ESCORPIÃO E FÉLIX

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 13 de março de 1983

Aos 18 anos, Marx andou escrevendo poemas românticos. Na época, estudava direito em Berlim e sentia grande interesse por filosofia, literatura e arte. Era um período de contradições, dispersão intelectual e confrontação entre seus desejos e os de seus pais. O jovem Marx passou por fases criticas: uma relação amorosa turbulenta, um colapso nervoso e a conhecidíssima carta de 10 de dezembro de 1837 dirigida a seu pai pouco antes de sua morte. Nela, Marx fala de suas recentes tentativas literárias: "No final do semestre saí novamente em busca das danças das Musas e música satírica, e no último caderno que lhes enviei o idealismo abre caminho através de um humorismo forçado ("Escorpião e Félix") e de um drama fantástico ("Oulanem") até mudar e se converter em pura arte de forma, sem objetivos entusiasmantes, sem uma linha social excitante."
Aqui publicamos alguns trechos de "Escorpião e Félix", a "novela humorística" de Marx.

Capítulo 12

"Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo", disse Ricardo 3°.
"Um homem, um homem, eu mesma por um homem", disse Greta.

Capítulo 27

"Ignorância, profunda ignorância."
"Porque (refere-se a um capítulo anterior) seu joelho dobrava-se demasiadamente por um lado!", mas faltava a certeza, e quem pode assegurar, quem pode descobrir que parte é a direita e qual é a esquerda?
Diga-me, mortal, de onde vem o vento ou se Deus tem nariz, e te direi o que é direita e o que é esquerda.
Não são nada além de conceitos relativos; é como mesclar loucura e demência com cordura.
Oh! todas as nossas aspirações serão vãs e nossas nostalgias uma ilusão até que não saibamos exatamente o que é direita e o que é esquerda, já que à esquerda se colocarão os machões e à direita os cordeiros.
Se se toma outra direção porque à noite se teve um sonho, então os réprobos estarão à direita e os santos à esquerda, de acordo com nossas miseráveis visões.
Por isso me esclareça o que é direita e o que é esquerda, e se desatará completamente o nó da criação, Acheronte movebo, daí deduzirei com precisão onde irá parar tua alma, e depois deduzirei também em que estágio te encontras agora já que aquela relação originária apareceria mensurável; enquanto tua colocação antes era determinada pelo Senhor, tua posição aqui embaixo pode ser determinada pelo volume de tua cabeça; sinto vertigem, se aparece um Mefistófeles serei Fausto, já que não sabemos que parte é direita e que parte é esquerda, por isso nossa vida é um circo; corremos em círculo, buscamos em todos os lugares até cairmos sobre a areia e o gladiador, precisamente a vida, nos mata; devemos ter um novo salvador, pois - pensamento tormentoso, me roubas o sonho, me roubas a saúde, me matas - não podemos distinguir a parte esquerda e a parte direita, não sabemos onde se encontram.

Capítulo 29

Estava eu sentado meditando, deixei de lado Locke, Fichte e Kant, entreguei-me a investigações profundas para descobrir que relação pode haver entre uma lavadeira e o morgadio, quando um relâmpago me atravessou e idéia, com seus estrondos transfigurou meu olhar, e uma imagem de luz apareceu frente a meus olhos.
O morgadio é a lavadeira da aristocracia, já que uma lavadeira só serve para lavar. Mas a peneira fica mais branca, por isso adquire a pálida luminosidade do que está lavado. Da mesma maneira. O morgadio reveste de uma camada de prata o filho primogênito da casa, lhe confere uma pálida tonalidade prateada, enquanto aos outros impõe a pálida cor romântica da miséria.
Quem se lava nos rios lança-se contra o elemento sonoro, bate-se contra sua ira e luta com braços fortes; mas quem está sentado na lavadeira fica encerrado dentro dela e olha os ângulos do quarto.
O homem comum, ou seja, o que não desfruta da bem-aventurança do morgadio, luta com a vida vertiginosa, arroja-se ao mar que se infla e com o mesmo direito que Prometeu rouba pérolas em suas profundidades; maravilhosamente se lhe apresenta frente aos olhos a configuração interna da idéia e cria mais audazmente; enquanto que o senhor primogênito somente deixa cair gotas sobre si, teme deslocar os membros e por isso senta-se dentro de uma lavadeira.
Encontrei, encontrei a pedra filosofal!

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