FEITIÇO CONTRA OS FEITICEIROS


A invenção da bomba atômica em 1945 marca o início abrupto de uma nova era para a Civilização: o sonho dos alquimistas sim, mas gerenciado pelo diabo.

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 11 de agosto de 1985

José Reis

Alguns costumam fixar o início da era atômica a 6 de agosto de 1945, quando a bomba atômica arrasou Hiroxima. Outros recuariam a data para 16 de julho, quando ocorreu a explosão experimental em Alamogordo, no Estado do Novo México, Estados Unidos. Alguns físicos marcariam o início em 1919, quando Rutherford realizou a primeira transmutação química. Historiadores e filósofos talvez espichassem o olhar até os gregos e a Idade Média, na busca das raízes da grande revolução nuclear.
Na Grécia, Leucipo (5° século a.C.) imaginou e Demócrito elaborou a teoria atomística, segundo a qual as coisas todas seriam formadas de partículas indivisíveis, os átomos. "Tudo o que existe são átomos e espaço vazio. O mais é pura opinião". Essa atrevida idéia seria suplantada pela concepção de que a matéria é formada de quatro elementos - fogo, água, terra e ar.
Este conceito perdurou muito e só foi abalado no século 17 pelas teorias de Boyle, Newton e, mais tarde, Lavoisier e Prout, que voltaram à noção do limite da divisibilidade da matéria. Esta idéia foi seguramente implantada por Dalton (1803), que novamente falou em átomos como partículas materiais últimas. Não eram seus átomos iguais aos de Leucipo e Demócrito; tinham base experimental e procuravam explicar leis então bem estabelecidas sobre a proporcionalidade dos elementos na química. Os átomos se combinariam em moléculas, que são a forma comum na qual a matéria existe livre. A característica primordial dos átomos seria sua insecabilidade, a impossibilidade de dividi-los em partículas menores.

Alquimistas

No salto que demos dos gregos ao século 17, esquecemos a Idade Média. Poderíamos ter parado nela para contemplar o magnífico esforço dos alquimistas tentando transformar em ouro as outras substâncias, em particular o chumbo.
O conceito daltônico sobre o qual se baseou o edifício da física e da química modernas durou até o fim do século passado, quando surgiu uma nova realidade. O átomo é um todo estruturado, formado de várias partículas, um minúsculo sistema planetário. A visão daltônica desintegrou-se ante enorme série de descobertas realizadas em diversos países, numa época de profundas transformações.
Descoberta em 1896 a radiatividade, só se encontrou para ela uma explicação razoável, o da transformação dos elementos radiativos em tipos diferentes de matéria. Evitassem, porém, falar em transmutação, advertia Rutherford, pois os atacariam como alquimistas!
Mas como alquimista ele se comportou em 1919 quando, em singela e fundamental experiência, bombardeou o nitrogênio com partículas alfa (núcleos de hélio) e obteve núcleos de hidrogênio e oxigênio. A repetição dessa experiência com outras partículas bombardeadoras e outros átomos-alvo permitiu estabelecer a algebra das reações químicas em termos de partículas.
Einstein elaborou sua famosa equação que identifica a massa à energia E=mc2 quer dizer que energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. Equivale isso a afirmar que uma pequena perda de massa resulta na libertação de fantásticas quantidades de energia. Torna-se então possível introduzir essa energia na contabilidade das equações de transformação de massa, pois cada núcleo que se desintegra produz, ao lado de outro núcleo, de substância diferente, partículas dotadas de alta energia.

A corrida do átomo

Os nêutrons, por não possuírem carga elétrica, adquiriram grande importância para penetrar átomos e quebrar-lhes o núcleo. Enrico Fermi, na Itália, entregou-se à produção de novos elementos e concluiu que cada bombardeio produz uma substância de carga elétrica nuclear imediatamente superior. Deduziu que, se bombardeasse o urânio, que era o último dos elementos conhecidos naturalmente, poderia produzir elementos artificiais, transurânicos. Começou uma grande corrida nesse sentido.
Dramático momento nesta história passa-se sem Berlim, onde entre 1936 e 1937 Oto Hahn, Lise Meitner e Fritz Strassmann sujeitam o urânio a bombardeio por nêutrons. Nessa ocasião a Alemanha nazista anexa a Áustria e Meitner, que era judia e austríaca, é perseguida. Em 1938 Hahn e Strassmann chegam ao fim de seu trabalho e descobrem que pelo bombardeio do urânio, em vez de encontrarem um transurânico, obtinham a quebra do núcleo do urânio em duas porções quase iguais, com libertação de outros nêutrons. É um momento crucial. A fissão do urânio com libertação de muita energia é comunicada a outros cientistas e confirmada em vários laboratórios. Seria possível construir, baseada nessa fissão, uma máquina atômica?
Seguem-se encontros internacionais e estabelece-se um esforço comum em torno desse objetivo, que consistia basicamente em estabelecer uma reação em cadeia, isto é, fazer que um átomo de urânio, bombardeado, servisse de fonte de bombardeio a outros átomos, e assim por diante.
Muitos físicos colaboraram nessa tarefa nos Estados Unidos e a conclusão foi positiva. Era possível conseguir uma reação de cadeia. E essa reação, conforme as circunstâncias, poderia prosseguir descontroladamente, aumentando ao infinito o número de novos átomos bombardeados, reunindo quantidade fantásticas de energia, ou poderia ser controlada, de maneira que cada átomo só bombardeasse um outro átomo. A reação descontrolada seria a bomba atômica. A controlada seria a pilha atômica, que evolveu para os reatores nucleares, capazes de fornecer energia elétrica e térmica.

Suposição errônea

O grupo de cientistas e militares que trabalhava nos Estados Unidos realizou primeiro a pilha atômica e depois partiu para a bomba atômica. Na decisão de fabricar esta, tiveram papel decisivo três cartas de Einstein. Tudo caminhou muito mais depressa do que se previa. A 16 de julho de 1945 o Departamento de Guerra dos Estados Unidos podia descrever a experiência da explosão nas areias desérticas de Alamogordo.
A 6 de agosto, de bordo do avião Enola Gay, a bomba atômica caía em cheio sobre Hiroxima, com as consequências muito conhecidas. Para consolo, alguns afirmam que, se não tivesse havido Pearl Harbor, não teria existido a tragédia de Hiroxima. Mas a verdade é outra. Houve Hiroxima porque os aliados supunham que os alemães estavam desenvolvendo a bomba atômica que nas mãos de Hítler seria catastrófica para o mundo todo. O relatório Alsos revelou que a suposição era errônea.
Valeu a pena? É a pergunta que a humanidade faz, com crescente apreensão. Certo é que muitos dos que participaram da elaboração da bomba atômica se arrependeram. Um deles, Leo Szilard, uma vez confessou: "Deus fez o mundo e o Demônio, a bomba atômica".

José Reis é presidente de honra da SBPC e da Associação Brasileira de Jornalismo Científico, membro emérito da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, editor da revista Ciência e Cultura; pertence à equipe de articulistas da Folha.


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