T"Artes plásticas no Brasil hoje" foi o tema
de debate realizado a 10 de novembro último no auditório
desta "Folha". Centrado preferencialmente sobre as relações
do artista e da obra de arte com a sociedade e a cultura que o
circundam, ele abrangeu, entretanto, um espectro bem mais amplo,
com a participação do público. Na mesa, estavam
a artista plástica Anésia Pacheco e Chaves (coordenadora),
o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e os críticos Aracy Amaral,
Olívio Tavares de Araújo e Fábio Magalhães,
diretor da Pinacoteca do Estado. Damos a seguir um resumo dos
principais momentos da discussão.
*
ANÉSIA - Se todos concordarem, gostaria de dedicar
este debate à memória de Mário Pedrosa, recentemente
falecido. Acho mais apropriado lhe dedicar um debate do que um
minuto de silêncio, já que ele batalhou a vida inteira
pela livre discussão e livre expressão do pensamento.
Nosso tema é o papel social das artes plásticas
no Brasil hoje, isto é, aqui e agora. Significará
isso que renunciaremos a uma abordagem mais generalizadora da
questão artística para só falar de problemas
imediatos e locais, como por exemplo, o mercado de arte no País
ou a profissionalização do artista ou a arte nacional?
Penso que não e mesmo que falemos só disso não
se falará só disso. Como separar a chamada realidade
dos conceitos e preconceitos? Falaremos, portanto, daquilo que
aqui e agora é arte para nós, isto é, de
todos os invólucros culturais que, através do tempo,
constituíram a experiência artística que vivemos:
nós somos os gregos, o racionalismo francês, a metafísica
alemã, o índigo, o negro, o imigrante e até
as vagas noções de cultura oriental que assimilamos
à nossa maneira. A propósito, lembro que Bob Wilson,
numa peça que retrata o cotidiano de uma família
americana de classe média, coloca como personagens figuras
históricas como Cleópatra ou Freud. Nosso debate
está, pois, aberto em todas as direções.
Vivemos
agora os resíduos de muitas culturas e em nossa cultura
em crise esses resíduos ao mesmo tempo que são queridos
- afinal também somos esses resíduos - tornaram-se
asfixiantes e entravam o caminho do futuro. O que fazer com eles
já que são principalmente o resultado de uma cultura
oficial sempre vinculada ao poder?
Os
resíduos das culturas chamadas populares não entraram
para a história com H maiúsculo, constituindo uma
outra história. Existem, é claro, inúmeras
formas de expressão criativa não institucionalizadas
e que não são cúmplices da dominação
e do classismo. Até que ponto elas podem ser independentes
e até que ponto são influenciadas pela cultura oficial
é a pergunta que se coloca. Se a cultura oficial esbarra
hoje num impasse é porque está vinculada a um poder
opressivo que não cria mais nada, apenas repetindo os esquemas
anteriores com pequenas variações.
Mas
em relação às outras formas afastadas do
poder, a que autonomia poderão aspirar, e se liquidarem
os resíduos do poder cultural, como resolverão o
problema da separação entre uma arte de elite, que
repete os valores da classe dominante servindo aos seus interesses,
e uma arte popular, terminologia que reproduz o padrão
de submissão como forma de existência. Para muitos,
a "boa arte" é aquela da elite cultura; a outra
é pitoresca ou incomum.
Comum
falar de arte e identidade nacionais, quando essa divisão
permanece neste País, em que a elite só pode ser
aquela cúmplice da economia multinacional e da cultura
importada? O popular, por sua vez, ou torna-se caricatura dessa
elite ou é relegado ao gueto folclórico ou é
eliminado pela força, quando coloca questões menos
alienantes e pitorescas. Como reivindicar o nacional quando o
pensamento que nos permitiria constituir um País de fato
independente, se dá em termos internacionais? É
óbvio que o questionamento da economia alienante, da cultura
e sociedade de dominação não é apenas
nacional, embora possa ter características próprias.
Mas passemos adiante: o que fazer para não afundar no pessimismo
e nos resíduos ou apostar no surgimento do possível
por entre os resíduos? Se o artista como personagem parece
destinado a acabar talvez ainda lhe reste uma função:
ajudar a abrir uma brecha nesses resíduos, arcando com
a dor de sacudir dentro e fora de si mesmo a nostalgia de sua
vida histórica a eles amarrada artística e existencialmente.
Como será possível fazer isso dentro do sistema,
já que estar fora dele não parece possível?
Tentei levantar algumas questões, pois penso ser este o
sentido de um debate e o começo de qualquer possibilidade
de dizer.
ARACY
- Acho que a Anésia tocou em alguns pontos que interessam
a todos nós aqui, especialmente esse problema de arte de
elite e arte popular. Há cerca de um ano, escrevendo sobre
a situação das artes plásticas no Brasil,
coloquei que elas ocorriam em nosso País em três
níveis: no nível de arte ou criatividade popular,
no nível de arte regional e no nível de arte que
denominamos erudita. Dentro de arte popular eu incluía
as expressões artesanais de criatividade indígena,
que ocorrem em sociedades ainda tribais para fins de sobrevivência
desses grupos, como uma renda que pode vir de fora; também
colocava a obra artesanal como um trabalho que ajuda a renda familiar
e é fruto de uma atividade realizada sem intenções
artísticas entre aspas. Como arte regional, eu colocava
aquela que ocorre nas cidades do interior de todos os nossos Estados;
quase toda cidade possui os seus artistas locais, que têm
o seu mercado, que dão aulas para jovens ou futuros artistas
e que podem, inclusive, encaminhar-se para grandes centros urbanos.
No
nível da arte popular, ela existe ou localmente ou para
fins de turismo ou para vendas em butiques de artesanato ou lojas
de arte indígena, que se multiplicam hoje, criando uma
espécie de esnobismo novo pelo produto artesanal popular
retirado de seu contexto. Num País onde grande parte da
população não tem sequer a possibilidade
de ganhar o salário mínimo, não é
de estranhar que esse artesanato seja produzido de forma qualitativamente
inferior, desde que dê possibilidade de sobrevivência
do ponto de vista humano, para aqueles que o praticam. Quanto
à arte regional, ela pode ter ou não o reconhecimento
dos grandes centros nacionais. Não vejo, porém,
qual a importância de delimitar se isso é arte com
maiúsculo ou só arte regional, ou seja a diluição
da diluição da informação internacionalista
veiculada de Paris, Nova York, Londres ou Milão. Esses
artistas estariam sempre relegados a serem artistas que se poderia
denominar de segunda classe, como também se pode chamá-los
de cidadãos de segunda classe ou terceira classe? Essas
são perguntas cujas respostas só podem ser muito
relativas.
Mesmo
os artistas que se consideram eruditos até que ponto também
não são versões provincianas da informação
internacionalista e até que ponto são realmente
eruditos? Vejo o Brasil como uma sociedade de classes que não
têm vinculação entre si. Dentro delas, há
também a prática da arte ou do ato criador em níveis
que não têm uma intercomunicação: arte
que é feita por grupos de população que se
satisfazem com isso e sobrevivem a partir disso, mas cujos produtos
podem ou não ser considerados como obras de arte em outros
níveis. Para mim, o reconhecimento nacional ou internacional
não tem maior relevância; o importante é que
esses criadores produzem e o resultado do seu trabalho é
vendido, apreciado ou consumido como arte utilitária ou
como arte de decoração.
Hoje,
tenho muitas dúvidas a respeito da validade da pura arte
de especulação. Acho que nós vivemos num
País em que há tantos desníveis sociais,
tantas realidades, que seria descabido exigirmos que exista aqui
um único tipo de expressão. Há dois problemas
que me preocupam hoje em arte brasileira - falo em arte brasileira
porque não me interessa falar em termos de arte universal
e sim sobre o que se passa aqui e agora, e podemos ser universais
na medida em que possamos expressar o nosso particular. São
eles: a incomunicabilidade da obra de arte, especialmente a das
chamadas expressões artísticas mais de ponta, e
a desvinculação do artista de seu meio. Os dois
implicam, evidentemente o isolacionismo do artista.
O
fazer artístico, sobretudo na arte erudita, sempre foi
considerado como uma atividade solitária em que o artista
só sai do seu ateliê quando chega o momento da apreciação
através de uma galeria, de um museu ou de uma bienal. Essa
é uma das razões pelas quais o artista tem muita
dificuldade em se vincular com o meio dentro do qual vive. Desde
o Brasil-colônia, temos uma tradição de considerar
cultura como sinônimo de elite; disso não fugiam
os nossos bacharéis que iam estudar em Coimbra e, quando
voltavam, sentiam-se estrangeiros aqui e desprezavam o meio ambiente.
Essa desadaptação é já uma constante
em nosso comportamento artístico. Mesmo o movimento modernista,
que ocorreu a partir de uma pequena elite na década de
20, não fugiu, em sua ânsia de atualização,
ao hábito de se vincular às novidades internacionalistas
que ocorrem em Paris. Foi só numa segunda etapa que surgiram
o nacionalismo e as tentativas de expressar o que é nosso.
Houve,
entretanto, uma década, a de 60, que sacudiu o mundo em
vários aspectos e sacudiu também o Brasil. Então,
nossos artistas plásticos participaram e se fizeram presentes
através de sua obra. Jovens artistas, sobretudo de São
Paulo e do Rio de Janeiro, questionavam a cidade, o dado político,
o autoritarismo vigente, e isso transparecia em seus trabalhos.
Mas a partir da década de 70 cujo início coincide
com o chamado "milagre brasileiro" e que teve certas
consequências no mercado de arte local, os artistas voltam
ao ensimesmamento e começam a produzir muito mais vinculados
ao mercado de arte ou à projeção de sua interioridade.
Nada tenho contra aqueles que o fazem, mas acho que o artista,
ao mesmo tempo que projeta essa interioridade, deve também
poder manter uma ligação efetiva com seu meio ambiente,
através de formas diferentes de participação.
Essas maneiras existem e constituem uma das formas de se sentir
vivo, atuante. No entanto, é raro encontrar um artista
plástico em espetáculo de teatro, em manifestações,
em debates sobre outros assuntos que não os ligados à
arte. Não sei por que existe esse isolacionismo do artista
plástico em relação à realidade do
meio em que vive. Onde estavam eles e de que forma transparecia
em sua obra, por exemplo, a emergência do sindicalismo em
fins da década de 70? Onde estão em suas obras,
as greves, o desemprego, o problema do transporte, da habitação
popular, do menor abandonado? Não existe porque o artista
não está presente e tudo é sempre justificado
porque ele projetaria uma outra realidade e participaria digamos
assim, da preocupação universal pela renovação
de linguagem. Em nome disso, ele se defende dizendo que não
tem nada a ver com a realidade do seu meio ambiente. Os que têm
essa preocupação são muito raros.
PAULO
- Eu vou tentar, para que tenhamos mais uma conversa com caráter
de debate, costurar algumas das questões que já
foram levantadas. Sobre a questão da produção
artística, diria que ela pode ser também compreendida
como um trabalho do homem e que pode apresentar seus desvios e
suas dificuldades numa situação repressiva, que
a humanidade inteira vive hoje, com muita angústia e muita
preocupação em organizar outras situações
de vida. Mas é preciso também acentuar que vivemos
um momento extraordinariamente interessante, porque é de
grandes modificações. É uma época
em que se pode dizer que o homem conhece a si mesmo como nunca
se conheceu antes. Nós conhecemos a natureza, que tem sido
historicamente um objeto da preocupação artística,
mas também conhecemos muito de nós mesmos, como
nunca antes na história. E o que é interessante
ressaltar é a questão da criatividade e da liberdade,
porque a manifestação artística é,
na verdade, uma manifestação que o homem exige para
o próprio exercício da vida. Ela é tão
diretamente ligada à invenção da vida, que
até se pode dizer que a história do homem é
a própria história da arte. Se o homem inventa a
vida que tem, o exercício da criatividade pode ser entendido
como o próprio exercício da liberdade. A produção
artística sob o aspecto formal, traduzida nos objetos de
arte, é apenas um testemunho, uma parte da manifestação
artística global. Esta última está em nossa
vida, na construção da vida do homem, no estabelecimento
de sua dimensão no mundo e no registro dessa dimensão.
FÁBIO
- O caráter revolucionário implícito na arte
é o seu próprio meio de produção,
que é, como Paulo acentuou, um processo eminentemente livre.
Ele é extremamente particular em relação
ao conjunto das demais produções, pois é
o artista que controla todo o conjunto, desde a idéia inicial
até o produto final. Este é um tipo de trabalho
que já não vamos encontrar em muitas áreas
da produção hoje. A pessoa envolvida num processo
industrial perde a noção do que está produzindo
e há sempre a separação entre quem decide
e quem produz.
É
nesse contexto que a questão do artesanato, focalizada
pela Aracy, assume especial importância, pois na arte erudita
se negligenciou uma coisa, que passou a ter um aspecto pejorativo,
que é a reprodução de uma experiência
através da cópia e sua socialização.
Essa é uma das características fundamentais do artesanato,
pois nele o conhecimento se socializa e passa a ser de todos.
Cito o exemplo do pintor Chico da Silva, cujo estilo foi imitado,
fazendo surgir em todo o Nordeste vários Chicos da Silva.
Enquanto
o artesanato valoriza a reprodução, a arte erudita
mostra verdadeiro pavor a isso, tem horror da semelhança
com outra experiência, pois a valorização
do artista nesse âmbito está ligada a um compromisso
radical com a inovação. Em consequência disso,
a leitura dessa obra de arte é cada vez mais difícil,
assim como sua comunicação, dando origem a um processo
de contradição muito dinâmico, que é
interno à própria linguagem. Creio que é
em função disso que o artista só consegue
agrupar em torno de sua obra parcelas cada vez menores da sociedade.
No
entanto, em relação às relações
do artista com o processo político, creio que a Aracy foi
um pouco radical, porque inúmeros artistas têm atuado
em ambas as áreas e se preocupado em fazer pronunciamentos,
hipotecar solidariedade etc. Mas de toda forma, creio que é
extremamente difícil para um certo tipo de produção
artística dar nas obras uma resposta imediata a questões
políticas, o que foi possível entre nós,
com os expressionistas da década de 40. Um caso mais próximo,
mas bem diferente, é o de Antônio Henrique Amaral,
com o quadro "A morte no sábado" em homenagem
a Vladimir Herzog. Ele não reproduz a figura de Herzog
torturado e nem transmite de forma realista a situação
da tortura e da morte, mas é tal a sua dramaticidade, que
só nos permite fazer dele uma leitura política.
A questão de como isso seria possível mesmo em obras
abstratas é o que eu coloco para o debate.
OLÍVIO
- Eu gostaria de ressaltar que estamos discutindo o papel social
das artes plásticas dentro de um conceito específico
da palavra social, esquecendo um outro sentido, igualmente válido
etimologicamente. Social vem de sócio, o que significa
a presença de uma outra pessoa e a possibilidade de um
diálogo. Então, pode-se dizer que qualquer obra
de arte está cumprindo um papel social no momento em que
alguém a contempla. Mas o sentido que estamos dando aqui
é de certa forma o de um papel de interferência,
modificação ou atuação sobre uma realidade
política dada. Não o considero menos válido
que o outro, mas tenho algum ceticismo sobre a possibilidade de
uma obra do âmbito das artes visuais desempenhar um papel
modificador da realidade social.
A
Aracy destacou o aspecto da incomunicabilidade e temos que concordar
com o fato de que a produção erudita é de
reduzido consumo e de reduzidíssima compreensibilidade,
porque circula numa esfera extremamente restrita da sociedade.
Por isso mesmo, suas possibilidades modificadoras são mínimas,
a não ser num sentido muito genérico. Ela modificaria
como qualquer outra atividade do espírito humano, no sentido
de que pensar sobre um problema já é modificá-lo,
mas não no sentido estrito de mudança da realidade.
O mero registro do problema social pelo artista não tem
esse poder. Mesmo se tomarmos o exemplo de um artista profundamente
preocupado com o registro do contexto social brasileiro, pode-se
indagar se seu trabalho muda alguma coisa desse contexto. Quantas
pessoas vêem o que ele pinta e destas quantas já
não conheciam o problema antes? Nesse ponto, eu gostaria
de repetir uma frase que li em alguma parte e acho que é
do crítico Frederico Morais: uma arte efetivamente democrática
só é possível na medida em que se democratiza
o próprio processo de sua fabricação. Então,
o que nós temos que fazer é lutar para tornar acessíveis
os processos de produção dessa arte, para que muitos
outros a executem e não cair na ilusória suposição
de que arte social é aquela que fala de problemas sociais.
O realismo socialista, que se institucionalizou na URSS, não
é arte política só porque mostrar camponeses
dirigindo tratores ou ceifadeiras. Tenho certeza de que a arte
de um Pollock, pelo impacto que produz em nós e em outros
seres humanos é muito mais política, porque revoluciona
muito mais coisas.
ARACY
- Apenas para responder a algumas das observações
feitas pelo Fábio e pelo Olívio, gostaria de dizer
que não posso considerar aceitável um realismo socialista
soviético, assim como me incomoda o desejo de americanização
das elites polonesas ou a tentativa de sovietização
de Cuba. Acho que não precisamos pegar modelos de fora
para saber o que devemos ou podemos fazer. Também não
acho que a figuração seja indispensável para
obter uma expressão dramática, embora não
se possa negar que a figura tem um maior poder de comunicação
e de impacto. Devido à minha preocupação
com a comunicabilidade, que está cada vez menor em relação
ao que chamamos de obras experimentais que se destinam a um público
restrito, creio que é muito importante uma arte vinculada
ao nosso cotidiano.
ANÉSIA
- Concordo com você, mas gostaria de acentuar que o problema
do hermetismo não pode ser dissociado de uma questão
política. Uma determinada arte chamada de elite dirige-se
à elite, a um segmento da sociedade que corresponde às
classes dominantes e enquanto não for rompido esse esquema,
dificilmente o problema será resolvido. Quem consome a
arte de elite é quem tem poder econômico, cultural
etc. Passo agora a palavra ao público.
PLATÉIA
- Não entendo toda essa mitificação em torno
do artista. Ele é apenas alguém que faz desenhos,
gravuras e pinturas e vive de sua venda.
OLÍVIO
- É óbvio que existem quem faça gravura e
viva disso, assim, como é óbvio que um artista pode
sê-lo sem fazer nada disso. Gostaria de fazer algumas observações
de senso comum sobre o que se entende por artista, que certamente
nada tem a ver com a mera produção de objetos consumíveis.
A arte pressupõe a colocação de um mecanismo
artesanal a serviço de alguma coisa que é mais que
isso. O artista cria um processo de percepção do
mundo que é distinto do processo de percepção
de outros sistemas. O que distingue o homem é a sua capacidade
de simbolização, tanto que hoje não se fala
mais em "animal racional", mas em "animal simbólico",
pois é essa capacidade que o distingue do resto dos animais.
Há muitos processos de simbolização como
a linguagem, o mito, a ciência. A arte é um desses
sistemas, não redutível a nenhum outro. É
um processo de conhecimento através do qual o processo
se apossa de um dimensão do universo.
PLATÉIA
- A respeito das observações de Aracy sobre a necessidade
de uma arte brasileira, acho que não é tão
fácil dividir o que é brasileiro e o que é
universal. Há uma troca constante, pois a gente vai pra
fora, aprende e volta para cá, mas também leva coisas
daqui para fora. O que eu sinto é uma falta de reflexão
dentro do espaço onde se estuda essas coisas. Será
que arte brasileira é bumba-meu-boi, arte "pop"
ou tudo isso?
ARACY
- Minha posição a respeito é de perplexidade.
No entanto, creio que só interessamos aos de fora, na medida
em que nos diferenciamos deles, na medida em que expressamos o
que somos. Mas certamente um dado muito importante que você
assinalou é o da heterogeneidade das realidades brasileiras,
pois vivemos num mosaico de culturas diversas. É nessa
heterogeneidade que está a nossa riqueza e é por
isso que insisto em que se deve respeitá-la e rejeitar
a possibilidade de adotarmos um padrão uniformizador, como
ocorreu nos EUA, que apresentam diferenças regionais bem
menores. Quanto ao bumba-meu-boi, o problema não é
o de reproduzi-lo na universidade, mas de aceitar nossas manifestações
de arte periféricas ou regionais. É isso que se
faz muito pouco. Eu sou professora de história da arquitetura
na FAU e posso dizer que a história que aí se estuda
é apenas a da arquitetura assinada, o que deixa de fora
uns 95% daquilo que se constrói em nossas cidades. Em vez
de considerar essas outras formas como igualmente válidas,
há uma tendência a desvalorizá-las, porque
foram feitas em mutirão ou por um empreiteiro anônimo.
ANÉSIA
- Quando você diz, Aracy, que devemos aceitar a arte popular,
gostaria que você respondesse, quem deve aceitar e se isso
significa dar acesso às bienais, exposições,
universidades etc.
ARACY
- Todos devem acertar, mas creio que o termo mais adequado não
é esse; tomar consciência da existência, seria
mais exato.
PAULO
- Toda vez que se faz distinção entre erudito e
popular, estabelece-se uma terrível confusão. Do
ponto de vista da criatividade, não existe essa distinção.
Isso não quer dizer que o intelectual deve fugir à
sua responsabilidade e negar a informação que tem.
Creio que nossa arquitetura atual se beneficiou e se informou
com o movimento chamado moderno. Mas tem traços peculiares
de uma capacidade inventiva que corresponde às necessidades
de nosso País. Essas necessidades influenciam da mesma
forma a arte popular. E se examinarmos a questão por um
outro ângulo, verificamos que a produção erudita
de certos artistas como Picasso ou Volpi, também se populariza.
FABIO
- A fronteira é realmente artificial e por isso acho perfeito
o conceito que o Olívio colocou de que arte é uma
forma de conhecimento ligada a determinadas estruturas simbólicas.
A arte popular, isto é, aquela que é produzida espontaneamente
em ambientes populares, pode apresentar um elevado grau de sofisticação
formal, o que invalida qualquer conotação pejorativa.
A
esse respeito, gostaria de contar a história do guarda
Benedito da Pinacoteca do Estado e de como ele se tornou artista.
Ele veio do Nordeste e foi contratado através de uma dessas
firmas que fornecem segurança. O que ele deveria guardar
era um edifício cheio de imagens, que contrastavam fortemente
com as que ele conhecia em seu lugar de origem. Como as pessoas
que ali vão, demonstram admiração ou respeito
por essas imagens, o guarda Benedito começou a tentar reproduzi-las
por meio do papel e do lápis. Mas ele escolhia não
aquelas que têm mais contato com imagens já vistas
e sim aquelas que lhe pareciam mais estranhas como obras modernistas
de Tarsila, Lasar Segall ou Gomide. Era uma forma de mostrar a
sua perplexidade, mas ele não as copiava literalmente:
as recriava e reinterpretava. O seu senso de perplexidade se dirigiu
a seguir para o próprio instrumento que lhe permite produzir
as imagens e ele desenhou o próprio lápis, reproduzindo
cuidadosamente um nome complicado - Johann Faber - embora não
saiba escrever. A etapa seguinte de Benedito foi a da perplexidade
diante da nova realidade urbana e ele começou a desenhar
o túnel da 9 de Julho, a avenida São João,
o que é uma forma de ajudá-lo a conviver com essa
nova realidade. E por fim, o próximo passo foi o de recuperar
o seu passado e começou a pintar cenas com pequenas casas
rurais e vegetação que lembra a do Nordeste. Ele
está agora nesse momento, mas fez tudo isso sem a menor
interferência de alguém da Pinacoteca. Creio que
essa história ilustra bem como a arte pode ser um processo
de conhecimento e de apropriação de uma realidade.
PLATÉIA
- Pergunto a Aracy Amaral como introduzir a arte popular num universo
de cultura de elite? Através da universidade?
ARACY
- Creio que a tomada de consciência sobre o valor da arte
das diversas camadas sociais é de suma importância.
As formas de se chegar a isso já existem e não são
nenhuma novidade. Em países como o México se desenvolve
há muito tempo uma política cultura nesse sentido.
E ela também é uma das preocupações
da Unesco. Aqui, acho que é uma experiência inovadora
nesse sentido, a criação de Museus de Rua por Júlio
Abe, que estabelece uma dialética nos dois sentidos, pois
os habitantes participam da criação das exposições.
OLÍVIO
- De repente, ocorreu-me uma idéia um pouco doida que lanço
aqui para o debate, sem pretender que ela seja uma verdade. Ao
ouvir a Aracy falar em trazer a arte popular para o âmbito
do erudito, através da recuperação por universidades,
museus e outras instituições, eu tive a sensação
brusca de que estava vendo um fenômeno já visto,
com sinal contrário. Há vinte anos atrás,
a tendência era tomar a arte erudita para levá-la
ao povo, uma coisa que obviamente não deu certo.
Fico
pensando até que ponto não corremos o risco de mergulhar
numa profunda nostalgia do pitoresco, disfarçada sob a
forma de uma pesquisa profundamente séria. A visão
que eu tenho a respeito de alguns especialistas da Unesco é
o de pessoas com uma mentalidade bastante colonizadora, que vão
à África para curtir o exotismo africano e depois
voltam falando em "recuperação" de bens
culturais perdidos. Só que eles não estão
nada perdidos em seu contexto original.
PLATÉIA
- Já que se falou tanto no problema da incomunicabilidade
de certas formas de arte, gostaria de perguntar se vocês
consideram o que se faz nos meios de comunicação
de massa como arte popular.
OLÍVIO
- Meios de comunicação de massa não produzem
arte: quando muito, veiculam alguns processos artísticos
já conhecidos e codificados.
ANÉSIA
- Voltando um pouco atrás, quando a Aracy disse que a arte
popular deve ser aceita no âmbito de universidades, museus,
bienais e outras instituições, parece-me que há
uma certa contradição em relação a
uma resposta anterior em que ela disse que todos devem aceitar,
isto é, os brasileiros em geral. Acontece que quem está
por trás dessas instituições não são
os brasileiros em geral, mas um segmento pertencente a determinada
classe.
ARACY
- Creio que a minha preocupação maior agora não
é com a arte "strictu sensu", mas a comunicação
em geral. Muitos artistas hoje preferem se chamar de comunicadores.
Por isso, não descarto a possibilidade de os meios de comunicação
produzirem formas de arte. O Ferreira Gullar, por exemplo, aceitou
escrever novelas para a TV Globo.
OLÍVIO
- Discordo totalmente. Quando o Gullar aceita escrever para a
Globo não está optando por uma forma de criação
de arte popular. Está simplesmente optando pela fabricação
de um produto de consumo a nível do gosto popular, o que
é coisa muito diferente. Ele está lá fazendo
um produto dentro das regras ditadas pela sociedade que vai consumir
esse produto e se não seguir os códigos do padrão
Globo, dançará.
FABIO
- Realmente, programas como "O Homem do Sapato Branco",
Zé Bétio ou Gil Gomes não produzem cultura
popular. Eles são apenas o resultado da manipulação
de uma elite, que usa canais poderosos para alienar o povo. Na
verdade, por trás dessa aparência "popular",
há padrões extremamente sofisticados, como pesquisas
de mercado e de audiência. Isso não é cultura
popular, pois esta não é manipulada, mas produzida
pelo povo para seu próprio consumo. Quando o Olívio
falou em inversão de sinais, ele quis colocar o perigo
de uma visão paternalista de intelectual pequeno-burguês,
que quer ser messiânico em relação à
arte popular, mas que pode também esconder a intenção
de manipulação do processo cultural. Nós
vemos isso claramente com o uso político que se faz da
música sertaneja, que perdeu toda a autenticidade, desde
que os seus cantores passaram a se apresentar em comícios
de políticos no poder.
Na
verdade, muito mais importante do que essa distinção
entre erudito e popular é constatar que a arte, assim como
a forma como a definimos e encaramos depende inteiramente do contexto
em que está inserida. E é esse contexto que vai
nos dizer se se trata de algo inovador ou reacionário.
Voltando ao exemplo dos artistas soviéticos, no contexto
deles, fazer arte abstrata é algo progressista, mas a mesma
coisa não ocorreria em outros contextos sociais em que
essa mesma manifestação de arte esgotou, num momento
dado, as suas potencialidades. Pode-se dar uma leitura artística
ou incorporar à arte manifestações muito
diferentes e é o contexto social mais amplo que vai traçar
os parâmetros dessa leitura. Não se pode falar em
arte como uma entidade abstrata separada do contexto em que se
insere. As conclusões absolutas não existem, mas
se quisermos tirar a arte das salas em que está confinada,
um dos caminhos é justamente o de multiplicar os debates
e tentar levar para fora o que se discutiu hoje aqui.
ANÉSIA
- Acho que para fazer com que o debate saia desta sala, é
preciso mudar a sociedade.