O AUTOR DE SI MESMO


MACHADO DE ASSIS

Numa crônica de jornal, a tese schopenhaueriana da metafísica do amor é ilustrada por um caso policial

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 19 de fevereiro de 1988

Guimarães chama-se ele: ela Cristina. Tinham um filho, a quem puseram o nome de Abílio. Cansados de lhe dar maus tratos, pegaram do filho, meteram-no dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou três dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, até que veio a falecer. Contava dous anos de idade. Sucedeu este caso em Porto Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos à cadeia, e aberto o inquérito. A dor do pequeno foi naturalmente grandíssima, não só pela tenra idade, como porque bicada de galinha dói muito, mormente em cima de chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, fê-lo passar um mau quarto de hora como dizem os franceses, mas um quarto de hora de três dias: donde se pode inferir que o organismo do menino Abílio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente: mas prova de que não iria até lá, é que morreu.
Se não fôsse Schopenhauer, é provável que eu não tratasse deste caso diminuído, simples noticia de gazetilha. Mas há na principal das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que não era modesto, afirma que esse estudo é uma pérola. A explicação é que dous namorados não se escolhem um ano outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso Abílio.
Um dia Guimarães viu Cristina, e Cristina viu Guimarães. Os olhos de um e de outro trocaram-se, e o coração de ambos bateu fortemente. Guimarães achou em Cristina uma graça particular, alguma coisa que nenhuma outra mulher possuía. Cristina gostou da figura de Guimarães, reconhecendo que entre todos os homens era um homem único. E cada um disse consigo: "Bom consorte para mim!". O resto foi o namoro mais ou menos longo, o pedido da moça, as formalidades, as bodas. Se havia sol ou chuva, quando eles casaram, não sei: mas, suponho um céu escuro e o vento minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de um céu claro. Bem-aventurados os que se possuem, porque eles possuirão à terra. Assim pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso filósofo, foi unicamente Abílio. O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os dous se encontraram: "Guimarães há de ser meu pai e Cristina há de ser minha mãe: é preciso que nasça deles. Levando comigo, em resumo, as qualidades que estão separadas nos dous". As entrevistas dos namorados era o futuro Abílio que preparava: se eram difíceis, ele dava coragem a Guimarães para afrontar os riscos, e paciência a Cristina para esperá-lo. As cartas eram ditadas por ele. Abílio andava no pensamento de ambos, mascarado com o rosto dela, quando estava no dele, e com o dele, se era no pensamento dela. E fazia isso a um tempo, como pessoa que, não tendo figura própria, não sendo mais que uma idéia específica, podia viver inteiro em dous lugares, sem quebra da identidade nem da integridade. Falava nos sonhos de Cristina com a voz de Guimarães, e nos de Guimarães com a de Cristina, e ambos sentiam que nenhuma outra voz era tão deleitosa.
Enfim, nasceu Abílio. Não contam as folhas cousa alguma acerca dos primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. Há dias bons debaixo do sol. Também não se sabe quando começaram os castigos - refiro-me aos castigos duros, os que abriram as primeiras chagas, não as pancadinhas do princípio, visto que todos as cousas têm princípio, e muito provável é que nos primeiros tempos da criança os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, é porque lágrima é o suco da dor. Demais, é livre - mais livre ainda nas crianças que mamam, que nos homens que não mamam.
Chagado encaixotado, foi levado à estrebaria onde, por um desconcerto das cousas humanas, em vez de cavalos, havia galinhas. Sabeis já que estas, mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaços da carne de Abílio. Aí, nesses três dias, podemos imaginar que Abílio, inclinado aos monólogos, recitasse este outro de sua intenção: "Quem mandou aquêles dous casarem-se para me trazerem a este mundo? Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não era nascido? Que banquete é este em que o convidado é que é comido?"
Nesse ponto do discurso é que o filósofo de Dantzig, se fôsse vivo e estivesse em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritação: Cala a boca, Abílio. Tu não só ignoras a verdade, mas até esqueces do passado. Que culpa podem ter essas duas criaturas humanas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando Guimarães passava e olhava para Cristina, e Cristina para ele cada um cuidando de si, tu é que os fizeste atraídos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a êste mundo que os ligou sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e não sei se tua somente... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as cousas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo 2. Livro 4, capítulo 44... Anda, Abílio, a verdade é verdade ainda na hora da morte. Não creias nos professores de filosofia, nem na peste de Hegel...
E Abílio, entre duas bicadas:
- Será verdade o que dizes, Artur; mas é também verdade que, antes de cá vir, não me doía nada e se eu soubesse que teria de acabar assim, às mãos dos meus próprios autores, não teria vindo. Ui! ai!

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