FEDERICO FELLINI MORRE EM ROMA

Morreu ontem aos 73 anos o cineasta italiano Federico Fellini. O diretor estava internado em Roma desde que sofreu uma parada cárdio-respiratória, no dia 17. Fellini será velado hoje no Estúdio 5 de Cinecittá - onde rodou a maior parte de seus filmes - e enterrado em Rimini, sua cidade natal. O cineasta estreou como co-diretor em 1950 no filme "Mulheres e Luzes". O último filme que dirigiu foi "A Voz da Lua", de 1990.

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 1993

Morre o diretor da 'Doce Vida'

O cineasta italiano Federico Fellini morreu por volta do meio-dia de ontem, em Roma, aos 73 anos. Desde a parada cárdio-respiratória que sofreu no dia 17 de outubro, Fellini estava internado no centro policlínico Umberto Primo. O diretor passou duas semanas em estado de coma.

Anteontem, ele e sua mulher, a atriz Giulietta Masina, 72, completaram 50 anos de casamento. Ontem à tarde, milhares de romanos desfilaram na Via Margutta, onde morava o cineasta, e se aglomeraram na centro Umberto Primo, para render homenagens ao cineasta.

O estado geral de Fellini havia se deteriorado muito nos últimos dias. Além de complicações renais, foram detectados vários focos de infecção pulmonar. O diretor tinha a perna, o braço e o lado esquerdo de seu rosto parcialmente paralisados desde o derrame cerebral sofrido em agosto último, em Rimini (sua cidade natal, na costa do mar Adriático).

O velório de Fellini acontece hoje, no Estúdio 5 da Cinecittà, em Roma, onde ele filmou a maior parte de sua obra. O cineasta será enterrado no jazigo de sua família, em Rimini. Também adoentada, Giulietta soube da morte do marido pela TV, mas se mostrou "bastante forte", segundo a irmã Maria Luisa.

A morte de Fellini causou comoção na Europa. "O mundo perde um de seus maiores criadores", disse ontem François Mitterrand, presidente da França. "Suas últimas obras, assim como as dificuldades que teve de superar para realizá-las, são o próprio símbolo do combate pela cultura", completou.

"A Itália já não produz mais gigantes como Fellini", disse o diretor italiano Franco Zeffirelli. "Como se pode reduzir o gênio de um homem em uma frase de circunstância?", disse com lágrimas nos olhos o ator Marcello Mastroianni, astro de vários filmes do cineasta.
Fellini estreou como co-diretor, ao lado de Alberto Lattuada, em "Mulheres e Luzes", de 1950. Ganhou cinco Oscars. Com "A Doce Vida" (de 1960) se transformou num dos maiores mitos do cinema. Seu último filme foi "A Voz da Lua", de 1990.

Diretor foi maior que o cinema

Inácio Araujo
Critico de Cinema

Com Fellini, morre uma era. Nenhum diretor de cinema, desde Chaplin, conheceu o tipo de prestígio que o italiano conheceu. É verdade que os filmes de Fellini tiveram um número infinitamente menor de espectadores, que seu sucesso se deu junto a um público cultivado, mas o princípio que os sustenta é o mesmo: a mescla de humor, sentimentalismo, nostalgia, compaixão, perversidade, pieguice, sarcasmo, deslumbramento com as mais variadas manifestações da vida.

Essa extensão de registro é que os torna uma espécie de força da natureza e os aproxima, acima de certas paixões comuns (o circo, a ilusão). Chaplin não fazia o menor esforço para chegar a um cinema não-acadêmico. O enquadramento é centrado nele mesmo, incapaz de criar novidade ou surpresa. A surpresa e a novidade vinham do ator. O cômico não existia dentro de um espaço. O espaço é que existia para servi-lo.

Fellini, ao contrário, é um moderno. Quando chega, o cinema já tem uma linguagem e uma história. O tempo é das reinvenções. Mesmo que pareça não fazer o menor esforço, a composição das imagens de Fellini é sofisticada. Mas, a exemplo de Chaplin, a imagética popular - que enriquece com momentos por vezes definitivos - domina seus filmes, tanto quanto o cuidado ostensivo de fugir à erudição.

O que mais os identifica é o fato de terem se tornado personalidades maiores que o próprio cinema. Num tempo em que o cinema era visto como uma diversão de feira, Chaplin era a exceção, aplaudido mesmo pelos críticos mais renitentes do veículo.

Quando o cinema tornou-se arte de prestígio, Fellini foi aquele que levou esta idéia ao paroxismo: de "Oito e Meio" em diante, todos os seus filmes poderiam levar a palavra "Fellini" antes do título.

É quando se torna célebre também o seu "universo" de mulheres gordas, palhaços, imagens insólitas transitando entre sonho e realidade. O autor-personagem passa a se impor ao filme e, de certo modo, antepõe-se ao que mostra. O cinema não é mais um meio. Torna-se um fim, no qual o autor é a principal referência.

Fellini tornou-se, em certa medida, prisioneiro de sua fama e daquilo que o público identificou como felliniano. Celebridade máxima do "cinema de autor", seus filmes passam a resumir a crise desse conceito. Em toda parte, o que os cineastas mais fazem é remeter a si mesmos, reiterar suas "obsessões". Os últimos trabalhos de Fellini manifestam uma clara preocupação com isso.

A surpreendente limpidez de "Ginger & Fred" é um atestado de mudança de rota. Tudo o que se identifica como felliniano está lá. Mas o autor se retira em favor das coisas que mostra. A realidade agora escapa ao controle do criador. O autor-demiurgo se cala para constatar a banalização da imagem pela TV, a derrota frente aos caos, ao tempo, à indiferença.

À morte, em uma palavra.


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