CIDADE DE PAPEL
A
São Paulo que foi projetada mas acabou ficando pela metade
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1990
|
|
|
Bernardo Carvalho
Na praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal,
não existe um portentoso prédio de 20 andares em estilo
neoclássico, como havia sido previsto. Ele não passa
de dez. Logo ali adiante, do outro lado do viaduto do Chá,
na rua Líbero Badaró, não existe um prédio
em estilo Luís 16 construído para o Automóvel
Club bem à maneira do arquiteto Cristiano das Neves, que buscava
na "nobreza" das tradições francesas a inspiração
para suas obras ecléticas. Na avenida Tiradentes, ao lado da
estação da Luz, também não existe um prédio
que se destaca por uma enorme cúpula central construída
por Ramos de Azevedo. Na avenida Paulista, no ponto mais alto da cidade,
não existe um enorme edifício, com piscina e quadras
de esporte, "um estádio vertical" como diz o arquiteto
Carlos Lemos, com uma antena no topo e planejado de forma a "se
poder ver até o mar do alto". Mas poderia ter existido.
Existe uma São Paulo inexistente, que ficou no projeto e cuja
cartografia ainda está para ser feita. São Paulo não
é o que se planejou para ela. Existe uma São Paulo imaginária,
de arquitetos e urbanistas, cuja maquete nada tem a ver com a cidade
real. E não são apenas os prédios abandonados
no meio do caminho. Se, além das grandes avenidas, metade dos
projetos urbanísticos mirabolantes de Prestes Maia (prefeito
entre 1938 e 45) tivesse sido executada, hoje haveria, por exemplo,
uma ambiciosa estação ferroviária, com ligação
intermodal, provavelmente onde está o parque Anhembi, como
informa o arquiteto Hugo Segawa, ao lado de uma ponte não menos
ambiciosa sobre o Tietê. Haveria ainda um gigantesco parque,
ao longo das margens do rio, conhecido por Saturnino Brito, autor
do saneamento de Santos. Entre outros projetos não realizados,
o viaduto 9 de julho ficou apenas com uma "caixa vazia"
sob a pista, construída originalmente para abrigar a linha
de Metrô Anhangabaú-Sé e que, nos anos 60, quase
foi transformada num grande bulevar com esteiras rolantes.
O mapa imaginário de São Paulo não é fácil
de se montar. É preciso um trabalho de Indiana Jones para vencer
a poeira e o estado de degradação em que se encontram
os eventuais projetos, quando não desapareceram por obra da
burocracia e da desorganização dos órgãos
competentes e, em princípio, interessados. Isso quando funcionários
não tentam convencer o arqueólogo insistente que tal
projeto nunca existiu, que só pode realmente ser obra de sua
imaginação. No Condephaat, por exemplo, é preciso
um esforço sobre-humano para resistir à ênfase
com que alguns afirmam que o projeto inicial de Ramos de Azevedo para
o Liceu de Artes e Ofícios (hoje Pinacoteca do Estado, na avenida
Tiradentes) nunca compreendeu uma monumental cúpula no centro.
Construído entre 1897 e 1905, quando passou a alojar a Pinacoteca,
o Liceu, órgão público que vivia de subvenções,
sofreu várias crises que terminaram deixando-o inacabado. Por
estar localizado entre uma estação ferroviária
e os principais centros militares da cidade, o prédio foi ocupado
pelo exército nas revoluções de 1924, 30 e 32.
No meio do cenário de conturbações políticas
e sem uma verba suficiente, o Liceu não deixou de lado apenas
a cúpula, mas também acabou não sendo revestido,
permanecendo com a fachada atual de tijolo aparente.
Por razões menos precisas, mas que tudo leva a crer estarem
fundados na relação custo-benefício, o prédio
neoclássico da São Paulo Tramway. Light and Power Co.
(hoje Eletropaulo), na rua Xavier de Toledo, em frente ao Municipal,
também não teve seu projeto terminado. As obras foram
de 1925 a 29, sob a direção do escritório de
Ramos de Azevedo a partir de projeto dos arquitetos americanos Preston
e Curtis. Num determinado momento o prédio já não
comportava as necessidades da empresa. O aumento do edifício
em área e altura (20 andares) deveria ser realizado em três
fases, mas apenas a primeira, entre 1939 e 1941, foi executada, estendendo
a parte da rua Formosa. Mais dez andares superiores ficaram apenas
no papel.
O edifício Saldanha Marinho (projetado em 29 e terminado em
33), que abrigou a Secretaria de Estado da Cultura, na rua Líbero
Badaró, foi tombado como obra de Elisário Bahiana (1891-1980),
mestre do art déco no Brasil e autor do viaduto do Chá.
O prédio tem, portanto, valor histórico dentro da passagem
da arquitetura brasileira para a idade moderna. O imaginário,
no caso, o que não aparece, é que o projeto original
não-realizado para o mesmo prédio, destinado de início
ao Automóvel Club de São Paulo, estava muito longe de
uma possível trilha modernista. Era do arquiteto Cristiano
das Neves, que fazia o elogio do estilo Luís 16 e, na prática,
uma arquitetura das mais ecléticas. Chegou inclusive a entabular,
em 1917, durante a Primeira Guerra, uma polêmica na imprensa
com Monteiro Lobato, que defendia o "nacional" na arquitetura,
uma tradição local contra a transposição
das tradições estrangeiras, contra uma arquitetura fora
do lugar. Na verdade, o prédio art déco de Bahiana,
hoje visto como um momento rumo à arquitetura brasileira contemporânea,
foi erguido ironicamente sobre as estruturas do projeto em estilo
Luís 16 de Cristiano das Neves.
Menos pelo valor histórico que pela megalomania do empreendimento,
o projeto do edifício da Fundação Casper Líbero
(Gazeta, iniciado em 1958 e "terminado" em 62), na avenida
Paulista, é literalmente o ponto alto do mapa imaginário
de São Paulo. Ponto alto, inclusive, pela discrepância
entre o projeto original e o que resta hoje na realidade, uma rabisco
do que era. De autoria do arquiteto Celso José Maria Ribeiro
e do engenheiro Ayr Albuquerque, sob o marketing de Carlos Joel Nelli,
o projeto previa um prédio de 44 andares, com uma antena de
TV no topo, a 240 m da calçada e uma marquise agigantada, que
cobriria parte da avenida Paulista.
"Uma luz sobre São Paulo" era o slogan do projeto,
que tinha por meta o sonho quase mineiro de "se conseguir ver
o mar do alto". Hoje, restam as fundações capazes
de sustentar um edifício daquele porte. Mas só isso.
Desde a concepção dessa "loucura coletiva refinada",
como diz o arquiteto Carlos Lemos, até seu estado atual muito
se perdeu, pelo menos na imaginação. Do "estádio
vertical", esse projeto gótico de um mundo seduzido pelo
modo de vida americano, em que haveria uma piscina por cima de um
restaurante, ringues de patinação no gelo e de boxe,
e uma quadra de esporte por cima da outra até o céu,
sobrou um edifício com pouca segurança, com um ar de
inacabado e sobretudo muito feio. Quanto mais alto maior o tombo.
Entre as razões dessa queda na realidade estariam a falência
da Companhia Construtora Nacional, responsável pelos primeiros
passos da execução do prédio, e, segundo a própria
Fundação, o veto da prefeitura à construção
de um edifício tão alto.
Haveria ainda muitos outros pontos de destaque nesse mapa imaginário.
O projeto de Oscar Niemeyer, Zenon Lotufo, Helio Uchoa e Eduardo Knesse
de Mello para o parque do Ibirapuera, em comemoração
ao 4o. Centenário da cidade, por exemplo. Já que ali
ficaram faltando o Auditório e a concepção original
da marquise unindo os edifícios. Ou ainda a catedral da Sé
e a igreja da Consolação, que não tiveram seus
projetos ecléticos seguida à risca. Mas para completar
a cartografia dessa cidade fantastica, paralela, que nem mais o Patrimônio
Histórico tem idéia de onde fica, uma cidade perdida
no meio de papéis se desfazendo em bibliotecas e arquivos,
quando muito, seria preciso no mínimo um Borges paulistano,
capaz de imaginar também seus habitantes. Quem sabe, duplos
dos habitantes reais.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|