O PROVINCIANISMO ESTRANGULA A CULTURA BRASILEIRA


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 2 de fevereiro de 1991

Nelson Ascher
Da equipe de articulistas

O termo cosmopolita foi muito usado nas eleições municipais da Hungria, em outubro do ano passado. "Cosmopolitas" eram, para o Fórum Democrático Húngaro, os membros da Associação dos Democratas Livres. O FDH está no poder, mas perdeu a prefeitura de Budapeste para seu rival. Por que seriam os membros da ADL chamados pejorativamente de cosmopolitas? Naquela região do mundo o termo é um sinônimo de judeu. E, de fato, há muitos judeus na ADL, que representa a classe média urbana e de espírito modernizante no país, ao contrário do FDH que ainda acredita em seus próprios sonhos nacionalistas.
Húngaros e croatas, romenos e poloneses não só manifestam qualquer resquício de má consciência em face de seus compatriotas massacrados por serem judeus, como ainda seguem sendo em boa parte anti-semitas. Segundo essa gente, o cosmopolitismo judaico adviria do fato de os judeus das mais variadas nacionalidades manterem vínculos preferenciais não com seus compatriotas, mas com seus correligionários. Isso nunca foi demonstrado. Contudo, a facilidade com que nacionalidades que se odiavam uniram-se contra os judeus é um capítulo irrefutável da história da Europa cristã.
Não é só naquelas bandas, porém, que "cosmopolita" é um palavrão. Tão logo deixou de ser internacionalista - se é que alguma vez o foi - a esquerda adotou uma série de expressões, por assim dizer, pouco rigorosas. Entre os "cosmopolitas" da esquerda estiveram sempre os famigerados burgueses. A associação entre burgueses e judeus implicada nesse uso do termo não é meramente acidental. Os ecos de alguma conspiração mundial também são exatamente inaudíveis.
E nós com isso? Simples. O interesse e a curiosidade pela literatura, poesia e idéias do exterior nunca se encontraram, neste país, num nível tão baixo quanto o de hoje em dia. E isso porque, há um bom quarto de século, uma parcela substancial da intelectualidade - justamente a camada que mais deveria lutar pelo livre trânsito das idéias - anatematizou o contato com coisas "de fora", chamando-o antipatriótico, vendido ao imperialismo etc. O medo desse anátema transparece claro na carreira de críticos que, da juventude à maturidade, deixaram de falar em, por exemplo, Thomas Mann, para se dedicarem a, digamos, Cruz Costa. Ensaístas cujas primeiras coletâneas, misturavam textos sobre temas e autores tanto nacionais quanto estrangeiros descobriram então as delícias do provincianismo.
Talvez tenham lá sua razão: afinal, quem é um reles brasileiro para falar sobre Dante, Shakespeare ou Goethe? O medo do cosmopolitismo tem amesquinhado o pensamento crítico brasileiro, enquanto o trabalho daqueles que constroem as pontes necessárias entre a literatura nacional e estrangeira é, na melhor das hipóteses, visto com maus olhos e, na pior, abertamente vilipendiado. Bons eram os tempos quando os intelectuais sentiam a necessidade de saber o que ocorria no mundo e traziam informações frescas para seu público.
Há poucas décadas ainda, os homens de letras do país liam avidamente a de então nova poesia inglesa ou nova poesia inglesa ou prosa francesa. Liam, discutiam, opinavam e traduziam. O que na época era a tarefa de toda uma camada tornou-se hoje o trabalho quase maldito de alguns poucos. Como sempre, quem perde é o leitor. Decorrência direta disso é a falta absoluta de boas antologias da moderna poesia inglesa, americana, espanhola, hispano-americana, francesa, alemã e italiana. Fato tanto mais desconcertante quando se observa que cada uma dessas línguas está representada no país por comunidades cuja primeira missão seria justamente a divulgação de suas culturas de origem. Em outras palavras, a intelectualidade brasileira só poderia beneficiar de uma injeção de neo-cosmopolitismo.


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