CEM MIL DOLARES PELA LIBERDADE PAGOU CARMEM MIRANDA NOS ESTADOS UNIDOS


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 23 de setembro de 1951

Neste texto foi mantida a grafia original

Esta é a historia, pouco conhecida, da carreira cheia de dinamismo e aventura da mais popular atriz sul-americana

1938 — Carmen está enfarada. Rio, São Paulo, Santos, algumas vezes Buenos Aires e volta ao Rio, eis o ciclo, quase rotineiro, de sua vida. Nesse momento, subitamente, Carmen se vê com o contrato de um empresario francês nas mãos, contrato que a levaria a Paris —centro de atração dos artistas— para trabalhar ao lado de Chevalier, La Mistinguette, Lucienne Boyer e outros.

UMA AMIGA "PALPITEIRA"

É aí que entra em cena a Providencia Divina. Estava tudo combinado quando uma amiga da "bahiana" dos balangandãs, aliás muito informada sobre o movimento do cais do porto, aconselha-a a esperar um pouco. Esperar? Mas para que?
— "Não perdes nada. Na semana que vem, chega o "Normandie", que traz, entre os turistas norte-americanos, um famoso empresario teatral. Compreendes?
Carmen encolhe os ombros. Que bobagem! Em todo caso, como não tem nada a perder, fica. Com um passaro nas mãos, ela preferiu, contrariando o brocardo popular, dois voando...


ACONTECEU NUMA NOITE

O "Normandie" chegou, no dia aprazado, e trazia a bordo, entre outros turistas, a famosa rainha dos patins, Sonja Henie.
Carmen trabalhava, nessa ocasião, no Casino da Urca. Certa noite, correu a noticia de que Sonja iria ao espetaculo. Carmen, naturalmente, trata de preparar-se o melhor possivel. Vestiria uma fantasia bem vistosa, tipicamente brasileira e... bem, justamente nesse instante lhe ocorre a idéia que mais tarde a tornaria celebre: o tabuleiro de frutas. Pareceu-lhe que isso combinaria bem com o cenario, o traje, etc. Essa a primeira vez que Carmen se exibe com o bizarro, espalhafatoso e originalissimo costume, deixando boquiaberto os turistas americanos.
Sonja, encantada, dirigiu-se a Lee Shubert, chamando sua atenção para o espetaculo na Urca naquela noite, dizendo-lhe que aí havia algo de maravilhoso, ainda inexplorado.

AINDA UM TURISTA

Lee Shubert, então o empresario teatral numero um dos Estados Unidos, fora quem, antevendo as grande possibilidade da notavel patinadora, a apresentara pela primeira vez no Carnaval do Gelo, do "Madison Square Garden", festival realizado anualmente e que pouco após lhe abriria as portas de Hollywood. A principio, o entusiasmo de Sonja pelo numero não lhe sugeriu mais que a ideia de um novo traje para o vestido de patinadora. O tempo urgia e, portanto, seria mais comodo comprar a indumentaria do que se meter com modistas, etc. Não lhe restava, pois, senão voltar à representação da Urca para entender-se com a proprietaria do exotico traje.
Quando Shubert, fazendo-se apresentar, mostra interesse apenas pela roupa, a desilusão de Carmen é enorme; entretanto, o empresario, sempre amavel, quer conhecer os planos de Carmen. Ao saber que um rival francês lhe tomara a dianteira, decide-se. Ocorre-lhe, nesse instante, que o traje ficaria muito mais pitoresco com a propria dona dentro dele... Nova York, tambem, convinha mais a Carmen: os "night-clubes", os teatros, as "boites" ofereciam melhores perspectivas do que a "Cidade-Luz", e o negocio foi fechado. Shubert ficou de escrever-lhe dentro de algumas semanas, de Nova York, a fim de concluir definitivamente o contrato. Enquanto isso, ela poderia ir aprontando as malas. Carmen dá o traje a Sonia e fica à espera.
O empresario francês, contudo, se tornava cada vez mais impaciente e os pretextos de Carmen já estavam escasseando quando, uma tarde...

VIAGEM SUBITA

Uma tarde chega ao Rio o telegrama de Lee Shubert: Carmen já tem data marcada para estrear em Nova York!
Um furacão de valises, costumes, sapatos, cintas, laços de fita, enfim, uma tormenta de cores no meio do qual Carmen, estonteada, rodopia. Depois, o porto. Ela, por esse tempo, tinha experiencia de muitas coisas, como, por exemplo, de maquilagem. Pintava-se de manhã, do mesmo modo que à noite. Alem disso, como sucede com a maioria das mulheres latinas. Carmen tinha nessa epoca sua fraqueza. Imitava em tudo seu idolo: Joan Crawford, que era, para ela, o sonho, a perfeição. Assim, com esse vezo de imitar, acabava não sendo nem Joan nem Carmen.
Assim...
No navio em que Carmen viaja vai uma companhia francesa de revistas, integrada por belissimas coristas, todas, no entanto, despersonalizadas pelo padrão de elegancia ditado por Hollywood. A atriz brasileira compreende, de relance, que passaria despercebida entre as francesinha e que, ao chegar à terra do cinema, ninguem a reconheceria como a "sensação" brasileira descoberta por Lee Shubert. Nesse interim, o empresario lhe comunica que uma grande publicidade está sendo feita em torno de seu nome, baseada nos trajes exoticos e nas canções, que preparará o terreno para que seu aparecimento se torne, em Nova York, estrondoso sucesso.
Como, então, aparecer vestida de modo identico às francesinhas? Carmen conjecturou que isso não daria certo e pôs mãos à obra.

UMA MULHER TROPICAL

No cabeleireiro de bordo, Carmen tinge o cabelo castanho de preto selvagem. Desde esse dia só usa "shorts" e passa varias horas no convés, cotidianamente, para tostar a pele, até que esta adquire um matiz bem tropical. Então, deu-se outra casualidade. Carmen tinha no vestido uma faixa multicor e inesperadamente lhe veio a idéia de usá-la como turbante. A pele tostada, o cabelo preto, os trajes bizarro completaram a obra. Acabou-se o ar de Joan Crawford e da noite para o dia ela se tornou o que é: Carmen Miranda.
Quando o navio atraca nem um só reporter fica em duvida. Ali está a "estrela" brasileira de Shubert, com seu ar exotico, sua pele morena, seu turbante e... Nossa Senhora, que sapatos!...

A FAMA COMEÇA PELOS PÉS

Todos os olhares convergem para os sapatos que Carmen popularizou. O mais interessante, todavia, é que nunca ocorreu a ela que esses sapatos "cariocas" chamassem tanto a atenção. Pois bem, foi uma sensação!
Lee lança Carmen com magnificencia nunca vista. Ela, deslumbrada, não se cansa de percorrer a cidade. Certa manhã, ao entrar nas lojas "Wolwoorth", Carmen vê num dos balcões numerosas fotos suas e turbantes de todas as cores. Uma empregada, especialmente designada, ensina as freguesas o modo de usá-los. Ao lado, um cartaz anuncia: "Brazilian Style. Carmen Miranda's Turba".
Tudo isso lhe parece um sonho. Nem tudo, porem, é roseo. A musica, por exemplo. Carmen nunca pôde apresentar nada autentico, ao seu gosto, pois só consideravam coloridos os numeros em que havia esse toque de "south american style", adaptado, naturalmente, ao sabor norte-americano. Apesar de tudo, seu sucesso é retumbante.

BRILHANTES POR SAPATOS

A famosa sapataria "Carter", a mais luxuosa de Nova York, oferece cinco mil dolares por uma copia dos sapatos de Carmen. Ela compreende, todavia, que a exclusividade lhe é mais conveniente, e recusa. Foi aí que eles sairam com uma das suas.
Apareceram, certo dia, no camarim de Carmen com um colar de 140.000 dolares. Queriam fotografá-la com o dito colar. Bem, não há mulher que se negue a usar semelhante jóia, nem que seja só "p'ra ver como fica"... E foi assim que bateram a foto, não dos brilhantes, mas sim do sapatos! E não foi tudo. O famoso modelista Bone Taylor se ofereceu para retratá-la. Achando boa a propaganda, Carmen consente. Posa uma semana e os desenhos sairam estupendos.
Um mês depois, ao passar pela 5.a avenida, Carmen depara com uma multidão de mulheres que se acotovelam em frente à Sacks", a celebre casa de modas. Que seria aquilo? À força de empurrões, consegue chegar à frente das vitrinas e qual não é o seu espanto ao ver três reproduções exatas de sua pessoa!

A LIBERDADE POR CEM MIL DOLARES


Assim Carmen conquista a cidade. Ela não está satisfeita, porem. Objetiva um futuro mais brilhante, superior à tecnica sempre rotineira de Shubert. Este, entretanto, tem-na bem segura. Quando Carmen recebe ofertas formais de Hollywood decide participar a nova a seu empresario. Custa-lhe caro esse gesto. Não só uma cena desagradavel, mas tambem cem mil dolares, em numeros redondos, dos quais, contudo ela só possui 75.000, vendo-se obrigada a pedir emprestado à "Fox", com quem firma contrato por cinco anos.
Carmen agora trabalha só de "free lance", isto é, contrato por pelicula. A sua adaptação foi penosa, mas ela acha que valeu a pena e... assim o achamos tambem.


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