Herman Hesse
O ser
humano, como Deus o imaginou e a literatura e sabedoria dos povos
o entenderam por muitos milhares de anos, foi criado com uma capacidade
de alegrar-se com as coisas mesmo que não lhe sejam úteis,
com um órgão reservado para apreciar o que é
belo.
Espírito e sentidos sempre participaram em igual medida nessa
alegria do homem pelo belo e, enquanto pessoas forem capazes de
se alegrar, no meio de pressões e perigos, com coisas como
as cores da natureza ou um quadro pintado, o chamado da voz da tempestade
ou da música feita pelo homem, enquanto atrás da superfície
dos interesses e necessidades o mundo puder ser visto ou sentido
como um todo onde existe uma ligação do movimento
de um gato com as variações de uma sonata, do comovente
olhar de um cão com a tragédia de um escritor, num
reino múltiplo de mil relações, correspondências,
numa linguagem eternamente fluindo para dar ao ouvinte alegria e
sabedoria, divertimento e emoção _enquanto isso existir,
o homem poderá sempre voltar a dominar suas fragilidades
e atribuir um sentido à sua existência, pois "sentido"
é aquela unidade do múltiplo, ou aquela capacidade
do espírito de pressentir unidade e harmonia na confusão
do mundo.
Para o verdadeiro ser humano, íntegro, inteiro e intacto,
o mundo se justifica e Deus se justifica incessantemente através
de milagres como este: que além do frio da noite e do fim
do período de trabalho exista algo como a atmosfera vermelha
no crepúsculo e as fascinantes transições do
rosa ao violeta, ou algo como as mutações do rosto
de uma pessoa quando, em mil transições, é
recoberta, como o céu noturno, pelo milagre do sorriso; ou
que existam as naves e janelas de uma catedral, a ordem dos estames
no cálice da flor, o violino feito de madeira, a escala de
sons, algo tão inconcebível, delicado, fruto do espírito
e da natureza, racional e ao mesmo tempo supra-racional e infantil
como a linguagem.
A linguagem com suas belezas e surpresas, seus enigmas, sua aparente
perenidade, mesmo assim não está livre de fraquezas,
enfermidades, perigos aos quais está exposto tudo o que é
humano _e isso a torna para nós, seus discípulos e
servos, um dos mais misteriosos e nobres fenômenos na Terra.
E não é apenas que cada povo ou comunidade cultural
tenha criado a linguagem que corresponda a suas origens e ao mesmo
tempo sirva aos seus projetos ainda não-pronunciados, não
apenas que um povo possa aprender, admirar, rir da linguagem de
outro povo e mesmo assim nunca a entender inteiramente! Não:
também para cada indivíduo, na medida em que ele não
viva em um mundo ainda afásico ou excessivamente mecanizado,
e por isso mesmo novamente afásico, a linguagem é
um bem pessoal; para cada falante, portanto para cada ser humano
inteiro e íntegro, palavras, sílabas, letras, formas
e as possibilidades da sintaxe, têm seu valor especial que
só a elas cabe, e cada linguagem legítima pode ser
sentida e vivida por cada pessoa de maneira totalmente pessoal e
única, ainda que ela não se dê conta de nada
disso.
Assim como houve músicos que preferiram certos instrumentos
ou tonalidades de voz, ou se aborreciam particularmente com eles,
ou deles desconfiavam, assim a maioria das pessoas, na medida em
que têm um senso de linguagem, preferem certas vogais e séries
de letras enquanto evitam outras; e, se alguém ama um escritor
em especial, ou o rejeita, também o gosto linguístico
e o ouvido linguístico desse escritor participa disso, sendo
familiares ou estranhos a seu leitor.
Eu poderia, por exemplo, mencionar uma série de versos e
poemas que amei décadas a fio e ainda amo, não pelo
sentido, sabedoria ou conteúdo em experiência, bondade,
grandeza, mas unicamente por uma determinada rima, um determinado
desvio rítmico do esquema convencional, a escolha de vogais
preferidas, que o escritor pode ter feito de modo tão inconsciente
quanto o leitor que as exercita.
Da construção e ritmo do texto de Goethe ou Brentano,
de Lessing ou E. Th. A. Hoffmann, pode-se deduzir muito mais sobre
as características, a tendência física e espiritual
do escritor, do que daquilo que esse trecho de prosa nos diz. Há
frases que podem estar no texto de vários escritores, e outras
que só seriam possíveis em um único desses
músicos da linguagem. Para nós as palavras são
a mesma coisa que as cores da palheta são para o pintor.
Existem incontáveis delas, e surgem sempre novas, mas as
boas palavras, as verdadeiras, são menos numerosas, e em
70 anos de vida não vi surgir nenhuma nova.
Também as cores não existem em muito grande número,
ainda que suas tonalidades e misturas sejam incontáveis.
Entre as palavras existem para cada falante as prediletas e as estranhas,
preferidas e evitadas, cotidianas _que se usam mil vezes sem temer
o desgaste_e outras _solenes_ que, por mais que as amemos, só
pronunciamos ou escrevemos com cuidado e reflexão, como objetos
raros: fazendo as escolhas que correspondem a essa sua solenidade.
Entre elas está para mim a palavra felicidade.
É uma dessas que sempre amei e escutei com prazer. Por mais
que se discuta e argumente sobre seu significado, seja como for,
ela significa algo belo, bom e desejável. E acho que o som
da palavra corresponde a isso.
Parece-me que essa palavra, apesar de sua brevidade*, tem algo de
espantosamente denso e cheio, algo que lembra ouro, e com certeza
além da plenitude e densidade também lhe é
próprio o brilho parece morar em ruas breves sílabas
como o raio nas nuvens, começando tão fluida e sorridente,
repousando com um sorriso no meio, e terminando de maneira tão
decidida.
Era uma palavra para rir e chorar, cheia de fascinação
e sensualidade. Se a quiséssemos sentir direito, bastava
colocar ao lado desse dourado algo tardio, plano, fatigado, de níquel
ou cobre, como realidade ou utilidade, e tudo ficaria claro.
Sem dúvida, ela não nascia de dicionários nem
salas de aula, não era inventada, derivada ou composta, era
algo uno e redondo, perfeito, vinha do céu ou da terra como
luz do sol ou uma visão de flores. Que bom, que felicidade,
que consolo, haver palavras assim! Viver e pensar sem elas seria
murcho e ermo, seria como viver sem pão nem vinho nem música
nem riso.
Para esse lado, o natural e sensório, a minha relação
com a palavra felicidade nunca se desenvolveu nem modificou, a palavra
continua hoje tão breve e pensada e brilhante como sempre,
eu a amo ainda como amei na meninice.
Mas o que esse símbolo mágico significa, o que se
quer dizer com essa palavra tão simples quanto densa, sobre
isso minhas opiniões e pensamentos mudaram muito, e só
muito tarde chegaram a uma conclusão clara e determinada.
Até bem depois da metade de minha vida eu a aceitava sem
a examinar, certo de que na boca das pessoas felicidade era algo
positivo e absolutamente valioso, mas no fundo meio banal.
Bom berço, boa educação, boa carreira, bom
casamento, progresso na casa e na família, respeito das pessoas,
bolsa cheia, baús repletos, pensava-se em tudo isso ao dizer
"felicidade", e eu fazia como todo mundo.
Parecia-me haver as pessoas felizes e as outras, assim como havia
as sensatas e as outras. Também falávamos de felicidade
na história universal, pensávamos conhecer povos felizes,
épocas felizes. Mas nós mesmos vivíamos no
meio de um período inusitadamente "feliz", estávamos
rodeados da felicidade de uma paz prolongada, de uma ampla liberdade,
de um importante conforto e bem-estar, como num banho morno, e mesmo
assim nem percebíamos isso, aquela felicidade era apenas
natural, e nós jovens naquele momento aparentemente tão
amável, confortável e pacífico éramos
esnobes e céticos, coqueteávamos com a morte, com
a degeneração, com a interessante anemia, falando
da Florença do Quatrocento, da Atenas de Péricles
e de outros tempos passados como sendo "felizes".
Sonhar com aqueles tempos florescentes foi-se perdendo aos poucos,
líamos livros de história, líamos Schopenhauer,
desconfiávamos do superlativo e das belas palavras, aprendemos
a viver espiritualmente em um clima abafado e relativizado _e mesmo
assim a palavra felicidade, onde quer que a encontrássemos
inesperadamente, soava com o velho som dourado e cheio, continuava
sendo pressentimento ou memória de coisas de altíssimo
valor.
Talvez, pensávamos por vezes, pessoas simples e infantis
podiam chamar de felicidade aqueles bens concretos da vida, mas
nós pensávamos antes em algo como sabedoria, superioridade,
tolerância, certeza da alma, tudo o que era belo e nos alegrava,
mas sem merecer um nome tão arcaico, pleno e profundo como
felicidade.
Entrementes minha vida pessoal chegara a um ponto em que eu sabia
que não era feliz, e que também a busca da chamada
felicidade não tinha ali espaço e sentido. Numa hora
patética eu talvez designasse essa situação
como Amor Fati, mas no fundo nunca tive grande tendência para
o pathos, a não ser em breves exceções e breves
estados de excitação. E também o amor sem desejo
e nada patético, à Schopenhauer, não era mais
meu ideal absoluto, desde que eu aprendera aquele modo silencioso,
inaparente, lacônico e sempre um pouquinho zombeteiro de sabedoria
em cujo solo brotaram os relatos da vida dos mestres chineses e
as parábolas do Tchuang Tsi.
Bem, não quero divagar. Pretendo dizer algo bastante definido.
Primeiro, e para não perder o fio, tento formular com palavras
abrangentes qual o conteúdo e significado que tem para mim
hoje em dia a palavra felicidade. Hoje entendo por felicidade algo
bem objetivo, isto é, a totalidade mesma. O ser atemporal,
a eterna música do universo, isso que outros chamaram harmonia
das esferas ou sorriso de Deus.
Esse conceito, essa música infinita, essa eternidade de sons
plenos e de brilho dourado é presente puro e perfeito, não
conhece tempo, história, antes e depois. Eternamente brilha
e ri o semblante do mundo, enquanto seres humanos, gerações,
povos, reinos, surgem, florescem e novamente caem nas sombras e
no nada. A vida produz uma música permanente, dança
incessantemente sua ciranda, e o que a nós efêmeros,
a nós ameaçados e caducos mesmo assim é dado
em alegria, conforto e riso, é luz que vem de lá,
é um olho cheio de brilho e um ouvido cheio de música.
Se alguma vez realmente houve aquelas pessoas lendariamente "felizes",
ou se aqueles felizardos louvados com inveja, os filhos do sol e
os senhores do mundo foram iluminados pela grande luz apenas em
horas ou momentos festivos e abençoados, não tiveram
outra felicidade nem partilharam de nenhuma outra alegria.
Respirar num presente perfeito, cantar no coro das esferas, dançar
na ciranda no mundo, rir com o eterno riso de Deus, é o que
nos cabe como parte de felicidade. Muitos só têm isso
uma vez, muito poucas vezes. Mas quem o viveu não foi feliz
só por um instante, pois levou consigo algo desse brilho
e melodia, dessa luz da alegria atemporal, todo o amor que foi trazido
a este mundo pelos amantes, todo o consolo e alegria que foi trazido
pelos artistas, e às vezes séculos depois continua
brilhando como no primeiro dia, vem de lá.
No curso de uma vida inteira cheguei a esse significado abrangente,
universal e sagrado da palavra felicidade, e talvez seja preciso
dizer expressamente àqueles de meus leitores que ainda são
meninos de escola, que não estou aqui fazendo filologia,
mas contando um pedacinho da história de uma alma, e que
estou muito longe de os estimular a também darem em sua linguagem
oral e escrita o mesmo tremendo significado à palavra felicidade.
Mas para mim, em torno dessa sublime, dourada e simples palavra
reuniu-se tudo o que desde a infância senti ouvindo-a.
A sensação era evidentemente mais forte na criança,
a resposta de todos os sentidos a suas qualidades sensórias
e à sua convocação eram mais intensas e mais
ruidosas, mas, se a palavra em si não fosse tão profunda,
tão arcaica e tão universal, minha idéia do
eterno presente, do "rastro dourado" (na boca de Goldmund)
e do riso dos imortais (em "O Lobo da Estepe") não
se teria cristalizado em torno dessa palavra.
Quando pessoas que envelheceram tentam recordar quantas vezes e
com que intensidade sentiram felicidade, procuram primeiramente
em sua infância, e isso é correto, pois para vivenciar
felicidade é preciso sobretudo independência do tempo,
e com isso do medo e da esperança, e em geral com os anos
as pessoas perdem essa capacidade. Mesmo eu, quando tento recordar
momentos em que participei do brilho do eterno presente, do sorriso
de Deus, volto sempre à infância e encontro lá
as mais frequentes e valiosas experiências desse tipo. É
verdade que os tempos alegres da adolescência eram mais coloridos,
festivos e agitados, o espírito participava mais deles do
que nos anos de infância.
Mas, olhando melhor e melhor, ali havia mais divertimento e graça
do que realmente felicidade. A gente era divertida, engraçada,
espirituosa, a gente fazia muitas boas brincadeiras. Lembro de um
momento no grupo de meus colegas no florido tempo da juventude:
um inocente perguntou, na conversa, o que era afinal um riso homérico,
e eu respondi com uma risada ritmada, que se escandia precisamente
como um hexâmetro.
Todos riram alto, brindaram tocando os copos, mas momentos desses
não se sustentam quando lembrado mais tarde. Tudo aquilo
era bonito, foi divertido, saboroso, mas não era felicidade.
Depois de analisar isso por algum tempo, a felicidade parecia ter
sido experimentada só na infância, em horas ou momentos
difíceis de reviver, pois também ali no reino da infância
o brilho nem sempre parecia legítimo quando bem examinado,
o ouro nem sempre tão puro. Vendo bem, restavam apenas poucas
vivências, e também elas não eram quadros que
se pudessem pintar, histórias que se pudessem contar, esquivavam-se
agilmente quando questionados.
Se uma lembrança dessas se apresentava, parecia no começo
tratar-se de semanas ou dias ou pelo menos um dia, um Natal quem
sabe, um aniversário ou um dia de férias. Mas para
reviver na memória um dia da infância seriam precisas
mil imagens, e para nenhum único dia, nem mesmo para meio
dia, a memória traria de volta quantidade suficiente de imagens.
Quer se tratasse de experiências de dias, horas ou minutos,
vivi a felicidade algumas vezes, por instantes estive próximo
dela. Mas daqueles encontros felizes do começo da vida, sempre
que os convoquei, interroguei e examinei, um especialmente persistiu.
Foi nos meus tempos de menino de escola, e o singular, legítimo,
primitivo e mítico nessa experiência, o estado de ser
um com o mundo num riso silencioso, a total liberdade em relação
a tempo, esperança e temor, o absoluto presente não
pode ter durado muito, talvez não mais do que alguns minutos.
Certa manhã _eu era um menino agitado, de uns 10 anos_, acordei
com uma sensação inusitada, profunda e doce, de alegria
e bem-estar, que me iluminava inteiro como um sol interior, como
se agora mesmo, naquele instante do despertar de um bom sono de
menino, algo de maravilhoso, de novo me tivesse acontecido, como
se todo o meu pequeno-grande mundo de menino estivesse numa situação
nova e mais elevada, tivesse entrado em outra luz e clima, como
se só agora, cedo de manhã, toda a bela vida tivesse
adquirido todo o seu valor e sentido. Eu nada sabia de ontem nem
de amanhã, estava rodeado e inundado daquele hoje feliz.
Aquilo fazia bem, e meus sentidos e minha alma o saborearam sem
curiosidade nem justificação. Aquilo me invadia e
tinha um gosto magnífico.
Era de manhã, pela janela alta eu vi sobre a longa cumieira
do telhado vizinho o céu alegre de um azul-claro puro, também
ele parecia feliz como se pretendesse coisas especiais e tivesse
posto para essa ocasião sua melhor veste. Não se via
mais do mundo ali da minha cama, só aquele belo céu
e o longo pedaço de telhado da casa vizinha, mas também
esse telhado, esse telhado monótono e desinteressante de
telhas castanho-avermelhadas parecia rir, sobre uma parede oblíqua
íngreme e sombreada perpassava um leve jogo de cores, e uma
única telha de vidro azulada no meio das de cor vermelha
parecia viva, parecia alegremente desejosa de espelhar algo daquele
céu matinal de brilho leve e permanente.
O céu, a quina um tanto grosseira da cumieira do telhado,
o exército uniforme das telhas marrons e o azul translúcido
da única telha de vidro pareciam harmonizar-se de maneira
bela e alegre, nada queriam, visivelmente, senão naquela
hora matinal especial rir umas com as outras, e querer-se bem.
Azul-celeste, marrom-telha e azul vítreo pertenciam uns aos
outros, brincavam entre si, sentiam-se bem, e era bom e fazia bem
vê-los assim, participar do seu brinquedo, sentir-se inundado,
como eles, pelo mesmo brilho da manhã e pela mesma sensação
de bem-estar.
Assim, no começo da manhã, fiquei deitado saboreando
junto com tudo isso a calma sensação do sono que recém
acabara, uma bela eternidade em minha cama, e, se saboreei felicidade
igual ou semelhante mais vezes em minha vida, nenhuma poderia ser
mais profunda e mais real: o mundo estava em ordem.
E, se essa felicidade durou cem segundos ou dez minutos, era tão
atemporal que se parecia tão perfeitamente com qualquer outra
felicidade legítima quanto uma borboleta azul se parece com
outra. Aquilo foi transitório, foi recoberto pelo tempo,
mas era profundo e eterno o bastante para depois de mais de 60 anos
ainda me chamar e atrair, e eu, com olhos cansados e dedos doloridos,
ainda tenho de me esforçar para o invocar e lhe sorrir, e
o descrever. Essa felicidade não consistia nada além
da harmonia de algumas poucas coisas ao meu redor com o meu próprio
ser, um bem-estar sem desejos, que não exigia nenhuma mudança
nem intensificação.
Ainda estava tudo quieto na casa, e também lá fora
não se ouvia um som. Se não fosse esse silêncio,
provavelmente a lembrança dos deveres cotidianos, da necessidade
de levantar-me e ir à escola, teria perturbado meu bem-estar.
Mas obviamente não era nem dia nem noite, era a doce luz
e o azul risonho, sem passos de criadas nas lajes do pátio
nem porta rangendo, nem padeiro subindo as escadas. Esse momento
matinal estava fora do tempo, não levava a nada, não
indicava nada iminente, bastava-se a si mesmo, e como me incluísse
inteiramente, para mim não havia dia nem pensamento de levantar
ou ir à escola, nem tarefas mal cumpridas nem vocábulos
mal aprendidos, café da manhã apressado na arejada
sala de jantar.
A eternidade da felicidade dessa vez foi desfeita pela intensificação
do belo, por um mais e demais de alegria. Enquanto eu estava ali
deitado sem me mover, e o silencioso e claro universo matinal penetrava
em mim e me absorvia, algo inusitado, algo brilhante e excessivamente
claro e dourado e triunfante varou o silêncio, cheio de uma
atrevida alegria, pleno de uma doçura sedutora e inquietante:
o som de uma trombeta.
E, enquanto eu, só agora plenamente desperto, me sentei na
cama afastando os cobertores, o som mostrou ser de duas vozes, de
mais vozes ainda: era a banda da cidade que marchava pelas ruelas,
um acontecimento muito raro e excitante, cheio de uma festividade
barulhenta que fez meu coração de criança rir
e soluçar a um tempo, como se toda a felicidade, todo o encanto
daquela hora sublime tivesse se diluído naqueles sons agridoces
e excitantes, e agora se derramasse, despertado e retornado ao temporal
e ao transitório.
Saí da cama num segundo, tremendo de alegria solene, corri
atravessando a porta para o quarto ao lado, de cuja janela se via
a rua. Num tumulto de encanto, curiosidade e desejo de participar,
debrucei-me numa janela aberta, escutei feliz os sons altivos da
música que aumentavam e vi e ouvi as casas vizinhas e as
ruas acordando, tomando vida e enchendo-se de rostos, figuras e
vozes _e no mesmo segundo eu soube também tudo aquilo que
esquecera inteiramente naquele momento de bem-estar entre sono e
dia. Eu soube que com efeito naquele dia não haveria aulas,
era um feriado importante, penso que era aniversário do rei,
haveria desfiles, bandeiras, música e uma alegria inusitada.
E, sabendo disso eu tinha voltado, estava novamente submetido às
leis que regem o cotidiano, e ainda que não fosse um cotidiano,
mas um dia de festa para o qual eu fora despertado pelos sons de
metais, o verdadeiro e belo e divino naquele encanto matinal passara,
e sobre aquele pequeno milagre suave voltaram a se fechar as ondas
do tempo, do mundo, da banalidade.
* Referência
a glück, palavra alemã para felicidade, que tem apenas
um sílaba. (N. do E.)
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NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
Apesar
de ter morrido no começo dos anos 60 e escrito a maior parte
de sua obra antes mesmo da Segunda Guerra, Hermann Hesse (1877-1962)
era um autor cuja sensibilidade se afinava ou harmonizava de modo
feliz com o clima dos anos da contracultura e do movimento hippie
e, por isso ele voltou a se tornar um sucesso entre os jovens de
então. Esse sucesso perdurou, sem dúvida, por mais
algumas décadas, e sucessivas gerações de adolescentes
encontraram em suas obras não tanto uma resposta aos seus
dilemas, nem mesmo uma formulação clara de suas angústias,
mas uma espécie de empatia essencial, uma tradução
para um plano estético de seus próprios temores e
confusões.
Essa popularidade, entre os adolescentes, de um autor cuja adolescência
coincidiu com o fim do século passado e foi vivida numa sociedade
muito diferente de qualquer contemporânea, a saber, a da sisuda
Alemanha imperial, pode parecer surpreendente. No entanto, ao estilizar
mais ou menos oniricamente os problemas e traumas de sua própria
juventude, ele tocou em alguns temas basicamente universais e, se
a rigidez da educação e das instituições
que ele criticava tinha sido no seu caso bastante real, seus leitores
mais recentes foram capazes de lê-la enquanto uma hipérbole
para a qual, em todo caso, a tendência juvenil ao exagero
já os predispunha.
Romances como "Demian", "Sidharta", "O
Lobo da Estepe" e outros, bem como os temas do artista sensível
e incompreendido, da riqueza do mundo subjetivo e infantil contraposta
à aridez da realidade cotidiana e adulta, as grandes emoções
incapazes de encontrar uma forma e os grandes pensamentos sem assunto,
tudo isso, de tão precisamente talhado a uma certa idade
da vida das pessoas, se tivesse sido concebido hoje em dia, e não
70 ou 80 anos atrás, levantaria suspeitas de uma pesquisa
prévia de opinião e mercado. Embora esse conjunto
de temas e preocupações não fosse novo, pois
vinha desde o romantismo alemão, Hesse foi, à sua
maneira, o inaugurador de uma vertente literária na qual,
associado à maneira como o abordava, o conjunto em questão
passou a ocupar um lugar não periférico, mas central.
Além disso, numa época na qual a Índia popular
era a dos tigres e de Rudyard Kipling, o escritor alemão,
cujo pai e avô materno haviam, aliás, sido missionários
na Índia, criou uma versão do subcontinente que, duas
décadas antes de Mircea Eliade visitá-lo, já
correspondia à pátria da sabedoria e do misticismo
dos anos 60.
Para os que já travaram conhecimento com esses aspectos de
Hesse, a leitura de seu volume de recordações, observações
e meditações, "Felicidade", será
uma experiência útil. Não é que nele
se revele o escritor por trás da máscara dos personagens.
O que se revela é até que ponto elas correspondiam
seja à imagem que ele fazia de si mesmo, seja àquela
que desejava que seus leitores fizessem, isto é, do velho
sábio que teima em afirmar que nada sabe.
Não raro, por exemplo, ele refere-se a si mesmo como "nós
artistas" e, quando diz isso, patenteia-se que não está
falando de um profissional qualquer, mas de um ser diferente das
pessoas comuns, alguém que se relaciona de modo especial
com o mundo e particularmente com a natureza. Assim, vários
de seus textos contém longas descrições e/ou
reflexões sobre lagos, bosques e montanhas, algo previsível
num herdeiro dos românticos que desde os anos 10 escolheu
viver na Suíça.
Outros ensaios abordam o ofício do escritor e sua matéria-prima,
a palavra, mas não o fazem obviamente de uma forma técnica
ou ensaística, e sim de acordo com uma prosa menos argumentativa
que associativa à qual se poderia acrescentar facilmente
tanto o adjetivo "filosófica" quanto o "poética".
Hesse ganha mais precisão quando lida com um assunto menos
abstrato e, nesses momentos, seus ensaios se tornam mais interessantes.
Num desses ele discute sua própria relutância em retirar,
a pedido de um judeu ortodoxo, uma única palavra de um livro
escrito 25 anos antes, e nessas linhas se pode entrever uma ou outra
das razões que o levaram a se manter longe de seus compatriotas
no momento mais abjeto de sua história. Em outro, ele fala
de sua relação de leitor, correspondente e, enfim,
de seu contato pessoal com André Gide e nesse momento ele
entremostra que não era absolutamente um mau observador.
No geral, os textos desse volume, todos escritos depois da guerra,
reiteram, na velhice do autor, a visão peculiar que o havia
levado a começar, meio século antes, a sua obra.
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