tudo que já foi ou está sendo escrito.
Além do fato trivial de que se escreve mais e mais, a cada dia um arqueólogo descobre um novo papiro antigo no deserto ou decifra os caracteres de uma língua extinta, um sinólogo traduz outro clássico para um idioma acessível, especialistas reavaliam culturas distantes ou esquecidas, bibliotecários localizam um manuscrito perdido, a KGB abre mais um arquivo, críticos literários de verdade recolocam em circulação um autor injustamente excluído dos cânones. Em outras palavras, o leitor verdadeiramente moderno está condenado a ser o mais incompleto de toda a história.

© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.