Arthur Nestrovski
O primeiro volume das "Obras Completas" de Theodor Adorno
(1903-1969) foi publicado em 1970. Desde então, já
foram publicados mais dezoito volumes e outros quatro estão
prometidos para breve (1). Destes vinte e três livros, nada
menos que onze - praticamente a metade - são dedicados
exclusivamente à música. É uma revelação
surpreendente: Theodor Adorno, um dos pensadores mais influentes
da modernidade, autor da "Dialética Negativa",
do "Jargão da Autenticidade", das "Minima
Moralia" e da monumental "Teoria da Estética",
entre outras obras seminais, se revela também como um musicólogo
prolífico, autor de monografias sobre Mahler, Berg e Wagner,
criador de uma primeira "Sociologia da Música",
palestrante e crítico da música nova e da antiga,
compositor e pianista, e teórico da "Filosofia da
Nova Música". É uma revelação
surpreendente porque a despeito desta vasta produção
e a despeito do impacto inicial de um ensaio como o "Fetichismo
na Música", ou de uma coletânea como "Dissionâncias",
a obra musical de Adorno permanece à margem dos currículos
correntes de teoria musical. A despeito de referências obrigatórias
aqui e ali, ou de algum comentário perdido num rodapé
de página, a teoria musical de Adorno é tida, de
maneira geral, como uma contribuição secundária
- secundária no contexto de sua obra como um todo e secundária
aos interesses primários da educação musical
de hoje. A teoria musical de Adorno permanece alojada no quarto
de hóspedes do conservatório, onde é tratada
com aquela impaciência discreta de quem não vê
a hora do visitante ir embora.
Do
ponto de vista da filosofia, o pensamento musical de Adorno é
fascinante, mas incompreensível, já que é
preciso bem mais do que um conhecimento superficial de história
da música e noções básicas de harmonia
para compreender do que se trata. Do ponto de vista da teoria
musical, a obra de Adorno representa, de uma só vez, a
mais abrangente, estimulante e mais frustrante reflexão
sobre a música neste século. Ninguém antes
dele fora capaz de dissecar com a mesma agudez os mecanismos modernos
de produção, reprodução e consumo
da música. Ninguém depois dele já demonstrou
semelhante vocação analítica, resultado de
uma mistura explosiva entre a composição e a dialética.
Mas a teoria musical de Adorno, ou melhor, suas várias
versões de uma teoria musical convergem todas numa promessa
que ele jamais cumpriu: a elaboração de uma técnica
analítica capaz de fazer jus a seu pensamento estético
e político. Isto é, uma técnica de análise
que nos permita expor a economia interna da partitura em suas
relações para com a economia externa do capital.
Oscilando entre a filosofia e a música, as análises
musicais de Adorno desembocam com frequência num beco sem
saída, incapazes de articular mediações entre
a dialética social e a da partitura. Este é um problema
do qual o próprio Adorno tinha viva consciência,
mas para o qual jamais encontrou soluções. É
possível se perceber a raiz e a ruína de seu inacabado
livro sobre Beethoven, e dos fragmentos e notas para três
outros projetos: uma "Teoria da Reprodução
Musical", uma crítica das "Correntes Musicais",
e uma "Teoria do Rádio". Acossados entre a síntese
e a fragmentação, um a um cada volume foi se deixando
vencer pelo silêncio.
Musicólogo
Dentre os fragmentos de seu livro sobre Beethoven, conta-se uma
descrição relativamente longa do projeto como um
todo. Em versão traduzida para o francês, esta descrição
foi publicada por Mac Jimenez e Marc de Launay na "Revue
d'Esthétique", n. 8, 1985 (volume inteirante dedicado
a Adorno). Três anos antes, a revista inglesa "Music
Analysis" (volume 1, n. 2) já publicara uma conferência
proferida por Adorno em 1969, gravada, transcrita e traduzida
por Max Paddison. O contraponto entre os dois textos, fragmentados
e improvisados como são, pode revelar muito das preocupações
do Adorno musicólogo, face às objeções
de sua cara-metade de filósofo. Uma leitura polifônica
desses textos pode demonstrar a extensão do problema, bem
como sugerir possibilidades de resposta para o impasse da análise
musical.
Antes
do impasse, contudo, uma dúvida clássica, e a solução
da crise de consciência do analista. "Análise"
é uma palavra fria. Vem do grego (ana-lysis) e significa
"quebra" ou "dissolução". A
análise é parente da "anatomia" que "corta
em pedaços". O analista musical, como o anatomista,
também se propõe a cortar em pedaços para
melhor compreender o todo. Marcado pelo estigma da faca e do frio,
não há analista que não se veja perseguido,
mais cedo ou mais tarde, pelo demônio da dúvida,
sussurrando verdades e inverdades sobre a futilidade da análise.
"A música", diz o diabo, diz o público,
e dizem o jornal e os músicos, "a música não
se analisa. Não é preciso entender nada de música
para se gostar de música. A música fala diretamente
ao coração."
Esta
forma comum de resistência à teoria reproduz uma
das modalidades mais antigas de conservadorismo. Analfabetos de
dó a dó anunciam, rancorosos, que os bárbaros
chegaram para destruir e salgar o jardim da audição
original. De certa maneira, têm razão: a ilusão
de uma escuta inocente, de uma escuta imediata e divina, desaparece
tão logo se perceba as leis de construção
do objeto musical, que vem de oficina humana (demasiado humana).
A análise nos conduz de volta à arte, em sua primeira
acepção: a técnica, a habilidade de combinar,
construir. Ars (arte), como ordo (ordem), ratio (razão)
e res (objeto; realidade), vem da raiz indo-européia "ar-",
que significa conectar, ou combinar, e uma vez face à face
com esta arte - isto é, uma vez que se analisa os menores
elementos de uma obra e o princípio de suas conexões
- uma vez dissolvida a totalidade do objeto, já se está
praticamente à beira de uma desmistificação
da obra musical. É neste sentido que se deve compreender
o comentário de Adorno sobre a relação entre
a obra e sua análise: "A análise é uma
dessas formas, como a tradução ou crítica,
que permite à própria obra se desenvolver. A obra
musical necessita da análise, para que possa revelar seu
conteúdo de verdade" (MA, 176) (2). A obra de arte,
para Adorno, é uma forma particular do conhecimento. Como
tal, obedece às leis de formação de qualquer
outro aparato ideológico. A análise musical, segundo
Adorno, deve partir do objeto (compreendido como forma de produção)
para chegar ao objeto (compreendido como o resultado de um "campo
de forças" que se estende da poética à
política). A análise perseguida por Adorno é
uma filosofia do sujeito, mas calcada na exposição
de uma falsa consciência do objeto. A análise, para
Adorno, só faz sentido quando integrada a um projeto mais
ambicioso e mais amplo: a crítica da ideologia espontânea
da vida cotidiana.
Tapeçaria
A escolha de Beethoven como tema de um ensaio analítico
está diretamente ligada a este projeto. Por um lado, Beethoven
representa hoje a própria imagem do compositor, em sua
versão mais sentimental e trivializada. Não se trata
apenas da adoração e das fábulas que envolvem
a memória do Grande Surdo. Suas obras mesmo se estabeleceram
como símbolo de tudo que a música dita (e maldita)
clássica representa: profundidade, intangibilidade, humanidade.
Mar de lágrimas. Afogar-se acima das estrelas. Beethoven
é a figura chave que se deve estudar para a dissecção
das estratégias individuais e institucionais da recepção
musical.
Por
outro lado - o de dentro, o da produção musical
- a música de Beethoven oferece ao analista uma tapeçaria
de temas, motivos e interrelações harmônicas
que bem representa o que de mais complexo já foi produzido
com sons, silêncio e pentagrama. E a música de Beethoven
representa ainda, para Adorno, a reunião de duas outras
qualidades essenciais: o profissionalismo e a inteligibilidade.
A consciência profissional de Beethoven transparece a cada
colcheia, cada compasso, cada frase. Figuras de linguagem se multiplicam
a olhos vistos na partitura totalmente livre de ingenuidade. A
imagem do surdo no bosque, psicografado a "Sinfonia Pastoral",
não se sustenta por mais de duas linhas de análise.
Mas este profissionalismo de Beethoven não é outra
coisa senão o resultado da proximidade entre a análise
e a composição: "uma espécie de convergência
entre o processo analítico e o processo composicional"
(MA, 176). A análise da música de Beethoven servirá,
portanto, para reafirmar a primeira lei da psicodinâmica
da composição: as distâncias entre o diletante
e o compositor é diretamente proporcional à razão
de suas capacidades analíticas. Vale dizer: a qualidade
da composição cresce e decresce de acordo com a
consciência crítica do compositor.
Neste
ponto é preciso fazer uma ressalva. Theodor Adorno foi
aluno de Alban Berg, que foi aluno de Arnold Schoenberg. Este
fato, por si só, já explica muitas coisas. Explica,
por exemplo, de onde vem o sólido conhecimento musical
de Adorno. Dois volumes de composições do jovem
Adorno, publicados em 1970, incluem um quarteto de cordas, três
peças para orquestra e vários ciclos de canções
para voz e piano. Não são obras-primas, mas não
são piores que as composições juvenis de
outros talentosos alunos de Berg ou de Schoenberg. Como Ernst
Krenek ou Roberto Gerhard, também Adorno aprendeu com Berg
o significado do artesanato na composição - aprendeu
análise - e aprendeu a fundamental lição
de estética do mestre Schoenberg: "o verdadeiro propósito
da construção musical não é beleza,
mas sim a inteligibilidade". É uma posição
furiosamente "germânica", que tem sua justificativa
teórica na "Crítica do Juízo" de
Kant. É uma posição difícil, discutível,
parcial e comprometedora. Uma vez livres da beleza, Adorno e Schoenberg
se vêem conduzidos à idéia da música
como teoria, à composição como estabelecimento
de um "campo de forças", à obra musical
como "problema" (MA, 181). Uma vez livres da beleza,
livres de um ornamento de um belo que são suas marcas de
batismo, Adorno e Schoenberg se vêem comprometidos com uma
tradição musical específica, que tem sua
origem justamente em Beethoven. Desenvolvem daí uma lucidez
e uma cegueira complementares e opostas. Cada texto de Adorno
carrega consigo um outro texto, seu outro texto, ausente e presente
nas entrelinhas. É o elogio do belo, que nem Adorno nem
Schoenberg jamais puderam contemplar. A beleza, para Schoenberg,
é sinônimo de complacência. A beleza, para
Adorno, é mentira, é manipulação.
A música de Beethoven, cuja superfície nunca é
"bela", nunca é "boa de se ouvir",
oferece a Schoenberg uma lição monumental sobre
o significado da composição como construção
e sacrifício, e oferece a Adorno nada mais nada menos do
que uma filosofia.
Combinatória
Percebe-se agora a importância da análise para a
filosofia musical de Adorno. Se a música, a música
de Beethoven, mas não só a dele (cf. as monografias
sobre Mahler, Berg e Wagner, e os ensaios sobre Bach, Schoenberg
e Webern, entre outros) constitui propriamente uma reflexão
filosófica, então o que é preciso é
se ganhar acesso às suas formas de leitura. E o que é
a leitura senão uma "arte", Ars, uma técnica
de combinações? Leitura, como inteligência,
lógica, léxico ou lei, vem de uma raiz indo-européia
"leg-" que significa selecionar ou combinar. A escuta
analítica, para Adorno, será aquela escuta capaz
de identificar os elementos selecionados pelo compositor e organizados
pelo engenho do artista - será aquela escuta que reproduz
ela mesma a constituição da obra, se afirmando como
uma "arte da leitura". A escuta analítica será
aquela escuta que recupera a arte da arte, numa época em
que a arte já desapareceu, consumida pela voracidade de
um público sentimental. A escuta analítica será
aquela que persegue o objeto, o encara sem medo, e se arrisca
à difícil fortuna do pensamento.
Trabalho
Da obra musical tida como objeto, "ordem e conexão
das coisas", a análise desvela a obra como trabalho,
produção de uma "ordem e conexão das
idéias das coisas". A análise servirá,
por tanto, para desfazer a falsa separação entre
o conhecimento e o objeto do conhecimento. Através da análise,
a música nos deixa ouvir o conhecimento como a própria
produção do objeto do conhecimento.
Em
sua palestra de 1969, Adorno passa em revista algumas das formas
correntes de análise musical, dos "guias temáticos"
a análise motívica "a la" Riemann e à
análise schenkeriana. Dessa resenha não sobra pedra
sobre pedra, mas muito se aprende sobre o que está à
espera do analista. Os "guias de viagem" temáticos,
à maneira das contracapas de disco ou dos programas de
concerto são dispensados com uma só palavra: reificação.
Sua única virtude foi ter conduzido analistas como Riemann
ou Réti a um estudo dos menores elementos isolados da composição.
Mas as análises de veia motívica sofre, por sua
parte, de outro problema agudo. Ocupados com a montagem de seus
quebra-cabeças, os analistas desprezam o tempo e o movimento
em favor de um esquema de papel. É um problema antigo,
um drama de duas cabeças: "todo o vir-a-ser da música
é, fato, ilusório, posto que a música, enquanto
texto, é verdadeiramente fixa e não 'vem-a-ser'
coisa alguma..." (MA 179). O analista que se concentra exclusivamente
na relação formal entre motivos musicais se professa
científico praticante, pousando a mão esquerda sobre
a partitura. Mas ignorar a partitura em favor dos sons não
é menos absurdo que abdicar dos sons em favor do texto
escrito. "A música só ganha coerência
quando é percebida como um vir-a-ser. Eis aí o paradoxo
da análise: por um lado, a análise é limitada
pelo que é fixo e está ao alcance da mão;
por outro, deve traduzir o que aprendeu em termos de movimento,
um movimento coagulado pelo texto musical" (MA, 179).
Heinrich
Schenker se sai um pouco melhor neste confronto. A análise
schenkeriana se propõe a demonstrar o princípio
de unidade da música tonal. De acordo com Schenker, ao
nível mais profundo de toda obra tonal se distingue uma
linha básica, que desce do terceiro grau à tônica
da escala. Esta linha, combinada com a linha fundamental do baixo
(1-5-1) constitui o "Ursatz": a base contapuntística
de toda linguagem tonal. Partindo do "Ursatz", é
possível conceber a composição - que, para
Schenker, é sempre sinônimo de composição
tonal - como um processo gradual de ornamentação
desta cadência. A análise percorreria o caminho inverso,
destacando os ornamentos da superfície, penetrando os níveis
médios, mais sóbrios, e descobrindo finalmente o
"Ursatz", a estrutura arquetípica da obra, uma
espécie de Id da tonalidade.
Desta
idéia derivam dois corolários. Se o "Ursatz"
é realmente, como quer Schenker, a base de toda música
tonal, então será necessário pensar cada
nota de uma obra em relação a esta cadência-mãe.
E o que isto significa é que a idéia de dissonância
deve se projetar do momento individual ao nível da obra
como um todo. É esta a grande descoberta de Schenker. Uma
vez apreendida sua noção de dissonância, a
análise schenkeriana nos leva inevitavelmente a uma escuta
estrutural.
Para
Adorno, como para Schenker, a composição é
um processo sistemático e passível de representação.
Não é por acaso que tanto Adorno quanto Schenker
consideram Beethoven - o mais sistemático de todos os compositores
- como o maior de todos os compositores. Todavia, ao contrário
de Schenker, que postula o "Ursatz" e transforma a análise
num método redutor, Adorno vê na redução
um dos maiores perigos para o analista. "Ao reduzir a música
a suas estruturas mais fundamentais, Schenker interpreta como
casual e fortuito precisamente o que, em certo sentido, é
a própria essência da música" (MA, 174).
Isto é: Schenker parte da superfície, chega ao fundo
e fica por lá. Descobre o que é comum a toda obra
tonal; ignora o que faz de cada obra uma outra obra, de cada compositor
um outro compositor. De um ponto de vista schenkeriano, as diferenças
entre, digamos, Haydn e Mozart, são menos importantes do
que sua semelhança primal no "Ursatz". Mas as
diferenças entre Haydn e Mozart são justamente o
que fazem de Haydn Haydn e de Mozart Mozart. O método analítico
de Schenker nos permite avaliar o que Schenker mesmo desprezou.
É preciso partir da superfície, descer até
o fundo - e retornar. Do explícito ao implícito
e de volta ao explícito: uma teoria materialista da tonalidade
deve percorrer cada caminho e cada idéia em pelo menos
duas direções simultaneamente.
Discurso
Os fragmentos de Adorno sugerem o teor de até, em certos
casos, a substância de suas análises da música
de Beethoven. São três as questões analíticas
por ele abordadas: identificação e crítica,
a um nível técnico, dos elementos e normas de cada
obra estudada; formulação do "problema"
da música de Beethoven; e criação de um discurso
analítico apropriado. As três questões são
interdependentes, de modo que não se pode definir uma sequência
de operações conduzindo de uma a outra. Como falar
do problema da música de Beethoven se ainda não
foi analisada? Mas como é possível analisá-la
sem formular previamente um princípio de análise?
Uma vez que se percebe o conhecimento como forma de produção
(e não de descoberta), como é possível confiar
numa análise técnica, "objetiva" e "neutra"?
"Objetiva" é a lente do fotógrafo, que
só fotografa o que quer ver. "Neutra" é
a rede bancária da Suiça, que administra (igualmente)
riquezas de vida ou de morte (desigualmente). E como fazer e falar
da análise sem palavras - palavras que só podem
vir da própria análise? É o que se chama
de "círculo hermenêutico". A obra de Adorno
como um todo oferece mais de uma resposta a este problema. Seus
fragmentos de uma filosofia da análise sugerem um modo
musical de se chegar à quadratura do círculo.
Fragmentos
Se, para Adorno, é possível falar de análise,
fazer análise e teorizar a análise, é justamente
porque a fala, a fábrica e a teoria coincidem na análise.
Não há um ponto de partida, como não há
um ponto de chegada - se parte e se chega de todo e qualquer ponto,
e ao mesmo tempo. Não há um ponto de partida porque
não há uma tabula rasa da pesquisa. Como não
há objeto sem o objeto do conhecimento. A ilusão
de causa e efeito que move o círculo hermenêutico
se confunde com a causa e o efeito deste movimento que nos precipita
da esquerda para a direita, linha após linha e de cima
abaixo até o fim. Da esquerda para a direita, o pensamento
que foge da simultaneidade, o pensamento que rejeita a contradição
é a imagem intelectual do que Adorno chamava, com desprezo,
de "mundo administrado", um mundo que esse mesmo pensamento
administrou. A dialética musical de Adorno, pelo contrário,
é uma aplicação do pensamento formalizado
na "Teoria da Estética". É um pensamento
que faz da ruína, do fragmento, seu princípio de
articulação. O fragmento, como os casos de obra
do analista, só pode ser interpretado com a visão
do todo presente. Mas este é um todo que não equivale
a uma simples soma das partes, posto que cada parte contém
o todo além de si. Face à ilusão de totalidade,
face à totalidade que só se conquista à força
de redução, o pensamento de Adorno se multiplica
em cacos de idéia, pedaços de prismas refletindo
e difratando um obscuro objeto musical.
Auto-reflexiva
quase ao nível do exagero, a música de Beethoven
bem se presta ao projeto de análise imaginado por Adorno.
A música de Beethoven é a música do artifício.
Sua marca social é a espontaneidade, mas essa é
uma espontaneidade composta, construída. Em termos talvez
mais próximos de Adorno, é uma "espontaneidade
negativa". O artifício em Beethoven é sinal
de uma arte consciente de si, e "uma arte consciente de si
é uma arte que se analisou"(MA, 176). A análise
de Adorno visa à recuperação desta análise
que se confunde com a composição. E esta análise
composta, esta arte da combinação, reflete e difrata
o "problema" que lhe deu origem e que se origina novamente
com ela: a tonalidade. "Compreender Beethoven é compreender
a tonalidade"(B). A tonalidade é o "princípio
regulador das relações", é o problema
capital da música de Beethoven, e é o problema do
capital: "a tonalidade situa-se nos próprios fundamentos
da sociedade burguesa" (B). A análise de Adorno busca
justamente o entendimento do "problema" da composição
como um problema que é tanto imanente à música
quanto diretamente ligado às formas de produção
e do trabalho. A análise de Adorno busca refletir a tonalidade
como forma de composição e como forma de pensamento,
e busca refletir a tonalidade como pensamento e composição
da forma, onde "a forma representa a relação
entre a obra de arte e a sociedade ("Teoria da Estética",
12. 18). A forma, a constituição de cada momento
individual da obra, é o próprio domínio do
trabalho do artista, o "entusiasmo", "enthusiasmos",
inspiração como produção, "en-theos",
deus de dentro, o artífice, a cultura: nas palavras de
Beethoven, "o fogo que consome o fogo, consome a natureza"(B).
Uma vez compreendida a forma, isto é, a relação
entre o trabalho e a obra - uma relação que pertence
ela mesma à estrutura social do trabalho - a análise
está próxima da revelação de um "excesso"
da arte, um "conteúdo de verdade" que só
mesmo a análise é capaz de reconstituir (MA 177).
Para tanto, contudo, seria preciso encontrar formas de mediação.
Os desconfortáveis saltos, que se pode ler em alguns dos
fragmentos, entre a filosofia e a música, ou pior, entre
epifanias "poéticas" e detalhes da composição,
são a marca mais clara da ausência de mediações.
Mas para construir uma análise mediata, para construir
uma "teoria material da música" (MA 185), seria
preciso mais tempo e mais tempo de escrita, seria preciso chegar
ao livro, seriam precisos mais anos, que a morte levou.
É
assim que a filosofia analítica de Adorno aparece e desaparece
aos nossos olhos. Entre fragmentos pessoais de trabalho e uma
palestra improvisada, mal se pode distinguir a anatomia precária
desta análise. Mas aqui e ali brilha a "leve luz,
como um pequeno lume", ausente e presente como uma promessa
e uma dívida - e um pouco como este ensaio. Uma prática
analítica a partir da visão de Adorno corresponderia
a uma politização da análise. Vinte anos
mais tarde - com os erros de Adorno e de outros às nossas
costas - é possível, agora, retornar aos fragmentos,
e fazer o balanço das contas que vamos saldar.
____________
Notas
(1) "Gesammelte schrifen", Suhrkamp, 1970.
(2)
As referências no texto estão abreviadas: MA corresponde
a "Musical Analysis", volume 1, n. 2, 1982; B corresponde
à tradução da tradução francesa
de fragmentos de um texto original de Adorno, descrevendo seu
projetado livro sobre Beethoven. A tradução francesa
foi publicada na "Revue d'Esthétique", n. 8,
1985.
(3)
"Kompositionen", 1980.
(4)
Capítulo 6 de "Fundamentals of Musical Composition",
Faber & Faber, 1967.
Fragmentos sobre Beethoven
Theodor Adorno
(...)
Como dar vida à forma - problema agudo ao se tratar das
últimas obras de Beethoven - e... como dar forma ao que
é vivo, reduzi-lo a seu conceito.
(...)
O entendimento da obra de Beethoven depende da maneira como se
interpreta a dialética do elemento mítico... a reunião
do que é humano com o que vem do mundo dos mortos, dos
deuses e demônios... Num universo de predestinação
e de domínio, só é humano no homem o demônio.
(...)
Encerrar o livro invocando a doutrina mística judaica dos
"anjos da relva", destinados a desaparecer num rio de
fogo. O caráter da música - nascida como forma de
louvação divina, mesmo e justamente quando se opõe
ao mundo - é semelhante ao caráter desses anjos
efêmeros. (E é a efemeridade que a transforma em
louvação - isto é, numa destruição
permanente da natureza). Beethoven faz desta imagem a própria
consciência que a música tem de si mesma. A verdade
de Beethoven reside na aniquilação de todo detalhe.
Com Beethoven, a composição se transforma de moda
a revelar o caráter efêmero da música. Segundo
suas próprias palavras, o fogo que deve acender a música
no coração do homem - o entusiasmo - é "o
fogo que consome o fogo, consome a natureza".