STANLEY KUBRICK: A ARTE DA VIOLÊNCIA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 9 de fevereiro de 1978
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Contrapondo-se à violência individual, o Estado impõe
com violência seus parâmetros de normalidade. Suas instituições
distinguem o aceitável do inaceitável e descem impunemente
o cacete nos cidadãos que resistem ao enquadramento. Esta é
a grande lição política de "A Clockwork
Orange", (Laranja Mecânica), o filme de Stanley Kubrick
que os europeus assistiram em 1972 porque nenhuma censura procurou
na época infantilizá-los sob o pretexto de que a história
seria um mau exemplo para os que sublimam uma carga de agressividade.
Anthony Burgess, que publicou há 16 anos o romance do qual
se extraiu o filme, é um inglês intuitivo que beirou
a genialidade a partir de uma premissa banal. Linguista, poliglota
e entusiasta de James Joyce - é o autor de dois ensaios e de
uma edição abreviada de "Finnegans Wake" -
ele procurou forjar para seus personagens uma linguagem bem particular,
recheada de neologismo. Mas o que não passaria de um bom recurso
literário acabou fornecendo à "Laranja Mecânica"
um dos eixos básicos para sua leitura política. E isso
porque os personagens - situados um pouco antes do ano 2000 - exprimem-se
num inglês misturado a sons e a palavras russas. Sintetiza-se
uma aproximação entre a violência estatal das
superpotências. Pouco importa se apenas uma delas, a União
Soviética, possui seus dissidentes oficiais e seus asilos psiquiátricos.
Esse tipo de repressão, denunciado publicamente bem depois
da publicação do livro de Burgess, é comum a
todo Estado que atua segundo o dogma dos detentores de um saber: o
que é bom e o que é mau.
Alex, o personagem central encontra-se com outros marginais de seu
bando numa cafeteria futurista chamada "Korovo Milkbar",
onde se toma um leite vitaminado chamado Moloko, que jorra pelos seios
de uma enorme e sensual boneca. Para qualificar as coisas que lhe
aprazem, ele usa a palavra "Horroshow", em inglês
quer dizer espetáculo de horror. Mas em russo a palavra "Horosh"
significa excelente, perfeito. São pequenas ambiguidades semânticas
que determinam um enfoque moral meio ambiguo do banditismo praticado.
Malcon Macdowell, interpretando o papel de Alex, é uma espécie
de trombadinha da "science-fiction". Rouba, é capaz
de linchar suas vitimas pelo prazer de vê-las sofrer, e não
tem nada de um marginal que apela para a violência a fim de
obter dinheiro. A sociedade em que vive se define pela opulência.
Ele próprio dispõe de um fantástico equipamento
de som para se deliciar com a Nona Sinfonia de seu compositor predileto,
Ludwig Van. É de Beethoven que se trata, embora a partitura
tenha sofrido uma adaptação meio cafona, em que vozes
e instrumentos da orquestra foram substituídos pelos sons de
um sintetizador eletrônico.
Pois bem, Alex é traído por seus companheiros de noitada
e cai em mãos da polícia. Transforma-se no detento 6655321
de uma prisão estatal chamada Prita 84-F. Um belo dia, um psicólogo
chamado dr. Branom propõe que, em troca de uma libertação
antecipada, ele se submeta ao "Método Ludovico",
destinado a curá-lo da violência.
O método seria um recurso narrativo cômico se não
caricaturasse com tanta perfeição teorias cientificas
consagradas. Trata-se do mais puro behaviorismo, que consiste em "condicionar"
o paciente a rejeitar todo comportamento "anormal". Alex
é colocado num palco onde se obrigam a assistir filminhos com
cenas de violência inegável. Mas antes dessas sessões
cinematográficas, injetam-lhe um medicamento que lhe provoca
insuportável náusea. Associando as cenas ao mal-estar
físico, ele neutraliza sua agressividade natural e se transforma
num "cidadão modelo".
Ora, o "Método Ludovico" representa no filme de Kubrick
toda uma teoria pela qual se define a ciência oficial. Ou seja,
a verdade. O ideal do Estado é ter sob seu comando cidadãos
que não contestem uma paz estabelecida. O marginal Alex é
de certa maneira um subversivo. Ao aceitar o conceito de normalidade
que lhe impõem durante o tratamento, ele não tem apenas
aniquilado seu potencial de marginalismo. E sobretudo, um conformismo
social que se manifesta.
A coisa é extremamente sutil. Se o público não
concorda moralmente com a violência gratuita de Alex, o desenrolar
do filme leva o mesmo público a descobrir que o cidadão
pacífico torna-se sinônimo de indivíduo destruído.
É por isso que a dupla Burgess-Kubrick não construiu,
com a Laranja Mecânica, uma simples apologia às violências,
conforme a interpretação dos simplistas e reacionários.
Há nessa postura uma enorme hipocrisia. Do faroeste ao "chefão",
e do policial inglês da década de 40, aos seriados produzidos
para a TV, a violência física já se incorporou
aos ingredientes cinematográficos para que possa constituir
um mau exemplo que o espectador se disporia imediatamente a imitar.
Não é nada disso. O que Kubrick demonstra é que
os marginais e as instituições do Estado (sobretudo
quando elas empunham o bastão da "ciência")
praticam uma violência idêntica.
Bem após o sucesso comercial de "Laranja Mecânica",
um outro filme levantou genialmente o problema, e chegou inclusive
a ganhar um Oscar. Foi "The Flight Over The Cou-Cou Nest".
("Um Estranho no Ninho", no Brasil), de Milos Forman. É
claro que, desta vez, o paciente de um asilo psiquiátrico mostrava-se
com menor ambiguidade e o público ficava a seu lado a partir
das primeiras cenas. Ele era vítima do sistema, como se diz,
do começo ao fim. Mas entre Forman e Kubrick há a proposta
semelhante de não permitir que os qualificativos retrógrados
e de simplismo moralista sejam aplicados apenas aos indivíduos
que se considera "anormais". É preciso igualmente,
interrogar a ideologia que se esconde por detrás da definição
desses parâmetros de normalidade.
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