AMORES CELEBRES
A "AMADA IMOVEL"
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Publicado
na Folha da Manhã, quinta-feira, 12 de fevereiro de
1931
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Neste texto foi mantida a grafia original
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No começo deste seculo teve inicio o romance entre o poeta Amado
Nervo e a linda Ana Cecilia Dailliez
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Algumas lampadas de gás ardiam com sua luz amarela de fim
de século. A noite era bastante clara para que a lua iluminasse
os trastes das aguas furtadas. Quantos artistas enganavam com seus
sonhos os açoites da fome! Quantas modistas queimavam sua
adolescencia em quartos escuros, cercadas pela tisica. No correr
da noite, alguns semblantes de olheiras se moviam no leito ao ouvir
o rangido da escada envelhecida. Será que se esperam sempre
o regresso do ser amado, os movimentos da que retorna depois do
inverno, da que tira o abrigo e, sem palavras, nos regala com um
sorriso triste?
Todas estas cousas pensava talvez o poeta Amado Nervo, enquanto
desaparecia nas arruelas do bairro latino. A Ponte Nova não
estava longe e, ali, tinha um encontro com uma costureirinha. Quem
era ela? Pouco importa. Talvez uma dessas tanta jovens de vida leviana,
de talhe fino, de olhos alegres e coração inconstante,
que alegravam as ruas de Paris e faziam as delicias dos boemios.
Comparecia ao encontro esperando ver aparecer a cabeça despreocupada,
do passo miudo daquela mulher que saia das sombras por alguns momentos
para voltar novamente, já perto do amanhecer, a fundir-se
nas sombras. Era uma dessas conquistas espontaneas, de pura juventude,
essas jovens que usam colares de fantasia, pulseiras baratas, e
se alegram e choram, inesperadamente e sem motivo, e se dependuram
dos braços como passaros que estão prestes a morrer.
Advinham suas mortes anonimas e prematuras, embora nada digam. Por
isso, riem ou choram inesperadamente.
Sua companheira o fazia esperar demasiadamente essa noite. O poeta
exclamou:
-"Pelo visto, a senhorita Musette não virá."
Suas palavras tinham um tom melancolico, como se lamentasse não
poder estreitar aquelas mãos calidas entre as suas e estranhasse,
ao mesmo tempo, não poder comprar-lhe essa noite as violetas
que preferia. Parecia vê-la com seu vestido abundante, a ingenuidade
do porte e uma alegria que não os impedia de passar momentos
encantadores nos lugares habituais. (Sobretudo aquela peça
com desenhos de castelos nas paredes, lá nos altos do Bar
du Printemps.) Pelo visto, teria de voltar só essa noite.
Começava o regresso. Pareciam, agora, mais velhas as aguas
furtadas e imaginava mais palidos os que, agitados no leito, esperavam
que o retorno do ser querido.
-"Anotarei em meu diario: "A 31 de agosto de 1901, a senhorita
Musette faltou ao encontro."
Alguns boemios cantavam na porta de uma taverna a velha canção
de sempre:
"Paris se incendeia
Incendeia-se Paris..."
Malogrado como galã, caminhou durante quase meia hora. Subitamente,
a luz de um "boulevard" caiu sobre os rostos de duas mulheres.
O poeta notou a estranha beleza de uma delas. Era diferente de todas
as demais. Olharam-se por um instante. Notou em seu rosto as marcas
de um sofrimento intenso. Parecia-lhe que vinha de uma grande dor.
Pelas palavras da outra, percebeu que eram irmãs. Não
buscava companhia, mas ao enfrentar-se com a desconhecida sentiu
como se toda a sua infancia lhe subisse ao peito.
-"Essa é a mulher que toda a minha vida tenho esperado"
- disse a si mesmo.
Algo de novo e poderoso os obrigava a mirar-se entre a multidão.
De vez em quando, seus olhos se encontravam, e então era
como se o sangue florescesse. Ana não via as carruagens,
os transeuntes, e a conversa com sua irmã lhe parecia muito
distante. Havia momentos em que não podia dominar-se e olhava
para o poeta, que vinha atrás dela como se houvesse perdido
os fios de sua vontade. O aspecto grave e distinto daquele jovem
delgado lhe parecia um produto de seus sonhos. Nenhum dos dois percebia
que caminhavam entre comerciantes, vendedores, burgueses e ladrões.
Todo o bulicio de Paris não conseguiu silenciar a voz sobressaltada
do sangue desses dois enamorados. Como seriam dificeis então
as palavras!
Dias depois, a encontrou só. Tido sido para ele noites de
insonia e desassossego. Para ela, tarde tristes e infinitas; essas
tardes inesqueciveis que anunciam o nascimento ou a morte do amor.
Ana tivera medo, logo depois do encontro, de ficar só nos
longos ocasos. As ultimas luzes do dia, refletidas sobre os espelhos
da habitação, sobre a vasilha reluzente, produziam-lhe
uma sensação de angustia. A irmã observou que
ela andava calada, taciturna e nervosa.
A tarde em que se encontraram novamente pareceu-lhe que se conheciam
desde há longo tempo. Caminharam em silencio, felizes e deslumbrados.
Chegaram à Place Blanche. As crianças cantavam a velha
ronda:
"Dans la place Blanche
c'est toujours dimanche."
Aquele amor era demasiado profundo para precisar de muitas palavras.
Ele lhe segurou as mãos com devoção e então
ela disse:
-"Não sou mulher para um dia."
-"Para quantos, então?"
-"Para a toda a vida!"
E, desde este momento, Ana Cecilia Dailliez e Amado Nervo ficaram
unidos para sempre. Há uma mulher na vida que é a
definitiva. Para o poeta havia chegado sua companheira. Como estava
longe de suspeitar os momentos de sofrimento, os momentos em que
escrevia "La Amada Imovel". Era a hora da vida e eles
caminhavam sorridentes pelas ruas de Paris. Tinham o peito carregado
de tesouros.
Como alem de poeta Amado Nervo era tambem diplomata, muitas cidades
do mundo viram juntos nos lugares mais belos e mais secretos. Universidades
de Florença, vales do México, pontes de Veneza e ruas
de Nova York, fontes de Bruxelas e ruinas de Roma, e tambem o nevoeiro
de Londres. Alem disso, Ana sonhava em conhecer a ilha de Santa
Margarida, na bela Hungria. Amaram-se sem luxo nem ouropéis;
silenciosamente, como pode o verdadeiro amor. Pequenas alegrias
cotidianas foram a sua felicidade. O passeio da carruagem, o caminho
de Saint Germain, enquanto ele admirava sua blusa vaporosa e ingenua;
ceias secretas nos restaurantes acolhedores, quando tudo se reduzia
a uma conversa povoada de silencios diante de garrafas coloridas.
E, depois, o regresso, altas horas da noite, e ela adormecida sobre
seu ombro. Era o amor de todos os dias, renovado como o pão
biblico. Seu bom apartamento, cada dia mais agradavel, com as peles
de Ana, sua blusa bordada, seus perfumes, suas flores preferidas.
Ele lhe lia os versos de "Serenidade". Ela escutava extasiada,
sentindo-se amada sem fronteiras. Esses eram os momentos que mais
desejava. Viver ao lado de um poeta não é tarefa facil
para uma mulher. Cercava-a uma vida sem luxos, às vezes exigua;
às vezes ocultando-se de certas pessoas.
Muitas dificuldades existiam, é certo. Mas quem seria capaz
de oferecer-lhe momentos tão plenos como aqueles em que escutavam
os poemas que eram somente dela:
"Lo recuerdas: una noche sin fulgores, sin bellezas,
el espectro de la ausencia la consagraba com su mano
al dolor sin esperanzas nuetras pálidas cabezas."
Ou aquele que dizia:
"Yo vengo de um brumoso pais lejano,
regido por un viejo monarca triste;
mi numen sólo busca lo que es arcano,
mi numen sólo adora lo que no existe."
E, em todas as estrofes, o poeta celebrava a sua amada, que sorria
feliz, a seu lado.
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NA
TERCEIRA GAVETA...
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Desde aquela noite em 1901 em que se encontraram por acaso, havia
transcorrido onze anos. Onze anos com todos os seus dias, horas
e minutos. Isto é, onze anos completos, sem separações
e sempre um junto ao outro. Tinham gozado um amor sereno e profundo.
Intimamente intenso, porem, sem tumultos Sem acontecimentos exteriores.
Foi um romance construido por ambos, dia a dia aperfeiçoado,
como uma jóia. Tinham chegado ao equilibrio perfeito do corpo
e da alma. Suas almas se comunicavam, e havia isso que é
tão dificil entre os seres: a comunhão espiritual.
Não eram dois mundos separados que viviam cada um em sua
solidão. Neste caso, a solidão se comunicava, se dividia,
como também a alegria, o entusiasmo, o jubilo e o sofrimento.
O segredo de sua felicidade estava na intimidade em que viveram
com toda a sua transitoriedade, seu desconsolo, suas esperanças
e seu barro.
Estavam nessa epoca residindo em Madri. Uma tarde, sem que nada
o fizesse prever, Ana lhe disse:
-"Se eu morrer, na terceira gaveta da minha mesa estão
os meus papéis."
O sangue parou no coração do poeta. Que estranho pressagio
significavam aquelas palavras! Viu-a pequena, formosa, pura e radiante.
Então, que queria dizer aquilo. Passou a tristeza como uma
ligeira nuvem de verão. Ambos esqueceram os temores e entre
beijos e caricias voltaram a fundir-se no amor.
Mas, acontece que, alguns anos depois, Ana adoeceu para não
mais levantar-se. Foi em vão que ele velou, dia e noite,
junto ao seu leito, ajudando com seu coração enamorado
aquela dificil respiração.
Não saia da cabeceira da cama. Algo lhe anunciava que eram
horas preciosas aquelas em que ainda podia olhá-la. Mil vezes
seus beijos cobriram o rosto palido da enferma, devorada pela febre.
Todos os medicamentos se revelaram impotentes. A cada minuto Ana
se apagava. Ele a fitava com avareza, como querendo fitar seus olhos
e guardar o fulgor querido. Como se desejasse guardar o tesouro
dessas horas para quando chegasse o momento da solidão. Mil
vezes se rebelava ante a idéia da separação
definitiva. Gritar, chorar, morrer? Isso viria depois. Agora era
necessario cuidar dela, beijá-la, oferecer-lhe as ultimas
caricias.
Ao meio dia, quando o sol estava mais alto do que nunca, Ana Cecilia
expirava. Desde esse momento, começava a ser a "Amada
Imovel".
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"O
CEMITERIO DOS SUICIDAS"
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Seu rosto querido se tornou quase transparente. Parecia viva, com
suas mãos pequenas e adoraveis e toda a bondade de sua vida
concentrada num sorriso placido e dilatado. Um sorriso sereno e
sabio.
No dia seguinte, a levaram ao cemiterio. O cemiterio a recebeu com
recolhimento, quase com devoção. Heras e ciprestes
adornavam o campo umido da pequena morta. O frio do inverno endurecia
a erva e as tumbas humildes eram varridas por um vento persistente.
A terra a recebeu juntamente com a chuva que convertia em lagos
todas as estradas. Algumas arvores protegiam seu descanso definitivo
como fiéis sentinelas enamoradas de uma morta.
E, nesses momentos, já perdida para sempre a sua Ana, que
pensava o poeta? Sabia que lá, na America, existiam os cemiterios
dos suicidas. Geralmente, em uma pequena elevação
distanciada do cemiterio principal, havia um local separado e silencioso
para os que já não querem nem podem mais viver. Ele
sabia disto, e, depois da morte de Ana, para que continuar a viver?
Era tão facil apanhar uma pistola e seguir o seu caminho!
Era preferivel isto a voltar para casa e encontrar a metade do leito
vazio. Um ar frio e pesado da solidão cairia, então,
sobre seus ombros. Todos os objetos a recordariam. Ela continuaria
nos chapéus, nos papéis, em toda a parte.
Nessa noite, já perto da alvorada, teve um sonho belissimo.
Ana chegava com um vestido branco, sorrindo. Aproximava-se cada
vez mais. Trazia uma cesta de flores, umidas ainda de orvalho. Aproximava-se
com um sorriso triste - sempre são assim os sorrisos das
mortas, nos sonhos - e parecia aerea e fragil. Nas suas costas havia
um campo e o poeta reconheceu a paisagem de Saint Germain. Mais,
minutos depois (como acontece nos sonhos) Ana estava com sua cesta
de flores sentada à beira da cama, e lhe pedia que lesse
os seus versos tal como antes. Porque eram os versos que a faziam
feliz.
Na manhã seguinte, ao despertar, ainda o coração
dolorido e feliz pela visão, o poeta não saia do seu
assombro e parecia buscar, sobre a cama, a cesta de flores, umedecidas
ainda pelo orvalho. E, recordando o sonho, pensou que o mesmo seria
o ultimo pedido que lhe fazia Ana. E, então, percebeu que
devia viver e sofrer para lembrá-la e para escrever-lhes
os versos que a faziam feliz. Foi neste instante em que resolveu
cantar. Antes havia sido a amada de seus dias e noites, com alegrias,
penas e surpresas. Agora, continuaria a ser, apesar de tudo, a sua
amada imovel. Nasceram, assim, os versos escritos para uma morta:
"Todo en ella encantaba, todo en ella atráia;
su mirada, su gesto, su ronrisa, su andar...
El ingenio de Francia de sua boca fluia,
Era llena de gracia, como el Avemaria;
Quien lo vio no la pudo ya jamás olvidar!
Outras
vezes, nas desertas horas da noite, forjando-lhe um vida que não
tinha, despedia-se dela como antes, como antes, quando estava viva!
"Buenas noches, mi amor, y hasta mañana!
Hasta mañana, si, cuando amanezeca!"
Passavam lentos, tristes e vazios os dias. Continuavam vivendo somente
para cantá-la. Chegaria o dia em que ambos novamente estariam
juntos:
"Por qué permaneciste siempre sorda a mi grito?
Dios sabe cuántas vezes, com amor infinito, te busqué
en las tinieblas, sin poderte encontrar.
Hoy - por fim! - te recobro: todo, pues, era cierto...
Hay un alma! Qué dicha! No és que sueñe dispierto...
Te recobro! De miras e te vuelvo a mirar!
-Me recobras, amigo, porque ya eres um muerto de fantasma a fantasma
nos podemos amar."
Seguramente,
Ana era feliz ouvindo os versos que inspirava até depois
de morta. É certo que sua mão estava agora demasiado
fria, que seus olhos não viriam jamais nem o sol, nem as
flores, nem as abelhas. Mas, era ainda uma mulher amada, na memoria
e na lembrança, que são as zonas mais profundas do
amor.
Chegou a primavera. O cemiterio florescia. E os ciprestes estavam
juntos dela como sentinelas enamoradas.
Anibal de La Vharga
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Amado Nervo nasceu no Mexico, em 1870. É autor de "perolas Negras",
"O Exodo e as Flores do Caminho", "os Jardins Interiores", "Em Voz
Baixa", "Serenidade", "Elevação", "A Amanda Imovel", "O Arqueiro
Divino", etc. Foi diplomata na Espanha e nos paises da America.
Sua obra foi muito divulgada e ele sumamente imitado.
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