GABRIEL D'ANNUNZIO
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Publicado
na Folha da Manhã, quinta-feira, 3 de março
de 1938
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Não ha, talvez, quem desconheça, em suas linhas geraes,
a personalidade artistica de Gabriel D'Annunzio. É o poeta
dos versos de bronze e das idéias grandes como assombros, que
conseguiu reviver magistralmente, em nosso seculo, todas as bases
fundamentaes da arte classica, revolucionando a literatura italiana,
dando-lhe uma forma nova, mais caracteristica, mais profunda.
Em torno do seu nome harmonioso e sugestivo, estabeleceram-se e correram
mundo os boatos mais inverosimeis, as lendas mais exoticas, os insultos
mais audazes, as proezas mais extravagantes, de par com os maiores
elogios que sahiram de bocca humana.
Trabalhando como realmente trabalhou em pról das mais elevadas
manifestações do Pensamento - lutando como sempre lutou
pela victoria do seu altissimo ideal que era, sem restricções,
o ideal da Italia contemporanea, tornou-se, desde a aurora da sua
vida, o verdadeiro idolo da juventude estudiosa, dos moços
que amam a Arte, têm fé no futuro e acreditam na gloria.
Em todos os campos de actividade, desde os da polemica, pelos jornaes,
até os da batalha a ferro e fogo, nas planicies e nas montanhas
ingremes do seu paiz, elle agiu, revelando dotes excepcionaes de energia
physica, moral e intellectual. Mas onde culminou a sua obra, unica
talvez no nosso tempo, foi numa extraordinaria operosidade artistica
e literaria, num quasi esbanjamento de força creadora, dedicando-se
de corpo e alma à renovação das artes e das letras,
construindo um caracter proprio, inconfundivel, e procurando fecundar
o vacuo aberto pela tendencia doentia e desmoralizadora da corrente
que teve origem no romance do segundo imperio francez.
Em todas as occasiões, em todos os pontos, até nos menores
particulares da sua producção, fez transparecer o acrysolado
amor votado à Patria - essa terra que elle enriqueceu com as
melhores paginas literarias da sua época e que sempre desejou
vêr livre, grande e dominadora, como grande e dominadora fôra
Roma em tempos que ainda se veneram.
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A
revelação do genio |
Cedo foi revelada a sua individualidade possante e sugestionadora
de artista. Em 1879, pouco mais do que uma criança, regressou
de Florença a Pescara, após um breve curso de linguas
na cidade de Dante. E não tardou a dar inicio à sua
vastissima producção, conduzindo-a a termo da maneira
mais brilhante possivel, aproveitando-se de todas as opportunidades
para escrever e proferir discursos memoraveis em pról da grandeza
do seu povo.
Em 1882, contando 19 annos de idade, mais ou menos, collaborava assiduamente,
em companhia do illustre publicista Eduardo Scarfoglio, no jornal
"Il Capitan Fracassa", onde usou de diversos pseudonymos,
dando, porém, predilecção aos de "Floro",
"Floro Buzio" e "Mario del Fiori". Compoz então
os primeiros livros intitulados "Primo Vere", "Canto
Novo" e "Intermezzo di Rime" - trabalhos esses que,
mais tarde, foram reunidos em um só volume com a epigraphe
"Le Novelle Della Pescara", a que juntou a "Terra Vergine".
A exemplo de todos os grandes "novos", nessas étapas
iniciaes, o grande escriptor já revelava, a par de uma perfeita
consciencia de artista, de um conhecimento preciso do valor especifico
do seu verso e de um modo todo especial de encarar a vida e as tragedias
da vida, a profunda devoção ao sólo que lhe serviu
de berço e lhe absorveu as primeiras lagrimas...
No circulo dos moços que, a esse tempo, se iniciavam no jornalismo
e na literatura, as suas poesias e as suas paginas de prosa causaram
impressão tão viva, tão profunda, que chegaram
ao ponto de provocar os "prós" e os "contras"
mais apaixonados.
Em consequencia do exito alcançado, teve de sustentar polemicas
rudes, controversias audaciosas - vencendo quasi sempre por força
da sua logica e da sua ironia. E, para despertar os seus jovens admiradores
da apathia, ou da contemplação improductiva, para mostrar
aos eternos nephelibatas que tambem os seus trabalhos continham erros
e clarões de genio, não hesitou em escrever artigos
violentos contra os seus proprios poemas, artigos que elle assignava
com um pseudonymo qualquer...
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A
primeira viagem à Grecia |
Publicados os primeiros livros, assegurado mais ou menos o exito dos
que se lhes deviam seguir, o poeta não se deu por satisfeito
com o que estava realizando e resolveu viajar um pouco, antes de apparecer
novamente a publico. As viagens passaram então a ser o seu
grande sonho. Estava certo de que, da visita às ruinas de cidades
mortas, a sua arte receberia novo influxo. Para companheiro escolheu
o publicista Eduardo Scarfoglio (fallecido em 1917, quando director
do "Il Mattino", de Napoles) e, audaz como sempre, absolutamente
certo de que receberia das viagens uma orientação esthética
mais de accordo com as suas tendencias innatas, partiu com destino
à Grecia, percorrendo-a, palmilhando-a toda, numa faina estafante
de obcecado, procurando reanimar idolos e almas do passado. E lá,
entre as ruinas sobre as quaes Byron chorára, tornou-se critico
e estudou com desusada perseverança os prodigios immortaes
da alma hellenica. Na analyse penetrante, no exame demorado e consciencioso
a que procedeu nas velhas mas sempre bellas figurações
esculptóreas da terra de Homero, adquiriu a pureza da linha
esthetica dos hellenos, revelando-a depois mais viva, mais requintada,
na construcção de suas obras de arte.
Não foi, porém, só a sua esthetica que evoluiu
com os resultados colhidos nessa viagem; foi tambem o sentimento,
a concepção do ideal de Patria.
Em Sparta o poeta soube como é bello, como é grande
o amor que se deve votar à Patria; em Sparta sentiu, provavelmente
pela primeira vez na vida, a santidade dos sentimentos das antigas
mães spartanas, todas martyres, todas heroinas, que, sorrindo,
sacrificavam os filhos na defesa da terra que lhes fôra berço.
E só muitos annos mais tarde, quando a Europa vinha de se mergulhar
em sangue, debruando-se de crimes e de torturas innominaveis, é
que teve a affoiteza, ou melhor, o animo de exprimir o que sentia,
nestes versos que se tornaram o cantico dos seus soldados e dos seus
idólatras:
Patria! Patria! Questa sola parola mi trasporta.
E ribombare odo dentro di me, come alla porta
Del templo uno scudo percosso!
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O
auto de fé |
Regressando à Italia, sempre em companhia de Scarfoglio, repousou
pouco e o seu nome deixou de apparecer em revistas e jornaes durante
o tempo estrictamente necessario à coordenação
dos ensinamentos colhidos nas paragens da Grecia em ruinas.
Passou depois a escrever para a "Cronaca Bisantina", periodico
dirigido por Angelo Sommaruga, e, em silencio, quasi solitario, deu
inicio à exteriorização das grandes ideias que
se lhe germinaram no cerebro após o extase da Hêllade.
Dahi por diante, toda a sua obra de arte e todos os actos de sua vida
se concentraram no desenvolvimento pratico da synthese soberba encerrada
nos tres versos patrioticos acima referidos. Esses versos pertencem
à Ottava Della Vitria, e podem ser considerados o auto de fé
do grande entre os grandes poetas e patriotas que actuaram nestes
ultimos cem annos.
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Actividade
literaria do poeta - "Innocente" |
Fôra ocioso recordar agora as curiosas aventuras da sua carreira
artistica, entrando em pormenores que hoje deixariam de interessar,
dada a rapidez com que D'Annunzio galgou as portas da celebridade.
São sobejamente conhecidas do nosso publico as suas melhores
obras que foram commentadas e criticadas por autoridades da literatura
universal, inclusive pelos mais illustres criminalistas.
São notorias as referencias de Enrico Ferri e de Scipio Sighela,
referencias essas que provocaram fortes polemicas.
Estes dois autores se serviram notadamente do "Innocente",
do "João Episcopo" e dos volumes das Estações
para estudos de grande importancia sobre a criminologia e sobre a
Independencia da Arte em relação às Sciencias.
Das observações então feitas resultou, e não
podia deixar de resultar, a verdade ainda hoje negada pelos eternos
snobs da arte da literatura, mas que nem por isso deixa de ser o que
é: a arte pura, essa arte que nasce com o individuo, e que
constitue o maior patrimonio da actividade humana, nunca divergiu
das sciencias, muito embora dellas não dependa e as tenha precedido
algumas vezes.
Que assim é, dil-o da maneira mais convincente a formidavel
concepção do protagonista do "Inoccente".
Este volume é também conhecido pelo titulo de "O
Intruso" ou ainda "O Crime".
Personagem principal, actora e espectadora de toda a tragedia, é
a figura de um criminoso-nato, concretizada na personalidade profundamente
egoista, mas aristocrata e serena, de "Tullio Hermil", cuja
extructura attinge a consistencia esculptorea das creações
shakspereanas, por dois motivos: pelo desenvolvimento logico e fatal
da tendencia para a pratica do delicto e pela audacia sobrehumana
com que a razão do crime foi localizada, para ter um grande
relevo na concepção artistica, bem como na execução
dos particulares.
Ferri, o polemista insomne da sciencia criminal, falando desta obra
sob o ponto de vista exclusivamente scientifico, affirmou ser ella
quasi tão grande como "Crime e Castigo" de Dostoewsky.
A nosso ver, porém, o "raskolmikoff" do terrivel
romancista russo não deve ser tido em conta de um verdadeiro
criminoso-nato, por isso mesmo que é dominado pelo remorso.
O remorso é um sentimento completamente extranho ao criminoso-nato
- a se julgar pelas palavras do proprio Ferri, hoje acceitas por todos
os sabios.
Os criminosos-nato e os criminosos por habito adquirido ignoram esse
sentimento, relata Ferri no livro "os criminosos na arte e na
literatura", pag. 51.
À entidade de "Raskolmikoff" falta, portanto, a principal
caracteristica que, na obra dannunziana, é um facto real e
se encaixa soberbamente no facto esthetico.
Dos seus volumes em prosa, "Innocente" ficará sendo
sempre o mais espontaneo, o mais elegante nos processos expressionaes,
o que com mais logica e maior somma de recursos desenvolve as extranhas
theorias nietzcheano-medievaes, postas em pratica, na vida, pelo autor.
Ainda que lhe faltassem estes requisitos, só o caracter de
"Tullio Hermil" seria sufficiente para immortalizar um artista.
Ferri disse e provou que Hermil "É um desses libertinos
bem postos, que passam por nós nas ruas das grandes cidades.
É, em virtude de uma atrophia congenita do senso moral e de
uma hypertrophia do "eu", sobretudo do "eu" sexual,
um verdadeiro criminoso-nato".
Isto, à luz da sciencia moderna. O bastante, pois, para consagrar
a formidavel concepção de artista e a extraordinaria
intuição de psychologia de que D'Annunzio deu prova.
Com respeito ao estylo, salvo raros preciosismos, "Innocente"
representa a obra-prima italiana, porquanto nunca a lingua de Dante
foi tratada com mais desenvoltura nem com mais elegancia, nem com
maior senso harmonico. Criticos ha (e Papini se inclue neste numero)
que não são deste parecer. O certo, entretanto, é
que D'Annunzio é ainda hoje o maior lyrico do Lacio, o maior
creador de obras que sacudiram, revolucionando-a, toda a literatura
de uma época.
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A
auto-psychologia do artista - consequencia de um principio edonista |
Além do "Innocente", ha "Il Fuoco" e "Il
Piacere" que exerceram poderosa influencia sobre as literaturas
franceza, italiana e hespanhola, provocando um movimento agitadissimo
entre os novos de então e fortes reverberações
tambem ha tempo verificadas em grande parte da vida literaria sul-americana.
"Il Piacere" é, pode affirmar-se com segurança,
a auto-psychologia do grande poeta-soldado. O proprio D'Annunzio confessava
que outra figura nunca viveu tanto na sua febre conceptiva como a
de André Sperelli, a ponto de nella ensimesmar-se e transfundir-lhe
tudo o que era delle, autor - desde o saber, o orgulho, a audacia,
a gentileza até à maneira individual de se orientar
na vida.
O facto de ter proclamado em diversos livros o principio endonistico
nada novo mas que por longo tempo ficára como que esquecido
entre as velharias das bibliothecas, com a bella divisa: "Só
vive muito quem muito gosa; quem não sabe gosar não
é digno da vida" - levou os espiritos exaltados a tecerem
as anecdotas mais estravagantes em torno da personalidade e da vida
intima do poeta. Chegaram até a affirmar que D'Annunzio nunca
passou de um degenerado sexual; de um errado, orgulhoso da propria
aberração!
Mas a irrisão desse conceito dos Max-Nordauistas Snobs e detractores
gratuitos não podia ferir a personalidade dannunziana, pois
o artista assim se expressára de facto, não em referencia
ao prazer carnal, mas ao prazer unico dos eleitos, que é o
proveniente das emoções estheticas.
Gosar, para elle, gosar e viver, era saber discernir e amar o bello
em tudo.
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"Il
Fuoco" - Wagner e Eleonora Duse na vida e na arte de D'Annunzio |
"Il Fuoco", ampliação da sua maravilhosa auto-psychologia,
foi escripto no periodo de tempo em que o autor mais amou. Nessa época
elle vivia em Settignano di Desiderio, onde dava largas ao seu éstro,
escrevendo prosas e poesias que nunca foram, nem serão, publicadas,
mas que os seus intimos conheceram. Alli amou perdidamente, allucinadamente,
a extraordinaria tragica Eleonora Duse, "La Diva Dalle Belle
Mani", a quem dedicou a "Gioconda".
No muro, junto à porta de entrada da residencia desta grande
sugestionadora de multidões, elle escreveu, em caracteres exóticos,
a palavra Divina. Isto, ha mais de 30 annos, na cidadella de Settignano
di Desiderio; mas o epitheto, muito justo aliás, ainda pode
ser lido, apezar do musgo que andou como que couraçando a parede.
Dos escriptores do seu tempo, D'Annunzio foi quem melhor compreendeu
e penetrou no pensamento musical de Wagner. A maior apotheose do maior
genio da musica allemã foi escripta pelo poeta-soldado. Partes
desse trabalho estão no "Triumpho da Morte" e no
"Il Fuoco", adaptadas a casos especiaes. "Il Fuoco",
no fim, contém uma soberba descripção da morte
e do enterro de Ricardo Wagner. Ali, a bella Duse apparece com o nome
de "Perdita", quasi velha, cansada, curva ao peso das muitas
glorias, envenenada pelo sabor intenso de todos os triumphos - emquanto
o proprio D'Annunzio surge sob a psychologia superiormente desenvolvida
de "Etel'llio E'ffrena", o poeta de "Perse'Phone",
o magico orador da "Epiphania do Fogo".
O nome "Perdita" dado nesse romance à formidavel
actriz tragica não provém, como a principio se quiz
insinuar, da influencia soffrida por D'Annunzio quando este lia e
adorava as flores do Jardim de Perdita, no "Um Conto de Inverno",
de Shakspeare (acto III, scena III).
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"João
Episcopo" |
Outro trabalho de profunda observação psychologica é
"João Episcopo", dedicado à escriptora napolitana
sra. Mathilde Seráo (então divorciada do publicista
Eduardo Scarfoglio). Foi escripto alguns mezes depois do licenciamento
do poeta do regimento de cavallaria em que fôra contemplado
com o grau de tenente.
A critica mais autorizada, após longo exame, proferiu a respeito
dessa obra um parecer assás curioso, que se resume nestas palavras:
"Bom livro; profundo, artistico, empolgante; optimo quanto ao
estylo; grandioso na concepção; mas não tem valor,
ou melhor, teria grande valor se não fosse escripto por D'Annunzio".
Compreende-se, sem grande esforço e apesar da obscuridade desse
paradoxo, porque é que o nome do autor prejudicava, neste caso,
a obra.
O phraseado breve, pouco lyrico, quasi mathematico, das paginas do
"Episcopo" não é caracteristica predominante
na literatura dannunziana. A personalidade do autor, entretanto, não
se desmente nessa obra; mas ahi deve ser vista por um outro prisma,
encarada por outra face, obliqua, esforçada, que não
é, por certo, a observada em todo o resto da sua grandiosa
actividade.
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"Laus
Vitae" - "Dos meus crysóes sahiu o unico poema da
vida total" |
Da obra poetica dannunziana, onde culminou a deificação
do paladino maximo da unificação da Italia, Giuseppe
Garibaldi, ahi estão os volumes dos "Laudi Del Cielo,
Del Mare, Della Terra e Degli Eroi". São versos que ficarão
para assignalar a passagem de um dos raros genios contemporaneos dignos
de figurar ao lado dos antigos immortaes.
Ha annos, escrevendo a um amigo sobre o que se dizia, na Italia, acerca
desses poemas, D'Annunzio, num rasgo de justo e supremo orgulho, de
egolatria levada ao extremo, porém justificavel em toda a linha,
disse:
"... Considero-me um mestre, que, para os italianos, resume em
suas doutrinas as tradições e as aspirações
do sangue Augusto de que nasceu. Sou um creador que jamais se fadiga.
Dos meus crysões sahiu o "unico" poema da vida total,
verdadeira - a mais estupenda concretização de um ideal
em palavras que a Italia viu depois da "Divina Commedia".
Esse poema "unico" é o meu "Laus Vitae",
concebido com uma sciencia diabolica, realizado com uma arte que nunca
poderá ser igualada".
Vê-se, por essas linhas de uma carta que não foi escripta
para ser publicada, a psychologia do Indivíduo, juntamente
com a profunda consciencia que elle tinha de ser grande, com o justo
orgulho de ser quasi um Deus...
O perfeito conhecimento da sua incommensuravel grandeza e a idolatria
que os moços lhe votavam levaram-no mais longe, na extrinsecação
da Sua Verdade: o poeta chegou até a descrever, no "Il
Fuoco", a maneira pela qual devia ser representado por algum
artista illustre, dizendo pela bocca de "Ste'llio E'ffrena"
o que vae resumido nestas palavras:
"... Nenhum autor poderá representar-me na tela sem me
pôr nas mãos o pomo punico (a romã). Separar desse
symbolo a minha pessoa fôra ingenuidade do artifice: fôra
separar do meu "eu" uma parte viva de mim mesmo".
A romã, de facto, é o symbolo da trilogia em que o autor
se autobiographou com mais arte e mais fidelidade.
Como ficou dito acima, esse orgulho é, para nós, bem
justificavel, pois todos os seus livros são extremamente bellos,
e todas as suas tendencias, puramente artisticas.
Começando pelo seu nome que, como dizia o fino critico de arte
José Frances, já é um poema, até à
sua pagina mais banal - se é que se pode encontrar banalidade
na sua obra -, tudo neste poeta está muito acima da mediocridade
que elle sempre detestou.
A sua actividade, a sua producção em verso é
como que o rastro de luz dos grandes immortaes: não deve ser
estudada com relação ao seu tempo, nem comparada a qualquer
outra dos seus antecessores na gloria; mas deve ser lida e analysada
como obra delle, D'Annunzio, sem preambulos ou sophismas, porque a
sua obra é a synthese da sua época, vista através
de um temperamento excessivamente arrojado, de uma sensibilidade exasperada
até ao desejo do anniquilamento. Sua escola é a energia
possante do seu éstro.
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As
obras theatraes |
No theatro, reconstruiu com garbo a tragedia grega, ampliando-a consideravelmente,
insuflando-lhe um cunho de vida essencialmente moderno, sem todavia
quebrar a harmonia do todo, e, o que é mais, fazendo vibrar
nella a sua personalidade marcada de um sentimento inconfundivel de
Italianidade. Assim, trabalhou com persistencia e desenvoltura, creando
lances de emoção que foram e continuam sendo ainda o
orgulho do seu povo.
Quem poderá, para citar um só exemplo, esquecer a impressão
que deixa, logo à primeira leitura, a figura humanizada da
Francesca de Rimini, a personagem tão sugestiva, tão
intimamente poética, tão dolorosa e desaventurada no
seu amor absurdo?
Francesca parece um mixto de Ophelia e de Lady Macbeth. Tem visões
allucinantes de luz e de treva, de terror e de piedade, que passam
à guisa de relampagos pela sua mente atribulada em consequencia
do eterno amor paradisiaco que a enlouquece e a faz cantar!... O seu
Paulo fatal, ella ama-o horrivelmente. E quer ser sua, desesperadamente,
allucinadamente sua - e morre com elle no momento em que, desconhecendo
a mentira da vida, pensava lhe sorrisse a mais bella esperança,
a mais inteira felicidade.
A formidavel tragedia (musicada depois pelo maestro Ricardo Zandonal),
toda isenta de artificios, concretizada com simples e extraordinaria
capacidade synthetica, feita de paixão e de loucuras, foi extrahida
de um Terceto titanico de Dante, sendo seu "pivot" a scena
em que Alighieri diz:
"Quando legemmo il deslato riso.
Esser baciata da cotanto amante.
Questi, che mai da me non fia diviso,
La bocca mi bació tutto tremente".
"La cittá morta", "La gloria", "La
fiaccola sotto il moggio", "La figlia di Iorio", "Piú
che l'amore", "La nave", "Pedra", "Elettra",
"O Martyrio de São Sebastião", e outros trabalhos
de não menos valor, são o centro luminoso em torno do
qual por longo tempo girou a poesia theatral italiana - não
obstante a sensação tragico-voluptuosa que perpassa
pelas entrelinhas de todos elles.
Do seu theatro, a obra mais espiritual é talvez "Gioconda".
Desenvolve-se com uma naturalidade e, ao mesmo tempo, uma successão
impressionante de scenas e estados de alma, que o proprio D'Annunzio
nunca mais igualou. Termina com a quasi affirmação da
theoria do super-homem, de Frederic Nietzche, posta, com algumas palavras
apenas, na bocca de Gioconda Dianti - a tragica figura que symboliza,
nesse trabalho, bem como em toda literatura dannunziana, a suprema
aristocracia da inteligencia.
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D'Annunzio
na guerra - o Discurso de Quarto |
Como não bastassem talvez, na sua convicção,
os lances innovadores e regeneradores da Arte para a glorificação
da sua Patria, D'Annunzio, que, como já referimos acima, em
tempos idos fôra tenente de um regimento de cavallaria, fez-se
guerreiro. Ao explodir da formidavel catastrophe de 1914, foi elle
quem, julgando chegada a hora de a Italia levantar o seu terceiro
vôo de gloria, pronunciou, no Escolho de Quarto, o memoravel
discurso commemorativo da epopéa garibaldina, incitando a alma
do povo à luta.
Pode hoje dizer-se, sem temer de erro, que essa oração
foi, virtualmente, o brado de guerra da Italia. Só depois desse
arroubo magnifico do poeta, dessa elegia suprema nunca dantes proferida
por bocca italiana - desse verdadeiro poema vivo, feito de luz e de
amor, de sacrificio e de patriotismo puro, reconhecendo a necessidade
da participação da peninsula nos grandes movimentos
dos grandes povos - foi que a filha de Roma, inflammada, embriagada
de ineffavel enthusiasmo, se decidiu a entrar na peleja pelos direitos
das gentes, ao lado das potencias alliadas.
O autor do Discurso de Quarto arrastou com a sua palavra varios milhões
de almas para o vendaval inhumano, dando-lhes, a todo momento, a assistencia
imprescindivel da esperança, da fé inabalavel na victoria.
A obra, o futuro maravilhoso vaticinado pelo sonho do artista, não
se realizou conforme todas as suas prophecias - é verdade.
Mas é tambem verdade que o seu verbo, infiltrando-se no sangue
dos seus compatriotas, realizou o maior dentre todos os milagres effectuados
pelos oradores: o milagre de fazer sentir que a morte tambem é
bella e de fazer morrer sem blasphemar, porque a deserção
da vida em campo de batalha é redempção de amor.
Declarada a guerra, D'Annunzio alistou-se num regimento de infantaria.
Por ser a batalha longe das planicies, principalmente no começo,
e por se desenvolver em terriveis emboscadas e assaltos de surpresa
na garganta dos montes, a cavallaria não era a arma que mais
possibilidades offerecia ao poeta, para relevar a sua acção.
A Infantaria era mais perigosa e mais activa. Elle escolheu esse corpo.
E data, pois, dahi a epopéa de sangue assignalada pelo guerreiro,
tão grande como a apotheose da Belleza creada pelo poeta.
Da Infantaria, abrigando prenuncios de maior perigo no mar, passou
para a Marinha; depois para a Artilharia; mais tarde para a Aviação,
na qualidade de commandante da esquadrilha "Serenissima",
de Veneza.
Pertenceu, emfim, a todas as armas, apparecendo nos pontos onde a
tragedia do fogo era mais intensa, onde a necessidade da audacia e
do sangue italiano mais se fazia sentir.
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D'Annunzio
ferido em campo de batalha |
A 23 de fevereiro de 1916, D'Annunzio era transportado da linha de
fogo a um hospital da cidade de Veneza, por ter sido attingido por
uma granada inimiga, cujos estilhaços lhe vasaram um dos olhos.
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Na
Aviação |
Realizou o poeta diversas incursões sobre Pola e outras localidades
em que a Austria concentrava as suas tropas. A 9 de agosto de 1918,
vôou sobre Vienna, num apparelho pilotado pelo tenente Antonio
Locatelli - o Leão da Guarda, como o chamavam Dannunzianamente.
A generosidade e a lealdade do poeta revelaram-se plenamente nesse
reide. Dominando os ares, com o apparelho carregado de munições,
acompanhado e auxiliado por mais quatro aeroplanos (um quinto precipitára-se
ao solo), ao em vez de bombardear a principal cidade inimiga, espalhando
nella o terror, limitou-se o heróe a lançar pequenos
manifestos escriptos por elle mesmo. E regressou ao campo de partida,
em Padua, quasi indifferente aos Shrappnels lançados pela artilharia
do ex-imperio austro-hungaro.
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D'Annunzio
e Von Richtofen |
D'Annunzio pertenceu ainda ao escasso numero dos aviadores que, impunemente,
lutaram, após o desastre de Caporetto, contra a esquadrilha
"Tango" commandada pelo "AZ" allemão capitão
Von Richtofen - vencedor de mais de noventa batalhas aereas.
Era proverbial, nesse tempo, a habilidade guerreira de Von Richtofen.
Este official possuia um segredo de luta cuja efficacia todos temiam.
Quasi nunca o seu aeroplano apparecia desacompanhado. E, avistando
o adversario, fazia com que os seus subordinados o circumdassem, à
distancia; depois, sózinho, desapparecia nas alturas, entre
as nuvens, para logo se precipitar como um raio por traz do aeroplano
inimigo circumdado, vibrando-lhe com pericia os golpes de morte.
Muitos soldados e officiaes, a principio, quando a fama de Von Richtofen
ainda não estava firmada, enfrentaram essa perigosa esquadrilha,
"Tango", um dos maiores baluartes aereos da coragem allemã.
Mas bem poucos se salvaram. D'Annunzio, ao que rezam as noticias da
epoca, atacou-a por diversas vezes. Nunca a venceu; mas conseguiu,
sempre impunemente, fazer abortar a tactica terrivel de que todos
falavam com respeito, como se fala de uma grande desgraça.
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