GABRIEL D'ANNUNZIO

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 3 de março de 1938

Neste texto foi mantida a grafia original

Não ha, talvez, quem desconheça, em suas linhas geraes, a personalidade artistica de Gabriel D'Annunzio. É o poeta dos versos de bronze e das idéias grandes como assombros, que conseguiu reviver magistralmente, em nosso seculo, todas as bases fundamentaes da arte classica, revolucionando a literatura italiana, dando-lhe uma forma nova, mais caracteristica, mais profunda.
Em torno do seu nome harmonioso e sugestivo, estabeleceram-se e correram mundo os boatos mais inverosimeis, as lendas mais exoticas, os insultos mais audazes, as proezas mais extravagantes, de par com os maiores elogios que sahiram de bocca humana.
Trabalhando como realmente trabalhou em pról das mais elevadas manifestações do Pensamento - lutando como sempre lutou pela victoria do seu altissimo ideal que era, sem restricções, o ideal da Italia contemporanea, tornou-se, desde a aurora da sua vida, o verdadeiro idolo da juventude estudiosa, dos moços que amam a Arte, têm fé no futuro e acreditam na gloria.
Em todos os campos de actividade, desde os da polemica, pelos jornaes, até os da batalha a ferro e fogo, nas planicies e nas montanhas ingremes do seu paiz, elle agiu, revelando dotes excepcionaes de energia physica, moral e intellectual. Mas onde culminou a sua obra, unica talvez no nosso tempo, foi numa extraordinaria operosidade artistica e literaria, num quasi esbanjamento de força creadora, dedicando-se de corpo e alma à renovação das artes e das letras, construindo um caracter proprio, inconfundivel, e procurando fecundar o vacuo aberto pela tendencia doentia e desmoralizadora da corrente que teve origem no romance do segundo imperio francez.
Em todas as occasiões, em todos os pontos, até nos menores particulares da sua producção, fez transparecer o acrysolado amor votado à Patria - essa terra que elle enriqueceu com as melhores paginas literarias da sua época e que sempre desejou vêr livre, grande e dominadora, como grande e dominadora fôra Roma em tempos que ainda se veneram.

A revelação do genio

Cedo foi revelada a sua individualidade possante e sugestionadora de artista. Em 1879, pouco mais do que uma criança, regressou de Florença a Pescara, após um breve curso de linguas na cidade de Dante. E não tardou a dar inicio à sua vastissima producção, conduzindo-a a termo da maneira mais brilhante possivel, aproveitando-se de todas as opportunidades para escrever e proferir discursos memoraveis em pról da grandeza do seu povo.
Em 1882, contando 19 annos de idade, mais ou menos, collaborava assiduamente, em companhia do illustre publicista Eduardo Scarfoglio, no jornal "Il Capitan Fracassa", onde usou de diversos pseudonymos, dando, porém, predilecção aos de "Floro", "Floro Buzio" e "Mario del Fiori". Compoz então os primeiros livros intitulados "Primo Vere", "Canto Novo" e "Intermezzo di Rime" - trabalhos esses que, mais tarde, foram reunidos em um só volume com a epigraphe "Le Novelle Della Pescara", a que juntou a "Terra Vergine".
A exemplo de todos os grandes "novos", nessas étapas iniciaes, o grande escriptor já revelava, a par de uma perfeita consciencia de artista, de um conhecimento preciso do valor especifico do seu verso e de um modo todo especial de encarar a vida e as tragedias da vida, a profunda devoção ao sólo que lhe serviu de berço e lhe absorveu as primeiras lagrimas...
No circulo dos moços que, a esse tempo, se iniciavam no jornalismo e na literatura, as suas poesias e as suas paginas de prosa causaram impressão tão viva, tão profunda, que chegaram ao ponto de provocar os "prós" e os "contras" mais apaixonados.
Em consequencia do exito alcançado, teve de sustentar polemicas rudes, controversias audaciosas - vencendo quasi sempre por força da sua logica e da sua ironia. E, para despertar os seus jovens admiradores da apathia, ou da contemplação improductiva, para mostrar aos eternos nephelibatas que tambem os seus trabalhos continham erros e clarões de genio, não hesitou em escrever artigos violentos contra os seus proprios poemas, artigos que elle assignava com um pseudonymo qualquer...

A primeira viagem à Grecia

Publicados os primeiros livros, assegurado mais ou menos o exito dos que se lhes deviam seguir, o poeta não se deu por satisfeito com o que estava realizando e resolveu viajar um pouco, antes de apparecer novamente a publico. As viagens passaram então a ser o seu grande sonho. Estava certo de que, da visita às ruinas de cidades mortas, a sua arte receberia novo influxo. Para companheiro escolheu o publicista Eduardo Scarfoglio (fallecido em 1917, quando director do "Il Mattino", de Napoles) e, audaz como sempre, absolutamente certo de que receberia das viagens uma orientação esthética mais de accordo com as suas tendencias innatas, partiu com destino à Grecia, percorrendo-a, palmilhando-a toda, numa faina estafante de obcecado, procurando reanimar idolos e almas do passado. E lá, entre as ruinas sobre as quaes Byron chorára, tornou-se critico e estudou com desusada perseverança os prodigios immortaes da alma hellenica. Na analyse penetrante, no exame demorado e consciencioso a que procedeu nas velhas mas sempre bellas figurações esculptóreas da terra de Homero, adquiriu a pureza da linha esthetica dos hellenos, revelando-a depois mais viva, mais requintada, na construcção de suas obras de arte.
Não foi, porém, só a sua esthetica que evoluiu com os resultados colhidos nessa viagem; foi tambem o sentimento, a concepção do ideal de Patria.
Em Sparta o poeta soube como é bello, como é grande o amor que se deve votar à Patria; em Sparta sentiu, provavelmente pela primeira vez na vida, a santidade dos sentimentos das antigas mães spartanas, todas martyres, todas heroinas, que, sorrindo, sacrificavam os filhos na defesa da terra que lhes fôra berço. E só muitos annos mais tarde, quando a Europa vinha de se mergulhar em sangue, debruando-se de crimes e de torturas innominaveis, é que teve a affoiteza, ou melhor, o animo de exprimir o que sentia, nestes versos que se tornaram o cantico dos seus soldados e dos seus idólatras:
Patria! Patria! Questa sola parola mi trasporta.
E ribombare odo dentro di me, come alla porta
Del templo uno scudo percosso!

O auto de fé

Regressando à Italia, sempre em companhia de Scarfoglio, repousou pouco e o seu nome deixou de apparecer em revistas e jornaes durante o tempo estrictamente necessario à coordenação dos ensinamentos colhidos nas paragens da Grecia em ruinas.
Passou depois a escrever para a "Cronaca Bisantina", periodico dirigido por Angelo Sommaruga, e, em silencio, quasi solitario, deu inicio à exteriorização das grandes ideias que se lhe germinaram no cerebro após o extase da Hêllade.
Dahi por diante, toda a sua obra de arte e todos os actos de sua vida se concentraram no desenvolvimento pratico da synthese soberba encerrada nos tres versos patrioticos acima referidos. Esses versos pertencem à Ottava Della Vitria, e podem ser considerados o auto de fé do grande entre os grandes poetas e patriotas que actuaram nestes ultimos cem annos.

Actividade literaria do poeta - "Innocente"

Fôra ocioso recordar agora as curiosas aventuras da sua carreira artistica, entrando em pormenores que hoje deixariam de interessar, dada a rapidez com que D'Annunzio galgou as portas da celebridade.
São sobejamente conhecidas do nosso publico as suas melhores obras que foram commentadas e criticadas por autoridades da literatura universal, inclusive pelos mais illustres criminalistas.
São notorias as referencias de Enrico Ferri e de Scipio Sighela, referencias essas que provocaram fortes polemicas.
Estes dois autores se serviram notadamente do "Innocente", do "João Episcopo" e dos volumes das Estações para estudos de grande importancia sobre a criminologia e sobre a Independencia da Arte em relação às Sciencias. Das observações então feitas resultou, e não podia deixar de resultar, a verdade ainda hoje negada pelos eternos snobs da arte da literatura, mas que nem por isso deixa de ser o que é: a arte pura, essa arte que nasce com o individuo, e que constitue o maior patrimonio da actividade humana, nunca divergiu das sciencias, muito embora dellas não dependa e as tenha precedido algumas vezes.
Que assim é, dil-o da maneira mais convincente a formidavel concepção do protagonista do "Inoccente". Este volume é também conhecido pelo titulo de "O Intruso" ou ainda "O Crime".
Personagem principal, actora e espectadora de toda a tragedia, é a figura de um criminoso-nato, concretizada na personalidade profundamente egoista, mas aristocrata e serena, de "Tullio Hermil", cuja extructura attinge a consistencia esculptorea das creações shakspereanas, por dois motivos: pelo desenvolvimento logico e fatal da tendencia para a pratica do delicto e pela audacia sobrehumana com que a razão do crime foi localizada, para ter um grande relevo na concepção artistica, bem como na execução dos particulares.
Ferri, o polemista insomne da sciencia criminal, falando desta obra sob o ponto de vista exclusivamente scientifico, affirmou ser ella quasi tão grande como "Crime e Castigo" de Dostoewsky.
A nosso ver, porém, o "raskolmikoff" do terrivel romancista russo não deve ser tido em conta de um verdadeiro criminoso-nato, por isso mesmo que é dominado pelo remorso.
O remorso é um sentimento completamente extranho ao criminoso-nato - a se julgar pelas palavras do proprio Ferri, hoje acceitas por todos os sabios.
Os criminosos-nato e os criminosos por habito adquirido ignoram esse sentimento, relata Ferri no livro "os criminosos na arte e na literatura", pag. 51.
À entidade de "Raskolmikoff" falta, portanto, a principal caracteristica que, na obra dannunziana, é um facto real e se encaixa soberbamente no facto esthetico.
Dos seus volumes em prosa, "Innocente" ficará sendo sempre o mais espontaneo, o mais elegante nos processos expressionaes, o que com mais logica e maior somma de recursos desenvolve as extranhas theorias nietzcheano-medievaes, postas em pratica, na vida, pelo autor. Ainda que lhe faltassem estes requisitos, só o caracter de "Tullio Hermil" seria sufficiente para immortalizar um artista.
Ferri disse e provou que Hermil "É um desses libertinos bem postos, que passam por nós nas ruas das grandes cidades. É, em virtude de uma atrophia congenita do senso moral e de uma hypertrophia do "eu", sobretudo do "eu" sexual, um verdadeiro criminoso-nato".
Isto, à luz da sciencia moderna. O bastante, pois, para consagrar a formidavel concepção de artista e a extraordinaria intuição de psychologia de que D'Annunzio deu prova.
Com respeito ao estylo, salvo raros preciosismos, "Innocente" representa a obra-prima italiana, porquanto nunca a lingua de Dante foi tratada com mais desenvoltura nem com mais elegancia, nem com maior senso harmonico. Criticos ha (e Papini se inclue neste numero) que não são deste parecer. O certo, entretanto, é que D'Annunzio é ainda hoje o maior lyrico do Lacio, o maior creador de obras que sacudiram, revolucionando-a, toda a literatura de uma época.

A auto-psychologia do artista - consequencia de um principio edonista

Além do "Innocente", ha "Il Fuoco" e "Il Piacere" que exerceram poderosa influencia sobre as literaturas franceza, italiana e hespanhola, provocando um movimento agitadissimo entre os novos de então e fortes reverberações tambem ha tempo verificadas em grande parte da vida literaria sul-americana.
"Il Piacere" é, pode affirmar-se com segurança, a auto-psychologia do grande poeta-soldado. O proprio D'Annunzio confessava que outra figura nunca viveu tanto na sua febre conceptiva como a de André Sperelli, a ponto de nella ensimesmar-se e transfundir-lhe tudo o que era delle, autor - desde o saber, o orgulho, a audacia, a gentileza até à maneira individual de se orientar na vida.
O facto de ter proclamado em diversos livros o principio endonistico nada novo mas que por longo tempo ficára como que esquecido entre as velharias das bibliothecas, com a bella divisa: "Só vive muito quem muito gosa; quem não sabe gosar não é digno da vida" - levou os espiritos exaltados a tecerem as anecdotas mais estravagantes em torno da personalidade e da vida intima do poeta. Chegaram até a affirmar que D'Annunzio nunca passou de um degenerado sexual; de um errado, orgulhoso da propria aberração!
Mas a irrisão desse conceito dos Max-Nordauistas Snobs e detractores gratuitos não podia ferir a personalidade dannunziana, pois o artista assim se expressára de facto, não em referencia ao prazer carnal, mas ao prazer unico dos eleitos, que é o proveniente das emoções estheticas.
Gosar, para elle, gosar e viver, era saber discernir e amar o bello em tudo.

"Il Fuoco" - Wagner e Eleonora Duse na vida e na arte de D'Annunzio

"Il Fuoco", ampliação da sua maravilhosa auto-psychologia, foi escripto no periodo de tempo em que o autor mais amou. Nessa época elle vivia em Settignano di Desiderio, onde dava largas ao seu éstro, escrevendo prosas e poesias que nunca foram, nem serão, publicadas, mas que os seus intimos conheceram. Alli amou perdidamente, allucinadamente, a extraordinaria tragica Eleonora Duse, "La Diva Dalle Belle Mani", a quem dedicou a "Gioconda".
No muro, junto à porta de entrada da residencia desta grande sugestionadora de multidões, elle escreveu, em caracteres exóticos, a palavra Divina. Isto, ha mais de 30 annos, na cidadella de Settignano di Desiderio; mas o epitheto, muito justo aliás, ainda pode ser lido, apezar do musgo que andou como que couraçando a parede.
Dos escriptores do seu tempo, D'Annunzio foi quem melhor compreendeu e penetrou no pensamento musical de Wagner. A maior apotheose do maior genio da musica allemã foi escripta pelo poeta-soldado. Partes desse trabalho estão no "Triumpho da Morte" e no "Il Fuoco", adaptadas a casos especiaes. "Il Fuoco", no fim, contém uma soberba descripção da morte e do enterro de Ricardo Wagner. Ali, a bella Duse apparece com o nome de "Perdita", quasi velha, cansada, curva ao peso das muitas glorias, envenenada pelo sabor intenso de todos os triumphos - emquanto o proprio D'Annunzio surge sob a psychologia superiormente desenvolvida de "Etel'llio E'ffrena", o poeta de "Perse'Phone", o magico orador da "Epiphania do Fogo".
O nome "Perdita" dado nesse romance à formidavel actriz tragica não provém, como a principio se quiz insinuar, da influencia soffrida por D'Annunzio quando este lia e adorava as flores do Jardim de Perdita, no "Um Conto de Inverno", de Shakspeare (acto III, scena III).

"João Episcopo"

Outro trabalho de profunda observação psychologica é "João Episcopo", dedicado à escriptora napolitana sra. Mathilde Seráo (então divorciada do publicista Eduardo Scarfoglio). Foi escripto alguns mezes depois do licenciamento do poeta do regimento de cavallaria em que fôra contemplado com o grau de tenente.
A critica mais autorizada, após longo exame, proferiu a respeito dessa obra um parecer assás curioso, que se resume nestas palavras:
"Bom livro; profundo, artistico, empolgante; optimo quanto ao estylo; grandioso na concepção; mas não tem valor, ou melhor, teria grande valor se não fosse escripto por D'Annunzio".
Compreende-se, sem grande esforço e apesar da obscuridade desse paradoxo, porque é que o nome do autor prejudicava, neste caso, a obra.
O phraseado breve, pouco lyrico, quasi mathematico, das paginas do "Episcopo" não é caracteristica predominante na literatura dannunziana. A personalidade do autor, entretanto, não se desmente nessa obra; mas ahi deve ser vista por um outro prisma, encarada por outra face, obliqua, esforçada, que não é, por certo, a observada em todo o resto da sua grandiosa actividade.

"Laus Vitae" - "Dos meus crysóes sahiu o unico poema da vida total"

Da obra poetica dannunziana, onde culminou a deificação do paladino maximo da unificação da Italia, Giuseppe Garibaldi, ahi estão os volumes dos "Laudi Del Cielo, Del Mare, Della Terra e Degli Eroi". São versos que ficarão para assignalar a passagem de um dos raros genios contemporaneos dignos de figurar ao lado dos antigos immortaes.
Ha annos, escrevendo a um amigo sobre o que se dizia, na Italia, acerca desses poemas, D'Annunzio, num rasgo de justo e supremo orgulho, de egolatria levada ao extremo, porém justificavel em toda a linha, disse:
"... Considero-me um mestre, que, para os italianos, resume em suas doutrinas as tradições e as aspirações do sangue Augusto de que nasceu. Sou um creador que jamais se fadiga. Dos meus crysões sahiu o "unico" poema da vida total, verdadeira - a mais estupenda concretização de um ideal em palavras que a Italia viu depois da "Divina Commedia". Esse poema "unico" é o meu "Laus Vitae", concebido com uma sciencia diabolica, realizado com uma arte que nunca poderá ser igualada".
Vê-se, por essas linhas de uma carta que não foi escripta para ser publicada, a psychologia do Indivíduo, juntamente com a profunda consciencia que elle tinha de ser grande, com o justo orgulho de ser quasi um Deus...
O perfeito conhecimento da sua incommensuravel grandeza e a idolatria que os moços lhe votavam levaram-no mais longe, na extrinsecação da Sua Verdade: o poeta chegou até a descrever, no "Il Fuoco", a maneira pela qual devia ser representado por algum artista illustre, dizendo pela bocca de "Ste'llio E'ffrena" o que vae resumido nestas palavras:
"... Nenhum autor poderá representar-me na tela sem me pôr nas mãos o pomo punico (a romã). Separar desse symbolo a minha pessoa fôra ingenuidade do artifice: fôra separar do meu "eu" uma parte viva de mim mesmo".
A romã, de facto, é o symbolo da trilogia em que o autor se autobiographou com mais arte e mais fidelidade.
Como ficou dito acima, esse orgulho é, para nós, bem justificavel, pois todos os seus livros são extremamente bellos, e todas as suas tendencias, puramente artisticas.
Começando pelo seu nome que, como dizia o fino critico de arte José Frances, já é um poema, até à sua pagina mais banal - se é que se pode encontrar banalidade na sua obra -, tudo neste poeta está muito acima da mediocridade que elle sempre detestou.
A sua actividade, a sua producção em verso é como que o rastro de luz dos grandes immortaes: não deve ser estudada com relação ao seu tempo, nem comparada a qualquer outra dos seus antecessores na gloria; mas deve ser lida e analysada como obra delle, D'Annunzio, sem preambulos ou sophismas, porque a sua obra é a synthese da sua época, vista através de um temperamento excessivamente arrojado, de uma sensibilidade exasperada até ao desejo do anniquilamento. Sua escola é a energia possante do seu éstro.

As obras theatraes

No theatro, reconstruiu com garbo a tragedia grega, ampliando-a consideravelmente, insuflando-lhe um cunho de vida essencialmente moderno, sem todavia quebrar a harmonia do todo, e, o que é mais, fazendo vibrar nella a sua personalidade marcada de um sentimento inconfundivel de Italianidade. Assim, trabalhou com persistencia e desenvoltura, creando lances de emoção que foram e continuam sendo ainda o orgulho do seu povo.
Quem poderá, para citar um só exemplo, esquecer a impressão que deixa, logo à primeira leitura, a figura humanizada da Francesca de Rimini, a personagem tão sugestiva, tão intimamente poética, tão dolorosa e desaventurada no seu amor absurdo?
Francesca parece um mixto de Ophelia e de Lady Macbeth. Tem visões allucinantes de luz e de treva, de terror e de piedade, que passam à guisa de relampagos pela sua mente atribulada em consequencia do eterno amor paradisiaco que a enlouquece e a faz cantar!... O seu Paulo fatal, ella ama-o horrivelmente. E quer ser sua, desesperadamente, allucinadamente sua - e morre com elle no momento em que, desconhecendo a mentira da vida, pensava lhe sorrisse a mais bella esperança, a mais inteira felicidade.
A formidavel tragedia (musicada depois pelo maestro Ricardo Zandonal), toda isenta de artificios, concretizada com simples e extraordinaria capacidade synthetica, feita de paixão e de loucuras, foi extrahida de um Terceto titanico de Dante, sendo seu "pivot" a scena em que Alighieri diz:
"Quando legemmo il deslato riso.
Esser baciata da cotanto amante.
Questi, che mai da me non fia diviso,
La bocca mi bació tutto tremente".
"La cittá morta", "La gloria", "La fiaccola sotto il moggio", "La figlia di Iorio", "Piú che l'amore", "La nave", "Pedra", "Elettra", "O Martyrio de São Sebastião", e outros trabalhos de não menos valor, são o centro luminoso em torno do qual por longo tempo girou a poesia theatral italiana - não obstante a sensação tragico-voluptuosa que perpassa pelas entrelinhas de todos elles.
Do seu theatro, a obra mais espiritual é talvez "Gioconda". Desenvolve-se com uma naturalidade e, ao mesmo tempo, uma successão impressionante de scenas e estados de alma, que o proprio D'Annunzio nunca mais igualou. Termina com a quasi affirmação da theoria do super-homem, de Frederic Nietzche, posta, com algumas palavras apenas, na bocca de Gioconda Dianti - a tragica figura que symboliza, nesse trabalho, bem como em toda literatura dannunziana, a suprema aristocracia da inteligencia.

D'Annunzio na guerra - o Discurso de Quarto

Como não bastassem talvez, na sua convicção, os lances innovadores e regeneradores da Arte para a glorificação da sua Patria, D'Annunzio, que, como já referimos acima, em tempos idos fôra tenente de um regimento de cavallaria, fez-se guerreiro. Ao explodir da formidavel catastrophe de 1914, foi elle quem, julgando chegada a hora de a Italia levantar o seu terceiro vôo de gloria, pronunciou, no Escolho de Quarto, o memoravel discurso commemorativo da epopéa garibaldina, incitando a alma do povo à luta.
Pode hoje dizer-se, sem temer de erro, que essa oração foi, virtualmente, o brado de guerra da Italia. Só depois desse arroubo magnifico do poeta, dessa elegia suprema nunca dantes proferida por bocca italiana - desse verdadeiro poema vivo, feito de luz e de amor, de sacrificio e de patriotismo puro, reconhecendo a necessidade da participação da peninsula nos grandes movimentos dos grandes povos - foi que a filha de Roma, inflammada, embriagada de ineffavel enthusiasmo, se decidiu a entrar na peleja pelos direitos das gentes, ao lado das potencias alliadas.
O autor do Discurso de Quarto arrastou com a sua palavra varios milhões de almas para o vendaval inhumano, dando-lhes, a todo momento, a assistencia imprescindivel da esperança, da fé inabalavel na victoria. A obra, o futuro maravilhoso vaticinado pelo sonho do artista, não se realizou conforme todas as suas prophecias - é verdade. Mas é tambem verdade que o seu verbo, infiltrando-se no sangue dos seus compatriotas, realizou o maior dentre todos os milagres effectuados pelos oradores: o milagre de fazer sentir que a morte tambem é bella e de fazer morrer sem blasphemar, porque a deserção da vida em campo de batalha é redempção de amor.
Declarada a guerra, D'Annunzio alistou-se num regimento de infantaria. Por ser a batalha longe das planicies, principalmente no começo, e por se desenvolver em terriveis emboscadas e assaltos de surpresa na garganta dos montes, a cavallaria não era a arma que mais possibilidades offerecia ao poeta, para relevar a sua acção. A Infantaria era mais perigosa e mais activa. Elle escolheu esse corpo. E data, pois, dahi a epopéa de sangue assignalada pelo guerreiro, tão grande como a apotheose da Belleza creada pelo poeta.
Da Infantaria, abrigando prenuncios de maior perigo no mar, passou para a Marinha; depois para a Artilharia; mais tarde para a Aviação, na qualidade de commandante da esquadrilha "Serenissima", de Veneza.
Pertenceu, emfim, a todas as armas, apparecendo nos pontos onde a tragedia do fogo era mais intensa, onde a necessidade da audacia e do sangue italiano mais se fazia sentir.

D'Annunzio ferido em campo de batalha

A 23 de fevereiro de 1916, D'Annunzio era transportado da linha de fogo a um hospital da cidade de Veneza, por ter sido attingido por uma granada inimiga, cujos estilhaços lhe vasaram um dos olhos.

Na Aviação

Realizou o poeta diversas incursões sobre Pola e outras localidades em que a Austria concentrava as suas tropas. A 9 de agosto de 1918, vôou sobre Vienna, num apparelho pilotado pelo tenente Antonio Locatelli - o Leão da Guarda, como o chamavam Dannunzianamente.
A generosidade e a lealdade do poeta revelaram-se plenamente nesse reide. Dominando os ares, com o apparelho carregado de munições, acompanhado e auxiliado por mais quatro aeroplanos (um quinto precipitára-se ao solo), ao em vez de bombardear a principal cidade inimiga, espalhando nella o terror, limitou-se o heróe a lançar pequenos manifestos escriptos por elle mesmo. E regressou ao campo de partida, em Padua, quasi indifferente aos Shrappnels lançados pela artilharia do ex-imperio austro-hungaro.

D'Annunzio e Von Richtofen

D'Annunzio pertenceu ainda ao escasso numero dos aviadores que, impunemente, lutaram, após o desastre de Caporetto, contra a esquadrilha "Tango" commandada pelo "AZ" allemão capitão Von Richtofen - vencedor de mais de noventa batalhas aereas.
Era proverbial, nesse tempo, a habilidade guerreira de Von Richtofen. Este official possuia um segredo de luta cuja efficacia todos temiam. Quasi nunca o seu aeroplano apparecia desacompanhado. E, avistando o adversario, fazia com que os seus subordinados o circumdassem, à distancia; depois, sózinho, desapparecia nas alturas, entre as nuvens, para logo se precipitar como um raio por traz do aeroplano inimigo circumdado, vibrando-lhe com pericia os golpes de morte.
Muitos soldados e officiaes, a principio, quando a fama de Von Richtofen ainda não estava firmada, enfrentaram essa perigosa esquadrilha, "Tango", um dos maiores baluartes aereos da coragem allemã. Mas bem poucos se salvaram. D'Annunzio, ao que rezam as noticias da epoca, atacou-a por diversas vezes. Nunca a venceu; mas conseguiu, sempre impunemente, fazer abortar a tactica terrivel de que todos falavam com respeito, como se fala de uma grande desgraça.

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