UM PÁSSARO RARO
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 5 de junho de 1983
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Gilson Schwartz
"Bons
economistas são os pássaros mais raros. Eles devem
alcançar um alto padrão em várias direções
diferentes e combinar talentos que não é comum encontrar
juntos. Devem ser a um só tempo historiadores, homens públicos
e filósofos. Devem entender de símbolos e falar com
palavras. Devem ser tão incorruptíveis e distantes
quanto um artista, ainda que por vezes tão pé no chão
quanto um político" - era isso que pensava de seu ofício
John Maynard Keynes, economista para quem "a economia é
uma ciência perigosa".
Todo Pensamento emite um Lance de Dados
Mallarmé
É
como se fossem uma história. As biografias escritas por John
Maynard Keynes (1883-1946) recolhiam em cada vida os sinais da evolução
dos tempos. Acaso existe outra maneira de demonstrar-se preocupado
com a própria história senão escrevendo biografias?
Na matéria fina dos destinos e dos acasos Keynes ressaltava
a identidade dos impasses. Essa consciência dos impasses,
dos paradoxos, vamos encontrá-la radicalizada no seu texto
autobiográfico ("My Early Beliefs"). Ali estão
as cifras, os indícios da persistência de um não-conformista
conservador. Um conservador autocrítico. Economista? E filósofo,
biógrafo, colecionador de quadros e livros, político,
especulador de bolsa, diplomata, patrocinador do teatro e dança,
professor e jornalista.
Filho de elite da Inglaterra vitoriana, situou-se desde jovem à
beira de uma intervenção civilizatória que
faria do "Império" uma ilusão cultivada
com esforço crescente nos livros e tratados. Entretanto,
excitação: não é outro o sentimento
que se destaca na sua descrição dos funerais da rainha
Vitória. A rainha que exigia as roupas de seu finado postas
todos os dias sobre a cama. A rainha que dormia com uma fotografia
do defunto sobre a cabeça. Keynes testemunhava a morte de
uma morte.
Ele não estava só. Membro da elite frequentadora das
melhores escolas, preparavam-se todos para assumir o encargo paradoxal
de sustentar a pulsação do "establishment"
e redefinir pela raiz a relação com a herança
política e cultural. Época de consolações.
Alguns desses jovens se reuniam em um grupo de discussões
(o grupo de Bloomsbury, fundado em 1908) que se propunha tanto a
examinar essa herança imperial quanto a se fortalecer mutuamente
ao longo de suas vidas dedicadas à administração
da decadência britânica. Havia entre eles futuros diplomatas,
escritores, altos funcionários públicos.. Um grupo
que efetivamente manteve a solidariedade. Feito de homens civilizados
e amargos. Keynes foi o membro de maior destaque (ao lado, talvez
de Virginia Woolf).
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Um
encargo paradoxal |
Quando em 1915 D. H. Lawrence, um escritor a quem o vitorianismo não
poupou reproches, visitou esse grupo de jovens brilhantes e galhardos,
sua decepção foi total. Tivesse o encontro se dado no
Brasil e aqueles moços, ricos moços, a nata da nova
geração de Cambridge, seriam designados como "chato
boys". O grupo, uma seita (como tantas que se formaram nos pátios
do largo de São Francisco), filiava-se ao filósofo Moore,
professando tanto uma "religião" racionalista quanto
uma especial homossexualidade. Strachey, um deles, chegou a propor
que os termos referentes a sexo fossem substituídos por termos
técnicos em latim, para que não se caísse na
vulgaridade. O contato com Lawrence só podia ser desastroso,
e a rapaziada foi condenada com um solene "já era"
("are done forever"). Lawrence sonhou e viu-os como baratas
pretas (que mordiam como escorpiões...), mas a exceção
foi o prenúncio de uma outra história: "Quanto
a Keynes não estou certo... quando vi Keynes aquela manhã
em Cambridge era uma das crises da minha vida. Aquilo me deixou louco
de infortúnio, hostilidade e fúria..."
O relato desse encontro, feito por Garnett, levou Keynes a redigir
o ensaio autobiográfico reavaliando o significado do grupo,
em 1938. O texto foi lido diante do círculo de íntimos
(um pouco ampliado) mas Keynes apenas autorizou a publicação
póstuma. "(...) magro racionalismo, saltitando sobre a
crosta de lava, ignorando tanto a realidade quanto o valor das paixões
vulgares, combinado à libertinagem e irreverência compreensível
(...)" (1)
Poucas personalidades se permitiram, antes ou depois dos 55 anos,
uma confissão tão franca dos paradoxos que definem os
estreitos limites entre os quais uma vida é construída.
Vivendo no mundo em que os homens de ação não
passam de anódinos que destilam a libido no único substituto
perfeito - Dinheiro - Keynes foi dos últimos a decifrar o enigma
próprio à ação. Agir, no capitalismo,
é o simulacro de uma impossibilidade: "(...) na verdade,
temos apenas, via de regra, a mais vaga das idéias de quaisquer
consequências de nossos atos que não sejam as mais diretas...
A prática de calma e imobilidade, de certeza e segurança
rompe-se de repente".
A ação necessária é inconsequente e convencional.
O caráter oscilante, vago e incerto do nosso conhecimento do
futuro contrapõe-se a qualquer tentativa de esquematizar a
ação racional, de reduzi-la a uma técnica. Consumador
do Iluminismo, Keynes aponta a natureza radical desse paradoxo.
Mas o paradoxo do tempo, se explicita longinquamente os sentimentos
de um intelectual perdido numa sociedade em crise, transformou-se
pelas mãos de Keynes num instrumento mais concreto de análise
e crítica. Pois que atividade, senão o processo econômico
capitalista, depende mais do transcurso do tempo e, simultaneamente,
consiste em reduzi-lo? Tendendo no limite a negá-lo, quando
se especula sobre o "futuro" valor de títulos? Produzir
requer tempo, especular exige a presentificação artificiosa
de uma riqueza futura. Como economista, Keynes identificou a atividade
básica através da qual a própria natureza do
tempo é transformada no capitalismo: a acumulação
de riquezas. Eu acuso a teoria econômica clássica de
ser uma dessas técnicas belas e polidas, que tentam lidar com
o presente, abstraindo o fato de que sabemos muito pouco a respeito
do futuro."
O percurso intelectual de Keynes, ainda que socialmente assegurado,
não foi linear ou estável. Filho de um economista, lógico
e administrador de Cambridge (sua mãe também ocupou
cargos públicos; Keynes descende de uma família que
chegou à Inglaterra em 1066, na pessoa de William de Cahagnes),
já na adolescência seus sucessos apontavam para a ciência
e a política. Começou estudando matemática, mas
o economista Marshall já o recomendava à economia. Entretanto,
antes mesmo de entrar para a academia, Keynes trabalhou como funcionário
público. No exame de ingresso à Agência da Índia,
Keynes teve o pior desempenho justamente em economia!
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Uma
civilização agonizante |
Enquanto trabalhava Keynes preparava um Tratado de Probabilidade que
o levasse de volta a Cambridge. Não foi admitido de início,
mas patrocinado como conferencista pelo próprio Marshall (e
depois Pigou). Foi o suficiente para abandonar o cargo público
e voltar a Cambridge, onde foi aceito finalmente em 1909.
Os anos anteriores à Primeira Guerra vão encontrá-lo
ensinando economia na universidade e, com 28 anos, dirigindo o renomado
"The Economic Journal", fato que causou mais que perplexidade
no meio acadêmico. Em 1913 publica um livro sobre problemas
monetários na Índia e é chamado para trabalhar
em uma comissão real para assuntos financeiros desse país.
Assim o jovem Keynes se destacava em um país que sempre venerou
a idade, alcançando rapidamente postos de assessoria ministerial
e sendo designado, em 1919, representante financeiro do Tesouro na
Conferência de Paz de Paris: "Poucos de nós reconhecem
convictamente a natureza intensamente instável, complicada,
pouco usual, desconcertante e temporária da organização
econômica na qual a Europa Ocidental viveu no último
meio século... os porta-vozes da França e Inglaterra
têm corrido o risco de completar a ruína que a Alemanha
começou, através de uma Paz que levada a efeito deve
deteriorar ainda mais, quando restaurada, a delicada e complexa organização
já abalada e destruída pela guerra, a única pela
qual os povos europeus podem empregar-se e viver."
Elevado a um cargo de suma importância, Keynes renuncia e abandona
Paris. Escolhe o dia 5 de junho, data de seu aniversário, para
comunicar sua demissão a Lloyd George. Oscilações,
ascensões e quedas, criação e destruição,
jogo. "Não se trata apenas de extravagância ou 'problemas
laborais' mas de vida e morte, de inanição e existência,
e das temíveis convulsões de uma civilização
agonizante."
Keynes foi dos únicos a ter essa rara percepção
do caráter momentâneo de uma vitória. Só
um bom jogador de cassino, um especulador ou um ladrão sabem
o que é isso. Um bom keynesiano jamais cultuaria "milagres",
econômicos ou políticos.
Paris foi um pesadelo, ostentação de morbidez e insolência.
Tentando sobrecarregar, com o peso da reconstrução européia,
uma Alemanha derrotada, preparavam o terreno para a barbárie
que se consumaria anos depois. Keynes, consciente da oposição
entre o potencial de acumulação crescente e as dificuldades
de torná-lo efetivo numa sociedade capitalista, colocou em
primeiro plano a rapidez com que os promotores da acumulação
se esforçam em mudar as regras do processo, acabando por minar
as bases do próprio sistema: "Enquanto o valor real da
circulação oscila muito de mês em mês, todas
as relações permanentes entre devedores e credores,
que formam o fundamento primeiro do capitalismo, fazem-se desordenadas
a ponto de perderem o sentido e a apropriação de riqueza
degenera em jogo ou loteria."
Keynes denuncia o processo pelo qual a própria classe capitalista
é debilitada, essa que parecia a senhora do mundo depois dos
triunfos industriais do século 19. Pois os capitalistas se
deixam arruinar e derrotar por seus próprios instrumentos,
pelos governos criados por eles e pela imprensa de que são
donos: "Talvez seja historicamente verdade que nenhuma ordem
social perece a não ser por suas próprias mãos.
No mundo mais complexo da Europa Ocidental, a Vontade Imanente pode
alcançar seus fins com maior sutileza e provocar a revolução
não menos inevitavelmente por obra de um Klotz ou de um Lloyd
George que por obra do intelectualismo, demasiado impiedoso e presunçoso
para nós, dos filósofos russos sedentos de sangue."
O capitalismo abriga em si mesmo os elementos de sua instabilidade.
E que não se diga ter sido Keynes um "revolucionário"!
Conservador consequente ou crítico ingênuo, o fato é
que esse arrogante filho da burguesia intelectual britânica,
que acreditava no poder das idéias ("Knowledge is power",
já dizia outro filósofo inglês), tinha os dedos
sob medida para as feridas de sua época. Não por acaso
ele se tornou um crítico inovador dos mitos de uma "mão
invisível"...
Entretanto, a obra de Keynes foi sintetizada pela academia. Suas propostas,
a seu modo também uma dissonância no coro dos contentes,
receberam um tratamento formal e foram convertidas em esquemas aritméticos.
Afinal, só a matemática faz de uma disciplina algo científico:
eis o mote ainda hoje repetido pelos que reduzem Keynes a alguma versão
desgastada da analogia do equilíbrio de forças e dos
sistemas consistentes.
"... bons economistas, ou mesmo competentes, são os pássaros
mais raros. Um assunto é fácil, no qual muito poucos
têm sucesso! O paradoxo encontra talvez explicação
na necessidade do mestre-economista possuir uma rara combinação
de dotes. Ele deve alcançar um alto padrão em várias
direções diferentes e combinar talentos que não
é comum encontrar unidos. Ele deve ser um matemático,
historiador, homem público, filósofo - em algum grau.
Ele deve entender símbolos e falar em palavras. Deve contemplar
o particular em termos do geral, e tocar o concreto e o abstrato no
mesmo vôo de pensamento. Deve estudar o presente à luz
do passado com os propósitos do futuro. Ele deve ter propostas
e ser desinteressado simultaneamente, tão incorruptível
e distante quanto um artista, ainda que por vezes tão pé
no chão quanto um político."
Tendo-se retirado das negociações (ele participaria
de outro importante encontro internacional, novamente vendo frustradas
suas sugestões: Bretton Woods, a origem do discutível
FMI...), Keynes encontrou a liberdade para escrever sobre as consequências,
sobre o futuro que resulta de decisões que só têm
olhos para o passado. Um paradoxo básico na sua carreira: analisar
e criticar o futuro de uma sociedade sem futuro. Ele que, aos seis
anos, já perguntava quem havia inventado o tempo!
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Atribuir
um novo papel ao Estado |
Numa época em que todos falavam em equilíbrio econômico,
pensando em forças, pêndulos, sistemas, equações
ou quaisquer outras representações metafóricas
da certeza, da estabilidade, da permanência, Keynes enfrenta
problemas como o desemprego, a inflação, os ciclos,
ressaltando o caráter determinante do investimento e sua natureza
instável. Acontece que as flutuações do investimento
resultam das qualidades objetivas da própria produção
capitalista e das várias formas de valorização
erigidas pelo sistema. Para Keynes o investimento é portanto
algo tão importante que se corre um risco incalculável
(em termos de subversão das próprias bases do emprego,
dos preços, das perspectivas de desenvolvimento) ao deixá-lo
nas mãos dos capitalistas, dos empresários particulares.
Ele identificou a incapacidade de o sistema capitalista arcar com
a própria abundância.
A partir dessa interpretação crítica Keynes chegou
à necessidade de atribuir um novo papel ao Estado. Qualquer
gasto é melhor do que nenhum! O desemprego, drácula
da grande crise dos anos 30, era uma realidade ignorada pelos economistas
ortodoxos, que assim evitavam (como continuaram evitando ao padronizarem
o pensamento de Keynes) a atribuição de um novo papel
ao Estado no contexto da regulação dos processos de
acumulação. Contra a violência saneadora de uma
crise capitalista, Keynes propunha no limite que o exemplo da situação
egípcia fosse lembrado: por que não construir pirâmides?
Por que não encher garrafas com dinheiro, enterrá-las
e depois desenterrá-las? Enfim, por que não reconhecer
que o automatismo do mercado na reconstituição do pleno
emprego não passa de um mito? Daí resultam propostas
de promoção do emprego e de acumulação
produtiva pelo Estado.
Keynes já caetaneava: luxo para todos. Mas as velhas crenças
ainda dominavam seus contemporâneos, conservadores menos audazes:
"Devemos inventar uma nova sabedoria para uma nova era. Enquanto
isso, se queremos fazer algo de bom, devemos parecer heterodoxos,
problemáticos, perigosos e desobedientes diante dos que nos
precederam... A longo prazo estaremos todos mortos. Os economistas
se atribuem uma tarefa demasiado fácil e demasiado inútil
se, em momentos tempestuosos, somente podem dizer que quando o furacão
se distancie o oceano voltará a estar tranquilo."
Estamos suficientemente próximos de declarações
do tipo "a crise é momentânea", "basta
esperar a recuperação internacional", etc. para
perceber a atualidade dos diagnósticos elaborados por Keynes
há meio século.
Mas não se deve reduzir Keunes a um mero proponente de medidas
de política econômica (essa é a versão
acadêmica do pensamento "keynesiano"). É o
significado do Estado que muda com a crise da economia capitalista.
Não se trata apenas de propostas técnicas, de uma teoria
do controle social e econômico, de uma tecnicização
do Estado e da política. Há algo de fundamental na obra
de Keynes que identifica o momento histórico em que agir passa
a ter outro sentido, quando não perde aparentemente o sentido.
Para eles as questões referentes ao futuro subvertiam as linhas
de todos os partidos existentes, herdeiros da polícia do século
19. Tratava-se de repensar a oposição entre capitalismo
e socialismo, percebendo se necessário os limites à
própria teoria e suas propostas técnicas. Mas como um
eloquente membro da burguesia inglesa, Keynes nunca abriu mão
de pensar esses problemas a partir da sociedade em que vivia, diferentemente
de certo pensamento conservador atual que busca entre capitalismo
e socialismo um ponto comum que nunca está onde esses conservadores
estão.
Keynes acabou-se casando com uma estrela do balé russo de Diaghilev,
Lydia Lopukhova, em mais um ato que chocou a comunidade de Cambridge
e, em particular, o grupo de Bloomsbury. A viúva de Marshall
comentaria, tempos depois, ter sido esse casamento "a melhor
coisa feita por Maynard". Para não escaparmos ao adágio
segundo o qual há sempre uma mulher por trás de um grande
homem, devemos pôr em relevo o fato de ela nunca ter concordado
em colaborar com os biógrafos de Keynes, especialmente com
Harrod, considerado o biógrafo oficial. Essa birra aparentemente
insolente pode revelar, entretanto, que ela compreendeu o risco de
colaborar com biógrafos que ignorassem a inquietação
básica de seu marido, explicitada nas biografias por ele escritas.
Ela talvez já adivinhasse o risco de padronização
de uma personalidade, num mundo que não se havia desvencilhado
do vitorianismo (que ela mesmo enfrentou) e que jamais reconheceria
os paradoxos de se tentar racionalizar a realidade, arbitrar sobre
as consequências de processos inconsequentes. Em 1938, ao ler
seu ensaio autobiográfico diante dos amigos de Bloomsbury,
Keunes condenava um racionalismo que já não era o seu:
"Se, portanto, ignoro totalmente nossos méritos - nosso
charme, nossa inteligência, nossa espiritualidade - posso ver-nos
como aranhas d'água, graciosamente deslizando, tão leves
e racionais como o ar, sobre a superfície da correnteza, sem
nenhum contato com os remoinhos e correntes subterrâneas."
Como se percebe, a biografia de Keynes conta várias histórias.
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(1) Naturalmente todas as citações são retiradas
de textos do próprio Keynes, cuja referência completa
seria apenas um caco insuportável no corpo do texto.
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