PEQUENA HISTÓRIA DA USURA
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 8 de maio de 1983
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As dificuldades que o Brasil e outros países atravessam em
seu balanço de pagamentos mostram até que ponto a economia
mundial depende hoje do sistema financeiro, vale dizer, dos bancos.
A taxa de juros passou a ser o termostato pelo qual as atividades
econômicas são reguladas (ou desreguladas), aquecidas
ou esfriadas; a taxa de juros reflete-se na queda da produção,
no desemprego - e em última análise acaba afetando a
vida de todas as pessoas. Quem pode tira proveito dos juros altos,
emprestando ou especulando. Quem não pode olha com inveja e
angústia esta situação. Mas mesmo estes reconhecem
a respeitabilidade do capital financeiro, que se traduz, entre outras
coisas, na imponência dos bancos e na importância que
é dada às opiniões dos banqueiros. Poucos hão
de lembrar que nem sempre foi assim; que houve tempos em que dinheiro
e usura eram coisas olhadas com nojo e desprezo (o fato de os cofrinhos
infantis terem muitas vezes a forma de um porco deve ser resíduo
dessa época). O auge deste horror ao dinheiro ocorreu na Idade
Média, como resultado da convergência dos interesses
de duas classes poderosas. De um lado, o clero. Como assinala Henri
Pirenne, em sua "História da Idade Média":
"A concepção de mundo da Igreja adaptava-se admiravelmente
às condições econômicas de uma época
em que a terra era a única base da ordem social. A terra tinha
sido dada por Deus aos homens para que dela pudessem viver, visando
à salvação eterna. O objetivo do trabalho não
era a riqueza, mas sim a manutenção de cada qual na
posição social em que havia nascido, até o advento
da vida eterna. A renúncia do monge era o ideal que a sociedade
deveria almejar. Buscar a riqueza era cair no pecado da avareza. A
pobreza era uma determinação divina, mas competia aos
ricos aliviá-la pela caridade. Emprestar a juros - a usura
- era uma abominação".
A outra classe que abominava o dinheiro - e o trabalho - era a nobreza.
De fato, os cavaleiros medievais não tinham outra ocupação
do que festas, torneios e expedições militares - já
que a subsistência lhes era garantida pelo trabalho dos servos.
Mesmo nesta economia rudimentar, contudo, o dinheiro era necessário.
Afinal o luxo - os finos tecidos, as jóias, as especiarias
- tinha seu preço, como o tinham as expedições
militares, inclusive - e principalmente - as Cruzadas. A sociedade
feudal resolveu o impasse de uma maneira engenhosa. Atribuiu o papel
de usurário a um elemento marginal na sociedade, um elemento
que pouco podia esperar da vida na terra e muito menos da vida eterna:
o judeu. Criou-se assim a figura típica e caricatural do usurário
de olhinhos brilhantes, nariz adunco e dedos em garra, um estereótipo
que de tal forma se impôs que historiadores sob outros aspectos
respeitáveis, como Werner Sombart, foram levados a crer que
a usura constituía um atributo específico da chamada
"raça judaica". Que não haja nada semelhante
à categoria biológica de raça nos judeus em nada
perturbou tais historiadores, como em nada perturbou os nazistas;
o que era efeito passou a ser considerado causa e assim a lenda da
predisposição judaica à usura manteve a mesma
consistência que tinha à época da Idade Média.
As relações entre usurários e senhores feudais
era uma relação de mútua safadeza, uma sinistra
simbiose entre a astúcia do fraco e a prepotência do
forte. Relegados a este papel abominado e abominável, os judeus
tiravam dele o maior proveito que podiam, cobrando escorchantes taxas
de juros (mesmo essas taxas exageradas, contudo, não chegavam
aos níveis de hoje, atingindo 86 por cento no máximo...).
Os senhores feudais toleravam, enquanto queriam, esta situação,
e, na Inglaterra, os reis dela tiravam proveito, porque todos os empréstimos
contraídos com os judeus eram registrados no "saccarium
judaeorum" e gravados com uma taxa de 10 por cento em proveito
do tesouro real (cf. Abraham Leon, "Concepção Materialista
da Questão Judaica", Global, 1981, p. 82). Quando os nobres
não podiam pagar, ou quando precisavam de muito dinheiro de
uma vez só, faziam o que faz um garoto quando necessita do
dinheiro de seu cofrinho: destrói o porco. Os massacres de
judeus, com sua consequente "queima de arquivo", eram a
solução. Em 1189, os judeus são assassinados
em Londres, Lincoln e Standord; em 1190, a nobreza destrói
o "saccarium judaeorum" de York, queimando solenemente os
títulos das dívidas; os judeus, situados num castelo,
se suicidam em massa... Em 1290 toda a população judaica
da Inglaterra foi expulsa e seus bens confiscados. O mesmo aconteceu
depois na França e na Espanha, neste último país
numa data bem simbólica, 1492. A expedição de
Colombo (segundo muitos historiadores, financiada por judeus) assinalaria
a supremacia do capital mercantil e o fim da Idade Média. A
Reforma já não consideraria pecado ganhar dinheiro;
pelo contrário, poupar e investir seriam elementos importantes
da ética protestante, na qual o capitalismo em ascensão
encontrou seu substrato moral. Os usurários serão substituídos
pelas figuras mais respeitáveis dos comerciantes e dos financistas;
entre estes os judeus encontraram seu lugar, se não com exclusividade,
pelo menos com menor risco. Em 1815 esta ascensão chega ao
auge, com o triunfo dos Rotschild - cinco irmãos, cada um atuando
numa capital européia. O mais esperto era Nathan, que operava
na Bolsa de Londres; baixo e gordo, de aparência desagradável,
sempre de mãos no bolso, costumava ficar encostado numa coluna
que até hoje tem seu nome. Dali acompanhava o pregão,
e foi dali que deu um golpe genial. Graças à rapidez
com que os agentes da família se moviam pela Europa, havia
sido informado da derrota de Napoleão em Waterloo antes mesmo
do governo britânico. De posse dessa valiosa informação,
o que fez? Atirou-se a comprar títulos ingleses? Não.
Ao contrário, começou a vendê-los, precipitando
uma corrida neste sentido. Rotschild sabe, pensavam os especuladores,
se Rotschild está vendendo, é porque Napoleão
venceu. Então, no último momento, Rotschild tornou a
comprar todos os títulos - e por preço vil. Em questão
de minutos acumulou uma imensa fortuna.
Os Rotschild posteriormente tornaram-se nobres - barões, como
os barões feudais que massacravam os usurários judeus
na Idade Média, o que dá uma medida da relatividade
ética através dos tempos e demonstra a hipocrisia oculta
atrás de certas sacrossantas indignações. Mas
não é esta a única conclusão a extrair
da história da usura: o mais importante é constatar
que ela nada mais é que um instrumento destinado a fazer o
dinheiro trocar de mãos, a tornar os ricos ainda mais ricos
e os pobres mais pobres. Através da elevação
das taxas de juros conseguem-se hoje a recessão, o desemprego,
a formação do "exército de reserva"
que mantém o operariado dócil e atemorizado; através
da elevação da taxa de juros mantém-se o fosso
que separa os países ricos dos países pobres.
Não há dúvida: a usura só pode ser invenção
de um demônio. Mas este demônio, e sua invenção,
só são invocados quando os poderosos deles necessitam.
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