FOUCAULT
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 1976
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O
sexo sem censuras |
"Há uma oposição cultural entre o pensamento
ocidental sobre o sexo que trata de controlá-lo sob a chancela
de "ciência sexual" e o pensamento oriental ("arte
erótica") que o encara como mistério e passível
de aprendizagem e iniciação".
Os historiadores dispõem de um número quase ilimitado
de abordagens par tratar da sexualidade. Uma parcela dos intelectuais
franceses formula, por exemplo, a hipótese de que nos últimos
três séculos o sexo foi objeto de uma forte censura.
"Assunto proibido". Descartando a dimensão puramente
moral da questão, a psicanálise teria representado um
instrumento de denúncia dos mecanismos repressivos que a sociedade
impõe aos desejos e pulsões do homem.
Michel Foucault costuma ser do contra e não concorda com esta
"simplificação". Publicando há duas
semanas o primeiro dos seis volumes de sua História da Sexualidade
(o livro de 200 páginas se chama "A vontade de saber"),
procurou lançar as bases de um enfoque alternativo.
Seu ponto de vista é bem paradoxal. Paradoxal no sentido de
contrariar as teorias mais sofisticadas que circulam sobre sexo. Mobilizando
um oceano de referência históricas, sublinha a aparição,
a partir do século 18, de toda uma "tecnologia" discursiva
que submete o sexo a uma abundante enunciação. Do confessionário
ao hospital psiquiátrico, dos tribunais às casernas,
institui-se tipologias complexas para classificar taras e desvios.
Incentivou-se, ao mesmo tempo, o crescimento de uma curiosidade inédita
em torno do prazer, fundamentando-se uma série de canais novos
que transformaram o sexo num conteúdo privilegiado dos discursos.
Dentro deste contexto, a noção de censura torna-se meio
imprópria. Não se trata de impor um silêncio,
mas ao contrário de estimular a palavra. O termo "censura"
conota tradicionalmente uma proibição. Ora, o que Foucault
constata depois de passar alguns meses mergulhado em bibliotecas e
arquivos judiciários é que esta proibição
inexiste. É possível dizer que há censura ao
abordar a sexualidade apenas se esta palavra ganhar uma significação
"positiva": e obrigatoriedade de enunciar um determinado
assunto. O sexo como "assunto" e portanto como fato discursivo.
Ignorando-se a dimensão discursiva, ignora-se ao mesmo tempo
toda a normalização imposta à sexualidade pelos
mecanismos de poder através dos quais a sociedade procurou
definir o que é normal e o que é patológico,
o que se pode e o que não se pode fazer com o próprio
corpo. A sexualidade nunca teria se transformado em objeto de controle
se permanecesse fora das "técnicas" capazes de codificar
- verbalmente - o certo e o errado.
Assim, o que Foucault procura com sua pesquisa é a reconstituição
de uma determinada ordem: a ordem sexual. Para confinar os desejos
e pulsões ao quadro restrito da reprodução da
espécie (o casal monogâmico), foi preciso definir tudo
quanto é tipo de anomalia para as situar do circulo do "normal"
e do permitido. É neste sentido que o trabalho de Foucault
se edifica pela denúncia de uma contradição aparente:
como foi possível conciliar a apologia à "normalidade"
com a indicação prolixa de comportamentos definidos
como anormais?
Tratava-se de fixar uma certa verdade sexual, e esta fixação
exigiu um longo processo de elaboração discursiva em
que intervieram instâncias diversas de poder. A escola, a medicina,
a justiça e o Exército passaram a praticar uma "ortopedia"
sexual: faziam de tudo para evitar as anomalias que criassem estudantes,
pacientes, criminosos ou soldados anormais. O sexo se transformou
em assunto público. O próprio Estado intervém
para permitir a "saúde sexual" de sua população.
Foucault argumenta, assim, que contrariamente a uma concepção
amplamente difundida, o sexo é há 300 anos objeto de
tudo, menos de um silêncio. Ele se encontra nos artigos de um
regulamento disciplinar dos liceus que - para citar um exemplo - estipulam
em 1809 a necessidade de se construir paredes entre as camas dos dormitórios
coletivos e jamais permitir que a luz permaneça apagada durante
a noite. E o que dizer das teorias hoje cientificamente ultrapassadas
que atribuiam ao onanismo todas as doenças juvenis? Há
150 anos chegou a funcionar em Paris uma clinica que submetia as garotinhas
a uma cirurgia depois da qual, apesar de poderem ter filhos, mergulhavam
definitivamente na frigidez.
Este e outros dispositivos integram uma "scientia sexual"
que surgiu independentemente do desenvolvimento da biologia, cuja
tarefa, despojada de qualquer moralismo, era a de tratar o sexo do
ângulo exclusivo da reprodução.
"Scientia sexualis" opõe-se culturalmente, segundo
Foucault, a "ars erotica" (arte erótica) que certas
civilizações (China, Índia, mundo muçulmano)
aplicam à sexualidade, definida como mistério e assunto
passível de um processo de iniciação e aprendizado.
A "scientia" ocidental procura, ao contrário, definir
seus parâmetros dentro dos quais opera a inclusão do
que é aceitável no campo da normalidade, e a exclusão
do inaceitável deste mesmo campo. Mas ao excluí-los,
é preciso estudá-los conscientemente. Os psiquiatras
criam toda uma terminologia para designar o anormal. Krafft-Ebing
estuda os zoófilos e os zooerastas; Rohleder trata dos auto-monosexuais.
Surgem expressões como mixoscofilos, ginecomastas, presbiófilos
sexoestéticos e mulheres dispareunistas. Cada uma destas perversões
corresponde à identificação de um conjunto bem
articulado de sintomas. A normalização do sexo implica,
desta maneira, num apelo incessante à "ciência".
De possuída pelo demônio, como o era até o fim
da inquisição, a histérica passou a se definir
em relação ao sexo e a determinada forma de recalque.
Mas para que os "cientistas" tivessem acesso a este quadro
complexo de fenômenos, foi preciso desenvolver a confissão
como técnica terapêutica. É preciso falar. E falar
tudo. Não se trata simplesmente de narrar diante de um representante
da instituição (escola ou hospital) aquilo que se sabe
e se procura ao mesmo tempo esconder. Os que dissertam sobre o próprio
sexo se colocam no estatuto de um doente que luta contra a dificuldade
de exprimir as características de seu mal.
O Direito - "discurso intermediário entre o cidadão
e o Estado" - passa a incorporar a nova nomenclatura e a identificar
os indivíduos portadores de anomalias. Foucault cita o caso
de um camponês que mereceu uma coletânea de monografias
por ter sido judicialmente condenado por uma tentativa de pedofilia.
A justiça, entregando o réu à Medicina, o transforma
em paciente:
Todo este processo nunca teria se desencadeado se não se tivesse
assistido ao paralelo declínio da Igreja (entre os séculos
17 e 18) como instituição de controle do comportamento
sexual dos fiéis. Foucault se detém longamente na evolução
das técnicas do confessionário. Sanches e Tamburini
- autores de manuais do confessor - prescreviam, por exemplo, a necessidade
de fazer com que o fiel descrevesse em todas as minúcias os
pensamentos ou atos associados ao pecado carnal. A gravação
de uma confissão da época corresponderia, hoje, a uma
narrativa profundamente erótica. Mas a Igreja passou a exigir
maior discreção no confessionário. Uma simples
alusão bastava para que o confessor prescrevesse a expiação.
Michel Foucault constata que esta proliferação discursiva
contraria a idéia de que o sexo foi envolvido por um tabu todo-poderoso.
E pondera sobe as razões que levaram à falsa identificação
deste tabu. A seu ver, o fenômeno se explica pelo mesmo paradoxo
que fez o indivíduo falar sobre um assunto e ao mesmo tempo
acreditar que sobre tal assunto não se fala. E não é
bem uma hipocrisia, no sentido ético na expressão (dizer
o que não se pensa), mas sim uma maneira de contornar o verdadeiro
estatuto da censura: uma técnica que obriga em lugar de proibir.
Se o século 18 corresponde, em termos marxistas, à aparição
da burguesia, Foucault não dá a mínima importância
ao tipo de conclusão que tal coincidência permitiria
formular. Inexiste, a seu ver, uma causalidade especifica entre o
capitalismo e a "scientia sexualis". Numa de suas conferências
no "College de France" do ano passado, chegou a explicar
porque não condicionava um assunto ao outro. A explicação
foi entretanto omitida dos manuscritos de "A vontade de saber".
Esta maneira de pesquisar independentemente dos modelos históricos
universitariamente consagrados na França desperta uma certa
irritação. O Partido Comunista, por exemplo, não
perde uma ocasião para atacar Foucault. Os althusserianos (discípulos
de Louis Althusser) acham escandalosa a não aparição
da palavra "ideologia" em suas pesquisas.
Esta e outras criticas dizem muito mais respeito à posição
particular que Michel Foucault ocupa na intelectualidade francesa.
Em termos simplistas, pode-se dizer que ele é o mais conhecido
dos historiadores e filósofos que ignoram a dialética
hegeliana. Assim, a própria coleta de dados não se efetua,
em suas pesquisas, com vistas à identificação
de contradições submetidas a um modelo lógico
que as leva automaticamente a se sintetizar. Marxistas e hegelianos
não o perdoam.
Outro dia um pequeno artigo de um jornalzinho maoista dizia de maneira
apoteótica que a história se encarregará de sepultar
Michel Foucault. Daqui a cem anos, ninguém mais o citará.
É possível. Mas por enquanto ele continua sendo um autor
bastante polêmico. De uma polêmica renovada quando da
aparição de cada um de seus nove livros. E por mais
que ainda o associem (erroneamente) ao estruturalismo, repete-se há
uns seis anos que "Foucault já era". Mas seus seminários
continuam repletos e seus livros sendo comentados.
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J.B. Natali/Paris
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