O CENTENARIO DE POINCARÉ


Publicado na Folha da Manhã - São Paulo, Domingo, 8 de Agosto de 1954

Neste texto foi mantida a grafia original

Há cem anos, ou mais precisamente a 29 de abril de 1854, nascia em Nanci, França, o sabio Henri Poincaré, que faleceu aos 58 anos de idade, a 17 de Julho de 1912, em plena atividade intelectual.
Muito mais que matemático - e foi dos maiores -, pertenceu Poincaré a categoria dos sabios universais, alem de ser ainda filosofo e escritor. À custa de estudos originais fez progredir os mais dificeis capitulos da teoria das funções, então já muito trabalhados na Europa, criando ao mesmo tempo novos ramos da matemática. Assim como o nome sem duvida sugestivo de "analysis situs" desenvolveu a topologia, analise abstrata das configurações geometricas, não baseadas em relações algebricas. Aprofundou o estudo das geometria dos espaços não euclidianos.
Ensinava com igual facilidade a termodinamica e o calculo das probabilidades a astronima e o eletromagnetico, tendo a distingui-lo e a imprimir a seu ensinamentos interesse e vigor todo especiais, a capacidade de descobrir relações entre campos aparentemente afastados.
Não é de estranhar, pois, que haja chegado ao terreno das cosmogonias com idéias originais e amplas, e que durante 16 anos tenha ensinado mecanica celeste na Sorbone. Levou a um nível altissimo, muito acima do que lhe haviam dado seus predecessores. Demonstração disso encontra-se no celebre "problema dos três corpos", elementar na natureza, porem insoluvel analiticamente. Do estudo desse problema, de que a natureza nos dá numerosos exemplos através de varios sistemas de estrelas multiplas, em perfeita estabilidade, retirou Poincaré magnificos resultados, como a teoria dos invariantes integrais.
Aspecto extraordinario da personalidade cientifica de Poincaré é a integração por ele demonstrada nos problemas de seu tempo. Na verdade não permaneceu indiferente a nenhum dos grandes problemas da Fisica de sua epoca. Todas as revolucionarias idéias que marcaram a primeira decada deste seculo, como a estrutura particulada da materia e da eletricidade, a relatividade restrita, a teoria dos quanta, a radiatividade, encontraram acolhida em seu espirito, agilmente disposto a apreendê-las, criticá-las, compreendê-las.
Para ele todas as teorias concebidas pelo espirito humano são equivalentes, desde que rigorosas, é claro. O unico criterio para escolha de uma ou de outra é a comodidade. Dizer que a terra gira em torno do sol é, no fundo, o mesmo que dizer que é o sol que gira em torno da terra, mas aquela primeira idéia é que é aceita porque as equações que a regem são muito mais simples que as da segunda.
Alem de sua imensa obra especializada no dominio da Fisica e da Matemática, distinguiu-se Poincaré como filosofo da ciencia. São classicos seus livros sobre "A Ciencia e a Hipotese", "O Valor da Ciencia" e "Ciencia e Metodo", que não envelhecem, mas permanecerão para sempre como obras sempre frescas e iluminadoras. Nelas ele descreve com magnifica penetração as caracteristicas mais intimas do mecanismo das ciencias exatas e os proprios processos cerebrais que levam à descoberta, servindo ele mesmo, a esse respeito, de cobaia. O ensaio que escreveu sobre o processo da criação matamática é justamente celebre e vai resumido noutro local.
Em 1927 fundou-se na França o Instituto Henri Poincaré, mantido por muitas fundações estrangeiras, cujo delegado em França, o matematico Birhoff, terminara a demonstração, deixada inacabada pelo grande sabio, do chamado "ultimo teorema de Poincaré". Uma das catedras criadas por influencia do Instituto é hoje ocupada por Louis de Borglie, cuja obra pode ser considerada como prolongamento da de Poincaré.
Importa ainda assinalar uma das mais notaveis caracteristicas de Poincaré - sua extrema simplicidade. Apesar de sobrecarregado de glorias e honrarias, esforçou-se durante toda sua vida para combater, nessas distinções, tudo aquilo que pudesse contribuir para afastá-lo do serviço da ciencia, tomando-lhe o tempo com coisas vãs. Exprimiu num trecho de sua obra "Saravants et ecrivains", magnificamente, esse proposito:
"Os sabios deveriam ser indiferentes à gloria. Quando se teve a felicidade de fazer uma descoberta, que pode valer a alegria de ligar a ela o proprio nome, ao lado da de haver contemplado face a face a verdade, por um momento?"
Que esplendida lição, a ser escrita no portico de todos os laboratorios e gabinetes do mundo, especialmente do nosso mundo de hoje, em que tão grande é a corrida empós de futeis prioridades, que enchem uma infinidade de revistas com imaturos trabalhos!

A criação matematica, segundo Henri Poincaré

A criação matematica não consiste, segundo Poincaré, em fazer novas combinações com entidades matematicas já conhecidas. Qualquer pessoa poderia fazer isso, porem o numero de combinações seria infinito e na maioria sem interesse. Criar consiste precisamente em não fazer combinações inuteis, mas apenas aquelas que são uteis, e que constituem minoridade. A invenção é discernimento, é escolha. Na analise que faz do processo da invenção matematica, o sabio refere um exemplo particular de sua propria experiencia com determinado tipo de funções. O trabalho consciente de pesquisa, o ataque sistematico ao problema, numerosas vezes esbarram em obstaculos intransponiveis. Mas de repente surgia, nas mais imprevistas situações, quando o autor nem de longe estava cogitando do problema, uma idéia categorica, que se apresentava como afirmação na mente do sabio e que ele depois verificava certa, quando a submetia à critica. Assim, aos poucos, à custa de sucessivas e imprevistas "iluminações" o caso chegava ao fim e Poincaré podia escrever a memoria original.
Os momentos imprevistos do processo criador, num certo caso ocorreram durante uma excursão geologica e depois quando o sabio ia entrar num onibus. Em nenhuma das oportunidades era possivel descobrir qualquer relação das circunstancias presentes com o problema que antes preocupara o matematico, e cuja solução fora abandonada.
Segundo Poincaré, o fato mais impressionante, nessa experiencia, é aquele aspecto de subita iluminação, sinal manifesto de lento trabalho anterior de inconsciente. O papel desse trabalho inconsciente na criação matematica parece-lhe incontestavel.
Outro ponto interessante é o de tal trabalho inconsciente só ocorrer na verdade, ou pelo menos de maneira frutifera após um periodo de intenso trabalho consciente. E tambem só tem ele interesse quando após a "iluminação" vem outro periodo de trabalho consciente, para aproveitar a "deixa" do inconsciente.
Dessas e outras experiencias conclui Poincaré pelo importante papel desempenhado pelo inconsciente ou, segundo sua expressão, o "eu subliminar", na criação matematica. Mas esse "eu subliminar" não poderia ser puramente automatico, como naturalmente se tenderia a admitir, pois o trabalho matematico não é mecanico, não pode ser feito inteiramente pela maquina, pela aplicação de regras fixas. Por esse meio chegar-se-ia a uma infinidade de combinações, mas não se poderia chegar à escolha das uteis ou, ainda mais dificil, à eliminação das inuteis. Então o "subliminar" não seria de modo algum inferior ao "eu consciente" Teria discernimento, tato, delicadeza. Saberia escolher, adivinhar. Saberia até adivinhar ainda melhor que o "eu consciente ", uma vez que tem exito onde o outro falha. Seria então o "eu subliminar" superior ao proprio "eu consciente?"
É claro que se poderia fazer uma outra hipotese. O "eu subliminar" seria bem mais automatico do que quisemos acima admitir, e iria formando uma infinidade de combinações que, por serem desinteressantes, permaneceriam no inconsciente, só chegando ao dominio da consciencia as que fossem realmente uteis. Assim, pois, o "eu subliminar" não teria descoberto, por uma delicada intuição, apenas combinações realmente uteis, que passaria então ao consciente, mas teria feito uma imensidão delas.
Talvez se alegasse que a passagem daquelas "iluminações" inconscientes fosse devida puramente ao acaso. Mas Poincaré não admite tal hipotese. Os fenomenos inconscientes privilegiados, que logram passar ao consciente, são em geral os que mais profundamente afetam nossa sensibilidade, direta ou indiretamente.
E aí entra Poincaré num terreno que ele mesmo reconhece sujeito a possiveis criticas dos ceticos: onde se viu, diriam estes, invocar sensibilidade emocional a proposito de demonstrações matematicas que, parece, devem interessar apenas o intelecto? Pensar assim, reponde antecipadamente Poincaré, seria ignorar o sentido da beleza matematica, da harmonia dos numeros e das formas, da elegancia geometrica. É este um sentimento verdadeiramente estetico, que todos os matematicos conhecem, e que por certo pertence à sensibilidade emocional.
Existe todavia uma "colaboração" mais estreita do que a principio se imagina entre o consciente e o inconsciente matematico. Aquele periodo inicial de arduo trabalho consciente e aparentemente infrutifero, não foi perdido. Nele a inteligencia escolheu os elementos, ou "atomos" (é uma simples comparação), que lhe pareciam mais promissores, para formar combinações. Tentou debalde obter "boas combinações" com eles, e não conseguiu. Mas nem por isso os atomos deixaram de agitar-se, uma vez postos a vibrar pelo consciente. Continuaram a dançar, "como um exame de mosquitos" ou "as moleculas de um gás", batendo uns nos outros e formando uma infinidade de novas combinações, que as tentativas do consciente não haviam formado. Em algumas dessas combinações o consciente reconhece o carater de adequação, que as torna aproveitaveis, que as torna "idéias luminosas". Assim, a "iluminação" subita que o inconsciente nos traz, na verdade não passa de resultado de trabalho feito, mais ou menos ao acaso, com "atomos" ou elementos matematicos previamente escolhidos pelo consciente. O papel deste consistiu em perceber e escolher os elementos mais uteis, aqueles que poderiam dar as "boas combinações".
O inconsciente apenas formaria, com esses elementos, as combinações semelhantes às previamente tentadas pelo consciente, continuando, como um bom auxiliar, o trabalho iniciado pelo pensador.

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