APRESENTAMOS O SENHOR FAUZI BANGUE BANGUE E SEU TIME DO ABSURDO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 06 de março de 1977

Plínio Marcos

No bar Rosário, na Praça do Rosário da cidade de Campinas, às 13 horas de uma terça-feira muito quente, encontro Fauzi Bangue Bangue e seu amigo Boi, dois profundos conhecedores do futebol do absurdo, da absurda segunda divisão da Federação Paulista. Ambos curiosas personagens desse futebol absurdo, onde se joga um jogo muito bruto, sem regras, sem nenhuma ética, um jogo amoral que vicia seus jogadores, vicia todos eles, os treinadores, os boleiros, os cartolas, os intrujões, vicia todos que colocam suas vidas nas rodas da bola, de uma bola de giro curto, mas de muitas voltas, bola que rola, rola, leva, enleva, rola, rola, enrola, esmaga as vidas que, presas à maldita bola, à maldita bola, se consomem, mas não saem jamais, jamais saem da roda da bola que vai girando prá baixo e prá cima, sem dar tempo de repouso pros jogadores que envolveram suas vidas nesse jogo.
Nesse começo da tarde, sentados no Bar Rosário, tomando cerveja, os dois curtem suas angústias. Acabou o campeonato da absurda segunda divisão da F.P.F. Acabou o emprego. Boi, empresário de boleiros, aflitamente procura clube para seus jogadores. Levou um pro São Bento de Sorocaba, o Chico Sarno o recebeu bem, muito bem mesmo, botou o boleiro prá treinar, deixou-o à vontade, gostou do seu jogo, mas mandou voltar no próximo treino. E o Boi coça a barba suja de espuma da bebida, enxuga o suor da testa, dá tapas na enorme barriga e conta lances do treino, lances nos quais seu bigode mostrou sua bola toda, Fauzi Bangue-Bangue, treinador do Capivari, baixote, careca, barrigudinho, de olhos vivos que não param nunca, geralmente muito falador, está calado, muito calado. Seu time fez uma campanha espetacular, disputou cinquenta e uma partidas. Cinquenta e uma partidas e só perdeu uma. Uma única partida. Ganhou trinta e seis, empatou quatorze e perdeu uma. Apenas uma. Mas, no futebol do absurdo, se vive de vitórias. Apenas de vitórias. E essa partida é que pesa na balança. Essa única perdida significou a perda do título. Essa única partida pode ser o seu desemprego.
Fauzi Bangue-Bangue foi jogador, boleiro profissional, depois pendurou a chuteira. Mas, já tinha a vida presa à bola, aos giros da bola. E prá continuar rodando nas rodas da bola foi ser juiz do futebol do absurdo, absurdo juiz do futebol absurdo, fabricante de resultados, decidindo no apito títulos que nunca decidiu com seu jogo de boleiro, absurdo juiz de um futebol de absurdo, onde Fauzi Bangue-Bangue empregava um estranho processo de honestidade, como nos jogos da série "melhor de três" entre o Santo Antonio de Sertãozinho e o São José de Lençóis Paulista, pela decisão do título da divisão amadora do Estado de São Paulo. A relação dos juizes só sairia na sexta-feira, véspera do jogo. Porém, na quinta-feira, apareceu na casa do Fauzi, em Campinas, uma delegação de dirigentes do clube de Sertãozinho. O João Hetzel tinha garantido prá eles que o juiz seria o Fauzi, deu o endereço e mandou que o procurassem. O jogo seria no campo do adversário e o pessoal do Santo Antônio só queria perder de pouco. Foi o João Hetzel que mandou eles lá. João Hetzel era o chefe todo poderoso do Departamento de Árbitros. O Fauzi nem vacilou, aceitou o suborno, um caminhão de açúcar cristal, que deveria ser entregue até sexta-feira, ao meio-dia, numa barraquinha do Mercado Municipal, de propriedade dos parentes do juiz. Tudo certo. O caminhão chegou na hora combinada. E ainda nem haviam descarregado o açúcar, quando chegou na casa do Fauzi uma delegação do São José. Vinham da parte do João Hetzel, que lhes garantiu que o Fauzi seria o juiz, lhes deu o endereço e tudo. O pessoal do São José queria ganhar em casa. O Fauzi aceitou sem vascilar o suborno, um caminhão de açúcar. Só que dessa vez exigiu açúcar refinado. Foi mole satisfazer os dois patrões. Primeiro jogo, ganhou o São José, no segundo o Santo Antônio e na decisão, em Sorocaba, campo neutro, o Fauzi não aceitou suborno. Apitou seriamente e ganhou o melhor, o São José, de dois a um.
E tinha quer ser assim. Não podia ser diferente. Se não pegasse o negócio, pegavam por ele. Como em Cafelândia. Jogo importante entre o Cafelandense e o Marília. O time da casa precisava da vitória de qualquer jeito e o Fauzi sabia disso. Por essa razão, estranhou quando desembarcou do trem e não viu nenhum diretor do Cafelandense na estação esperando-o pra acertar o resultado. Foi pro hotel, nada de diretor do time da casa. Almoço, foi pro campo, no vestiário avisou aos bandeirinhas que ia apitar certinho porque não havia dinheiro na parada. Mas, minutos antes de entrar em campo, o representante da F.P.F., acompanhado de um senhor, abriu a porta do vestiário e perguntou:
- Tudo certo aí?
O Fauzi respondeu que estava e foi pro campo. Jogão de bola. Lá e cá, cá e lá. O juiz apitou tudo. Acabou empatado de zero a zero. Bom resultado pro Marilia, péssimo pro Cafelandense. No túnel do campo pro vestiário, o Fauzi e os bandeiras começaram a apanhar. Toda a diretoria do Cafelandense batia neles. Berravam que queriam o dinheiro de volta. O Fauzi e os bandeirinhas juravam que não pegaram dinheiro nenhum. Um diretor jurava que ele afirmou que estava tudo certo. Bateram. Bateram. Bateram. Revistaram os três, o vestiário e, pra sorte deles, não apareceu o dinheiro. Aí, lembraram do representante da F.P.F. Foram procurá-lo. O homem já tinha ido embora de táxi. Saiu uma caravana de diretores do Cafelandense atrás do representante da F.P.F., outros diretores ficaram montando guarda ao juiz e aos bandeirinhas. Pra sorte deles, a caravana de captura alcançou o representante da F.P.F. no Posto Sem Limite de Bauru e encontraram com ele o dinheiro do suborno, cinco mil cruzeiros, que em 64 era muito dinheiro.
Depois, moralizaram o Departamento de Árbitros da F.P.F. Isso se deve muito ao João Astolfi. O Fauzi não podia mesmo apitar mais. Seu joelho estourou. Joelho de juiz também estoura e ai ele saiu das rodas da bola. Ferido, esmagado, frustrado, sentindo-se enjeitado. Arrumou um emprego de vendedor de pneus e ia ganhando o sustento da mulher e dos filhos e contando pros clientes histórias absurdas do futebol do absurdo, histórias como essas que me contou ali no Bar Rosário da Praça do Rosário, na cidade de Campinas, numa tarde de muito calor de uma terça-feira.
E foi em Capivari, vendendo pneu e contanto suas absurdas histórias de um futebol absurdo que o Fauzi Bangue-Bangue entrou outra vez na roda da bola, da bola maldita, que rola, que leva, enleva, que rola, esmaga, mas que sempre traz presa à sua volta a alma dos estranhos jogadores desse jogo bruto, maldito, jogo que vicia boleiros, treineiros, cartolas, intrujões e todos que têm a vida jogada nesse jogo maldito do futebol do absurdo.
O Fauzi Bangue-Bangue vendia pneu e falava, falava, falava, da bola, da bola, da bola. O cliente comprava e escutava, escutava, escutava deslumbrado. Acabou comprando muitos pneus e se apresentando como presidente do clube local e precisando de um conhecedor profundo do futebol absurdo, pra montar o time do Capivariano. Acordo verbal facilmente feito. O Fauzi Bangue-Bangue voltou pra Campinas e foi direto no Gazeta, famoso time varzeano dirigido pelo Tufi, um gênio do futebol. Pediu jogadores. Levou um time inteiro, com reservas, e todos craques. De Capivari mesmo só aceitou dois jogadores. E entraram no campeonato. Entraram com tudo. Entraram pra serem campeões. Ganharam o primeiro turno e o segundo da sua chave, invictos.
O Capivariano nunca treinou porque a diretoria achava que, se treinasse, ia ter que pagar lanche pros jogadores. Nunca fez preparo físico, nunca se aplicou uma vitamina, uma glicose nos jogadores, o massagista é curioso. E não jogam com uniforme novo porque acham que dá azar.
O sucesso do Capivariano era tanto que o presidente, o senhor Arlindo Dias Pacheco Neto, queria sair candidato a prefeito. Não conseguiu legenda, desanimou-se um pouco do time e passou a dizer a toda hora que ia largar o cargo. E esse desânimo coincidiu com a fase final do campeonato, do absurdo campeonato da segunda divisão. E aí começaram as dificuldades do treineiro Fauzi Bangue-Bangue. Vieram as férias dos jogadores profissionais, o Capivariano mandou ele, Fauzi, embora. Só pra não pagar um mês. Porque foi só recomeçar o campeonato, ele foi outra vez chamado.
Jogador do Capivariano ganha mil e duzentos por mês, mais cento e cinquenta por jogo ganho e cem por empate. Em dia da derrota, o clube não paga jantar pra ninguém. Em dia de empate, como o que tiveram diante do Cafelandense, só pagaram lanche pros que jogaram. Massagista, roupeiro e reserva não precisam comer, na opinião dos cartolas do Capivariano.
O Fauzi Bangue-Bangue foi continuando na batalha, na absurda batalha do futebol do absurdo. Só que cada vez iam se complicando as coisas. Os contratos dos jogadores iam acabando e não iam sendo reformados.
Clube de segunda divisão faz contrato curto com os jogadores e vão reformando na medida das necessidades. Fazem contrato para o tempo da chave de classificação. Se passam pro turno final, reforma contrato.
Sem jogadores, o Fauzi Bangue-Bangue foi fazendo o que podia. Conhecendo bem os boleiros do interior, foi subornando alguns adversários e ganhando jogo. Até que estourou um escândalo que envolveu um jogador honesto, o goleiro Ademar do Limense. Ele jogou com quarenta graus de febre contra o Capivariano e tomou três gols que não podia tomar. Como o Capivariano era o time do Fauzi Bangue-Bangue e tinha no meio uma sinistra figura conhecida por Raposinha, logo acharam que o Ademar estava subornado. Era mentira. O Ademar é um moço bom, honesto, dá duro no trabalho com uma perua todo os dias, só joga aos domingos e por ele muita gente importante põe a mão no fogo, como o Peri, diretor da Ponte Preta, figura respeitadíssima no futebol, e até o próprio Fauzi Bangue-Bangue. Mas, no futebol do absurdo, se lançam as maiores calúnias contra qualquer um, a qualquer momento. No futebol do absurdo, só não se lança nada geralmente em cima de quem apronta as façanhas mais escabrosas, como um goleiro que aceitou suborno de um mil cruzeiros do Capivariano, não para deixar entrar gols, mas pra rebater todas as bolas. E assim fez. Só que os atacantes do time do Fauzi Bangue-Bangue não iam nos rebotes e acabaram ganhando apenas de um a zero com um gol legítimo. E o goleiro saiu como o melhor em campo. Mas, o escândalo do Ademar acanhou o Capivariano.
E cada vez ficava mais difícil pro Fauzi Bangue-Bangue escalar seu time. Mas, estava ali firme, disputando o título. Os diretores ou perdiam o entusiasmo, ou queriam o lugar do treinador. E a torcida, entusiasmada com o time, ia onde o Capivariano ia jogar. E as pressões cresciam sobre o Fauzi Bangue-Bangue. Muitas pressões. Dirigentes faziam tudo pra jogar a torcida contra o treinador. E conseguiram, em Campinas. No jogo do Capivariano contra o Santa Rita deu empate e a torcida não gostou. Bombardearam o banco do técnico com rojões e o xingaram e xingaram sua mulher e xingaram seus filhos. Mas, o Fauzi Bangue-Bangue não se rendeu. Não esmoreceu. Continuou lutando pelo seu time cada vez com menos jogadores. Perdeu uma, ganhou outra e ainda estava no páreo. Mas, pros dirigentes do Capivariano, o campeonato não interessava mais. A absurda F.P.F., promotora do absurdo campeonato da segunda divisão, que deveria promover o campeão pra primeira divisão, resolveu convidar, simplesmente convidar, vários clubes da segunda divisão pra disputarem o campeonato da primeira divisão. Convidava não pelos méritos do time, mas pela força política dos diretores do clube ou dos políticos da cidade. E o Fauzi chegou à última partida precisando da vitória pra ficar junto com o Guaíra em primeiro lugar e disputar o título. Chegou quase sozinho, ele e uns poucos jogadores. Mal dava onze. Dois dos seus boleiros, na véspera do seu último jogo, que seria com o Cafelandense, foram jogar futebol de salão e se machucaram. Um teve torção no joelho e o outro fraturou a clavícula. Tiveram que entrar assim mesmo em campo. Deu empate de zero a zero. O Capivariano era vice-campeão. O Fauzi Bangue-Bangue fez milagre. Mas, os diretores do Capivariano não reconhecem, não pagaram lanche pros reservas, nem pro roupeiro, nem pro massagista.
Fauzi Bangue-Bangue está sentado no Bar Rosário, da Praça do Rosário, com seu amigo Boi, bebendo uma cerveja numa tarde de muito calor de uma terça-feira. Está triste. Muito triste. Tem medo de não continuar no Capivariano que, apesar de tudo, ele ama. Mas, já sabe que mandaram nove jogadores embora. Nove jogadores do melhor time da segunda-divisão. Do time que fez a melhor campanha, time que em cinquenta e uma partida perdeu uma, uma apenas, ganhou trinta e seis, empatou quatorze e perdeu uma, uma, uma apenas. Mas, essa uma lhe roubou o título, despediu seus jogadores e talvez ele próprio. O Fauzi Bangue-Bangue está triste. Muito triste. Toma remédio pra baixar a pressão. Sonha com um time que treine, que concentre, que faça preparo físico, que cuide dos jogadores. Fauzi Bangue-Bangue ama o futebol, sofre, vibra, sonha com o futebol, futebol do absurdo, que deixa as pessoas mais puras, mais sinceras, encalacradas. O futebol do absurdo, onde só se vive de vitória e onde vale tudo por uma vitória. O Fauzi Bangue-Bangue é um homem generoso, muito querido por seus jogadores, por todos que vivem da bola, homem capaz de tirar dinheiro do bolso, a camisa do corpo pra ajudar um boleiro a perigo. Mas, precisa ganhar todas as partidas do futebol do absurdo, se não perde o emprego, o nome, a razão de ser, de poder viver o seu sonho, de viver nas rodas da bola. Fauzi Bangue-Bangue é bom pai, muito amigo dos seus filhos, muito bom marido. Mas, vive nas rodas da bola, da bola, da bola do futebol do absurdo, do futebol, não do esporte, mas do futebol do absurdo, onde as pessoas são absurdas, onde a moral, a ética, não existem. Existem as vitórias e as vitórias têm que ser conseguidas a qualquer preço. Fauzi Bangue-Bangue é boa gente, mas desde cedo aprendeu os truques do futebol do absurdo. Foi corrompido pelos mais altos dirigentes, foi corrompedor de boleiros. Mas, no futebol do absurdo, isso é considerado certo. Ele não faz, mas há quem faça, drogar limonada e café de jogador pra conseguir vitórias. Isso ele não faz mesmo. Se fizesse, dizia. Mas, o resto é quase uma regra no futebol do absurdo e ele faz, porque assim aprendeu com os seus mestres do futebol do absurdo.
Fauzi Bangue-Bangue se levanta, me convida pra ir até sua casa. Vai me dar fotos suas. Vamos. A família vem correndo recebê-lo. As crianças estão alegres, chegou um paizão. A mulher, a bela Sara, o recebe com muito carinho. Depois, dá os recados:
- A mulher do Ferrari veio avisar que você não é mais o treinador do Capivariano. Eles contrataram um tal de Neneco.
- Sei quem é. Um que era do Piracicabano.
- Esse aí. ela falou, eu tinha esquecido. Ele vai levar o time inteiro do Piracicabano.
É. Pode ser. O Piracicabano acabou.
- Você está sem clube.
- Mas o tesoureiro do Capivariano ainda hoje perguntou se eu estava firme pra sábado.
- Pode ser boato.
- Pode...
- E se você ficar sem time?
- Arrumo outro. Até o Brandão foi derrubado da Seleção, por que eu não posso ser derrubado do Capivariano?
Fauzi Bangue-Bangue sorri. Se compara com o Brandão e se sente bem. Perder o emprego de técnico é normal. Ele arruma outro time pra treinar. Conhece o futebol absurdo como ninguém. Sabe tudo do futebol do absurdo. É valente. Fala e se garante. É capaz até de fazer milagres, como esse de dar um vice-campeonato pro Capivariano. Fauzi Bangue-Bangue é um mago do futebol do absurdo, futebol que já foi tricampeão do mundo.


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