A LEMBRANÇA DE MARCEL DUCHAMP
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sábado, 5 de março de
1977
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Neste texto foi mantida a grafia original
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J.B.Natalli/Paris
Marcel Duchamp (1887-1968) é suficientemente reconhecido pelos
manuais de artes plásticas para que se possa dizer algo de
novo sobre sua produção eclética e invariavelmente
inconformista. Não foi bem para explicar telas, esculturas
e objetos que o governo francês o escolheu para a exposição
inaugural do Centro Pompidou (aberto por aqui há um mês).
Trata-se - com o perdão da palavra - de uma homenagem. Duchamp
faz parte deste punhado reduzido de artistas que a merece.
Basta citar a maneira com que, em 1912 ("Nu descendo uma escada"),
ele transpôs a idéia de movimento para a superfície
cronologicamente fixa de uma tela. Inspirado nas "cronofotografias"
- reprodução dos movimentos do corpo humano pela exposição
sucessiva de um negativo na mesma câmara fotográfica
- encadeou várias imagens de um modelo feminino, devidamente
subvertido pelo abandono do figurativismo acadêmico.
Na época, o trabalho de Duchamp era associado ao futurismo
dos italianos Boccioni ou Balla. Mas, em verdade, suas pesquisas já
tomavam um rumo praticamente inclassificavel. Como por exemplo ao
conceber em 1913 seu primeiro "readymade" - arranjo num
espaço tridimensional de objetos devidamente deslocados de
seus contextos originais. Imigrando para os Estados Unidos - onde
se naturalizou - une-se as pessoas como Man Ray ou Calder para uma
sucessão de experiências que fizeram escola e se encontraram
hoje na base de toda uma revolução estética.
O que dizer, por exemplo, de alguém que, em 1917 concebe uma
"fonte" que não passa do aproveitamento de um urinol
de cerâmica branca? Ou então da capa plástica
de uma máquina de escrever, ironicamente intitulada, no mesmo
ano, "bagagem"?
Marcel Duchamp - amante do xadrez e da geometria - concebeu em 1935
uma série de discos que, ao serem movimentados, valem como
um bailado de formas curvas, como num caleidoscópio de movimentos
harmônicos; coisa hoje banalizada pelos inúmeros imitadores.
Também usando discos, gravava frases montadas em espiral, com
trocadilhos e aproximação de palavras quase homofônicas,
numa espécie de poesia cinética extremamente curiosa.
E o que ocorre com duas expressões como "un mot de reine"
(uma palavra de rainha) e "des maux de reins" (dores nos
rins); os demais exemplos seriam intraduzíveis. Esculpe em
alto relevo pedaços da anatomia feminina, trabalha com o vidro
para a produção de formas cuidadosamente inúteis,
transforma o olhar enigmático de Mona Lisa e outras experiências
pouco ortodoxas para um artista que, ainda adolescente, conformava-se
com uma pintura acadêmica (segundo a ilusão de reprodução
do real).
Há duas dezenas de ensaios publicados só na França
sobre suas experiências. O catálogo completo de sua obra
ocupa quatro volumes. É difícil falar de Marcel Duchamp,
sem correr o risco de deixar de lado milhões de coisas essenciais.
Logo; contento-me em dizer que ele está sendo homenageado pelo
governo francês no quinto andar do Centro Pompidou.
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