ESTILO DE PRESO
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Publicado
no Folha de S.Paulo, terça-feira, 3 de fevereiro de 1998
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Nelson de Sá
da Reportagem Local
A novela não mostra...
É assim que Mano Brown, do grupo Racionais MC's, descreveu
o que faz, este final de semana, na MTV. O grupo, da periferia de
São Paulo, é idolatrado, seguido por "mais de 50
mil manos", num movimento de identidade negra que vai além
da música.
Abre comícios do PT, denuncia a polícia, a miséria,
o "sistema". Na MTV, estreou seu primeiro clipe com "Diário
de um Detento", escrita por Brown, apoiado em relatos de presos
do Carandiru.
A música descreve a chacina de 111 presos em 92. Amaldiçoa
Fleury, então governador. Responde à impunidade dos
que mataram -e vale lembrar que a chacina elegeu um deputado-policial.
De realismo cru, é sombria, raivosa.
O clipe, não. Uma interrogação que segue o grupo,
para além da revolta, é se vai ser assimilado pelo "sistema".
Se vai ceder, sendo tão arredio -aos brancos, às gravadoras,
às redes de TV.
No clipe, de um publicitário, não é a "realidade"
o que se vê. Parte das cenas é de estúdio. A própria
MTV mostrou Brown nas gravações, atrás de grades
falsas. Dizia ele:
O diretor achou melhor não entrar todo mundo. A gente
está no estilo de preso e pode confundir um pouco.
E Mano Brown não pode ser confundido com preso. Faz "estilo
de preso". Mas já vendeu 200 mil cópias. Nada deve,
em números, a um amigo seu, o sambista Netinho, do Negritude
Jr., que anima a audiência de Gugu Liberato e Fausto Silva.
O "sistema".
Assimilado ou não, quando canta Mano Brown assusta. Já
o clipe é do "sistema".
Mais "realistas" foram as cenas de câmaras de tortura,
ontem nos telejornais. Tortura que segue, no Carandiru.
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Trecho
da música "Diário de um Detento" publicado na Folha de S.Paulo em
29 de janeiro de 1998. |
'DIÁRIO
DE UM DETENTO'
"São
Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã/ Aqui
estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você
não sabe como é caminhar com a cabeça na mira
de um HK/ Metralhadora alemã ou de Israel/ Estraçalha
ladrão que nem papel
Na muralha em pé/ mais um cidadão José/ servindo
o Estado, um PM bom/ passa fome, metido a Charles Bronson/ Ele sabe
o que eu desejo/ Sabe o que eu penso/ O dia tá chuvoso/ O
clima tá tenso/ Vários tentaram fugir, eu também
quero/ Mas de um a cem, a minha chance é zero/ Será
que Deus ouviu minha oração?/ Será que o juiz
aceitou apelação? (...)
Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,
sangue, vidas e glórias/ abandono/ miséria, ódio/
sofrimento/ desprezo/ desilusão/ ação do tempo/
Misture bem essa química, pronto:/ fiz um novo detento
Minha palavra de honra me protege/ pra viver no país das
calças bege/ Tic-tac, ainda é 9h40/ O relógio
da cadeia anda em câmera lenta/ Ratatatá, mais um metrô
vai passar/ com gente de bem, apressada, católica/ lendo
jornal, satisfeita, hipócrita/ com raiva por dentro, a caminho
do centro/ olhando pra cá/ Curiosos é lógico/
Não, não é não/ não é
o zoológico
Minha vida não tem tanto valor/ quanto seu celular, seu computador/
Hoje, tá difícil, não saiu o sol/ Hoje não
tem visita, não tem futebol/ Alguns companheiros têm
a mente mais fraca/ Não suporta o tédio, arruma quiaca/
Graças a Deus e à Virgem Maria/ Falta só um
ano, três meses e uns dias/ Tem uma cela lá em cima
fechada desde terça-feira/ Ninguém abre pra nada/
Só o cheiro de morte pinho sol/ Um preso se enforcou com
o lençol/ Qual que foi? Quem sabe? Não conta/ Ia tirar
mais uns seis de ponta a ponta (...)
Amanheceu com sol, dois de outubro/ Tudo funcionando, limpeza jumbo/
De madrugada eu senti um calafrio/ Não era do vento, não
era do frio/ Acerto de conta tem quase todo dia/ Ia ter outro logo
mais, eu sabia/ Lealdade é o que todo preso tenta/ conseguir,
a paz, de forma violenta/ Se um salafrário sacanear alguém/
leva ponto na cara igual Frankstein
Fumaça na janela, tem fogo na cela/ F..., foi além/...
se pã!, tem refém/ Na maioria, se deixou envolver/
por uns cinco ou seis que não têm nada a perder/ Dois
ladrões considerados passaram a discutir/ mas não
imaginavam o que estaria por vir/ Traficantes, homicidas, estelionatários/
uma maioria de moleque primário/ Era a brecha que o sistema
queria/ Avise o IML, chegou o grande dia/ Depende do sim ou não
de um só homem/ que prefere ser neutro pelo telefone/ Ratatatá
caviar e champanhe/ Fleury foi almoçar que se f.. a minha
mãe/ cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../
quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil/ como módes
usado ou Bombril/ Cadeia? Claro que o sistema não quis/ esconde
o que a novela não diz/ ratatatá, sangue jorra como
água/ do ouvido, da boca e nariz/ O Senhor é meu pastor.../
perdoe o que seu filho fez/ morreu de bruços no salmo 23/
sem padre, sem repórter/ sem arma, sem socorro/ vai pegar
HIV na boca do cachorro/ cadáveres no poço, no pátio
interno/ Adolf Hitler sorri no inferno/ O Robocop do governo é
frio, não sente pena/ só ódio e ri como a hiena/
Ratatatá, Fleury e sua gangue/ vão nadar numa piscina
de sangue/ Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento."
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