TITO LÍVIO E AS BACANAIS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, Sábado, 04 de fevereiro de 1978
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Havia dois tipos de bacanais: as festas religiosas celebradas em época
certa, em homenagem a Baco, que o mesmo deus celebrava perpetuamente,
e as festas ou orgias do culto dionisíaco, famosas na história
de Roma, em virtude da proibição com que as suspendeu
o Senado, no ano 186, a.C.
Um minucioso relato do historiador Tito Lívio e o texto do
"Senatus Consultus de Bacchanalibus", conservado numa prancha
de bronze, permitem conhecer com exatidão a história
das bacanais romanas e os motivos que determinam a rigorosa medida
do Estado contra eles. Um grego, de baixa condição,
espécie de sacerdote e adivinho ambulante, foi quem introduziu
na Etrúria as práticas religiosas do culto a Baco, que
até então só era conhecido na Magna Grécia.
O culto se celebra durante a noite, admitindo-se homens e mulheres
indistintamente, e essa promiscuidade, unida ao furor báquico,
foi que deu origem a todos os excessos de libertinagem. Denuncias
caluniosas, testamentos falsos, envenenamento, desaparecimento de
homens e mulheres eram sempre o saldo das festas orgíacas.
Foi da Etrúria que os mistérios dionisíacos chegaram
a Roma, levados pela sacerdotisa Paculla Annia. No princípio,
eram festas noturnas, assistidas apenas por mulheres, Paculla instaurou
a promiscuidade, fazendo a festa cinco vezes por mês, na qual
homens e mulheres se entregavam a todos os excessos do vinho e do
amor, possuídos do furor sagrado de Baco. A orgia era em ambiente
privativo dos iniciados, e seus participantes tinham o dever de guardar
segredo sobre as práticas a que se entregavam.
O segredo dos mistérios báquicos durou muito tempo,
até ser revelado pela amante do cavaleiro Esbutius, a liberta
Hispalia Fescênia, de cujo nome vem a palavra fescenino. Antiga
participante do bacanal, Fescênia revelou ao amante, desejoso
de iniciar-se também, os mistérios orgíacos.
Horrorizado, Esbutius, denunciou tudo ao cônsul Postumius, a
quem Fescênia, embora temendo a cólera dos deuses e dos
irmãos de seita, contou tudo o que sabia. O lugar da reunião
era o bosque sagrado de Simila, perto de Roma. Tito Lívio faz
o relatório desse depoimento.
Os homens, possuídos de delírio, profetizavam, entre
fanáticas contorções. As mulheres, vestidas de
bacantes, com os cabelos soltos, lançavam tochas ardentes no
Tibre. O mais alto grau da perfeição báquica
era não considerar nada vedado pela moral. Os tímidos
e os envergonhados, que se negavam a acompanhar os demais, eram sacrificados.
O número de iniciados era tão considerável, que
constituía um segundo povo, figurando entre eles mulheres e
homens da mais alta sociedade. Em certa época, os iniciados
passaram a exigir a idade mínima de vinte anos para os novos
sócios.
O inquérito feito por Postumius e levado ao Senado romano indicou
que passava de sete mil o número de iniciados, sendo a maioria
de mulheres. Tomaram-se medidas de grande rigor, diante das investigações
que comprovaram a denúncia de Fescênia. As bacanais foram
proibidas, sob as mais severas penalidades, como atentatórias
à segurança do Estado. Figuravam entre as penas cominadas,
a pena capital, sendo interditadas as festas não apenas em
Roma, mas também em toda a Itália. Todas as províncias
foram proibidas de celebrar bacanais. Mas a decisão não
era drástica: quem quisesse promover um bacanal, tinha que
ir a Roma, fazer uma declaração prévia ao pretor
da cidade e aguardar a permissão do Senado, que devia ser dada
em sessão com a presença de pelo menos 100 senadores.
Além disso, não se permitia mais nenhuma bacanal com
mais de cinco pessoas; dois homens e três mulheres.
Mas apesar de todas essas providências oficiais de repressão,
os devotos continuavam celebrando os ritos de Baco em bacanais mais
ou menos clandestinas. E era tão grande o número de
adeptos dessas orgias religiosas, que, no ano de 184 (a.C.), em Tarento,
e em 181, na Apúlia, o povo promoveu uma rebelião para
restaurar o direito de celebrar as bacanais. Há uma sátira
de Varro, segundo a qual as bacanais se faziam em Roma sob disfarçada
clandestinidade, enquanto no resto do Império havia uma razoável
tolerância. De qualquer forma, nunca deixou de existir a festa
pública celebrada todos os anos a 16 de março, chamada
Liberalia. Liber era também o nome latino de Baco. Por fim,
é interessante notar que o nome de bacantes, depois estendidos
também aos homens, era inicialmente reservado às mulheres
que se entregavam ao culto orgiástico do deus. Além
disso, vale a pena lembrar que as bacantes eram senhoras da melhor
origem patrícia, escolhidas entre elas as de mais ilibada reputação,
pois as práticas da orgia religiosas constituíam não
uma imoralidade, mas um ato de comunhão com a divindade.
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TITO LÍVIO (59-17 a.C.), foi um dos mais importantes
historiadores romanos. Nasceu em Pádua. Escreveu um livro sobre
de "Diálogos sobre a Filosofia", que serviu para
recomendá-lo à confiança do Imperador Augusto.
Mas sua grande obra é a: "História de Roma",
escrita, segundo ele, "para esquecer os sofrimentos de seu tempo,
lembrar os grandes feitos do passado e apontar exemplos excelentes
para o futuro". Trata-se de um monumento da literatura nacional
de Roma. O texto que publicamos hoje é adaptação
de uma passagem de Tito Lívio, tirada do original latino do
autor por Gerardo Mello Mourão.
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