(de uma carta de Eça de Queiroz a Ramalho Ortigão,
escripta em 1873)
"De
Nova York, dir-lhe-hei que é realmente a Nova York da tradição
européa: - a grande, a extraordinaria, a estrondosa Nova
York.
Na America não se tem comtudo esse amor de Nova York, porque
ha na União cidades rivaes. Philadelphia é Nova York
sem o deboche, Philadelphia é uma cidade muito moral - dizem
aqui os "Quakers".
Os outros dizem simplesmente que é um alcouce. St. Louis,
é outra cidade que não differe de Nova York, senão
em ser mais bella na paisagem. Chicago, é, a todos os respeitos,
melhor que Nova York - e é sem duvida a mais extraordinaria
cidade do mundo: na carta que lhe escrevi - e que v. não
recebeu - eu dava-lhe pormenores curiosos sobre Chicago, que é
a cidade-resumo do genio evolutivo das populações
do Oeste.
Nova York tem, mais do que as outras, o elemento europeu, manifestado
por estes factos - "lorettes", restaurantes, "crevés",
escandalos, agiotagem -: é o que a faz superior. De resto
é uma cidade que em parte amo e em parte detesto.
Amo-a, porque... porque sim - e detesto-a, porque deve ser destestada.
O que isto é, V. não imagina: a violenta confusão
desta cidade, o extraordinario deboche, o horror dos crimes, a desordem
moral, a confusão das religiões, o luxo desordenado,
a agiotagem febril, a demencia dos negocios, os refinamentos do
conforto material, os roubos, as ruinas, as paixões, os egoismos
- tudo isso está aqui "chauffé ou rouge".
Isto não póde durar muito, todo o mundo diz.
É uma cidade que tem cem annos e que está pôdre:
está "detraquée".
Viveu muito, muito depressa - e chegou "sem educação".
Porque a verdade é esta: Nova York não tem civilização.
A civilização não é ter uma machina
para tudo - e um milhão para cada cousa: a civilização
é um sentimento, não é uma construcção.
Ha mais civilização num beco de Paris do que em toda
a vasta Nova York.
Aqui não ha gosto, nem espirito, nem distincção,
nem critica, nem classificação - nada: uma sociedade
podre de rica, afogada em luxo exagerando as modas, inventando muitas
- e querendo enriquecer mais e ter mais luxo ainda. Você deve
ter lido o que se tem passado aqui com o "Crédit Mobilier"
e com outras poderosas associações bancarias, ligadas
ao systema de administração: tem-se apenas descoberto
que os homens publicos, de alto a baixo, são um sólo
de ladrões.
Ladrões por toda a parte, eis a critica do commercio. Ladrões
por toda a parte, eis a critica das ruas.
Ladrões! Nova York transborda de ladrões: veste-os,
exporta-os, vende-os - e quantos mais enforca mais lhe nascem. Se
você sahe do seu hotel e encara alguma das grandes ruas de
Nova York, fica aterrado: aquella agitação, estrondo,
ruido, febre, rostos consumidos e seccos, toilettes unicas, carruagens
nos passeios, omnibus aos lados, caminhos de ferro por cavallo no
centro da rua, caminhos de ferro à machina por cima das ruas,
junto aos tectos das casas, o apparato immenso da policia, a excentricidade
dos annuncios, o rumor apressado de todo o mundo... Comprehende
logo que está entre um povo barbaro, que aprendeu a civilização
de cór. Mas barbaro como é - que força, que
originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza! É
estranho! E ao mesmo tempo que grosseria de maneiras: revolver,
praga e empurrão, algumas palavras de inglez e muita saliva
- eis o que é a lingua americana.
Como eu detesto esta canalha! Como a mais pequena aldeia de França
é superior, immensamente superior pela sua civilização
a esta orgulhosa Nova York, que se chama a si mesma, como Roma -
"A Cidade". Estupida Nova York - que fez ella jámais
para se chamar "A Cidade"? Paris fez a Revolução,
Londres deu Shakspeare, Vienna deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa...
deu-nos a nós - que diabo! Mas esta estupida Nova York o
que tem dado? Nem mesmo as grandes invenções da America
são della. Aqui, quem inventa, quem inventa por todos, quem
inventa sempre, é Chicago.
Chicago, sim tem dotado o mundo com as três quartas partes
das machinas que elle possue. Mas Nova York? Nunca sahiu nada de
Nova York, - nem um homem, nem uma idéa, nem um livro, nem
uma machina, nem uma victoria, nem um quadro, nem um dito. Nova
York é um "tour-de-force" da brutalidade - nada
mais. E no entanto, meu amigo, que diabo! - é necessario
amal-a. Com as suas grandes avenidas, tão cobertas de arvores
e de sombras como um bosque, com a belleza extrema das suas mulheres,
com as grandes praças onde a relva é por si só
um espectaculo, com as suas egrejas gothicas, todas cobertas de
trepadeiras e mal apparecendo por traz da folhagem das arvores (joias
de architecturra contemporanea). Nova York, com o seu sumptuoso
ruido, com o romantismo dos seus crimes por amor, com os seus parques
extraordinarios que encerram florestas e lagos - como outros encerram
arbustos e tanques - com a sua orginalidade, com a sua caridade
apparatosa, com as suas escolas simplesmente inimitaveis, os seus
costumes, os seus theatros (aos quatro em cada rua), é uma
tão vasta nota no ruido que a humanidade faz sobre o globo
- que fica para sempre no ouvido! Eu estou aqui a escrever-lhe -
e está-me a lembrar com saudade o rolar dos tramways nas
ruas. - Querida Nova York! - Não odiada Nova York!"
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