A ATUALIDADE DE MARX
A qualidade do pensamento de Marx nasce de uma necessidade
que brota de nossa presente situação econômica,
cultural e política. Há um fazer que precisa ser feito
e um modo de ser que precisa ser recuperado, em toda sua plenitude,
na reflexão filosófica, na investigação
científica e na atividade política íntegra
e radical.
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Publicado
na Folha e S.Paulo, domingo, 13 de março de 1983
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Há cem anos de sua morte, a presença ativa de Karl Marx
irradia-se como uma força viva e criadora. Ele não figura,
apenas, como um clássico, entre os fundadores das ciências
sociais e do comunismo. É um cientista social e um pensador
comunista com o qual impõe-se dialogar: os problemas que ele
debateu, os procedimentos de investigação e de ação
revolucionária que perfilhou e as conclusões a que chegou
fazem parte dos quadros de reflexão científica e de
atividade política revolucionária que se reconstituem
a cada instante. Como clássico, ele exige atenção
meticulosa e ela se revela à esquerda, à direita e ao
centro do espectro supostamente neutro ou francamente ideológico
dos estudiosos. A sua importância é tão grande,
que as coisas não poderiam ser diferentes: ele subsiste como
um autor em estado de perene originalidade diante da qual a condição
de clássico fica em segundo plano e o contemporâneo voltado
para a frente ganha relevo central.
O tema que me foi proposto, a atualidade de Marx, precisa ser enfocado
à luz dessa crucial situação histórica
concreta. Autores importantes, alguns decisivos - todos clássicos
- viram-se instalados em nichos mais ou menos confortáveis
ou postos em fichário. O mesmo sucedeu com grandes figuras
- anteriores ou posteriores a Marx - na liderança do movimento
proletário, do socialismo reformista e do comunismo. Não
estão esquecidos e tampouco ignorados. Apenas, não fazem
parte do cotidiano, da história em processo, dos ódios
e das paixões que sacodem um mundo político em convulsões
turbulentas, da necessidade de escolher e de acertar com referência
ao nosso tempo. Ao contrário do que muitos afirmam - e gostaria
que fosse verdade - as transformações do capitalismo
e as revoluções proletárias que levam ao socialismo
de transição não sepultaram Marx, não
removeram o seu pensamento teórico e prático da cena
histórica. Tornaram-no uma viga-mestra ainda mais decisiva
e converteram a defesa do "marxismo" em um exercício
obrigatório, que ocupa milhares de cabeças privilegiadas
e impulsiona os movimentos revolucionários mais puros e ardorosos.
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Uma
suposta nova realidade |
Pelas contas de muitos ensaístas e publicistas e, também,
de acordo com o que prevalece naquilo que se poderia descrever com
o "pensamento oficial" do mundo acadêmico, o capitalismo
de hoje nada tem a ver com "o capitalismo de Marx": no centro
e na periferia, mudaram a tecnologia e a escala da produção,
as estruturas sociais que movimentam toda a economia, em âmbito
nacional e mundial. Para eles, até as classes e a exploração
capitalista impiedosa teriam desaparecido, como uma triste fase histórica
da industrialização incipiente da Europa. Redistribuição
da renda, revolução do consumo, crescimento das classes
médias, universalização das garantias sociais
e dos direitos civis e políticos, democratização
da cultura e de um nível de vida "humano", internacionalização
do sistema de produção e de poder do capitalismo, modernização
do Estado representativo, conjugado à responsabilidade da iniciativa
privada e à ação participatória das massas,
teriam engendrado uma nova realidade histórica. Na forma e
nas estruturas a sociedade capitalista do século 20 teria se
livrado dos anátemas das "doutrinas de Marx". Por
sua vez, as grandes revoluções proletárias caíram
nos impasses do socialismo difícil. Contudo, elas também
seriam um bom termômetro negativo. Primeiro, das alterações
do mundo moderno e da direção para as quais elas caminham.
Autores famosos demonstraram, pela comparação "empírica"
e pela reflexão amparada em dados estatísticos, que
os dois mundos, o capitalista e o socialista, caminham no mesmo sentido
e, no essencial, buscam objetivos análogos. Ambos são
sociedades industriais e se distinguiriam somente pelas diferenças
existentes no controle do trabalho ("democrático"
ou "autoritário") e pela capacidade maior do capitalismo
de afogar a população trabalhadora no ópio do
consumo em massa e dos prazeres da vida. Ambos são sociedades
conformistas, submetidas a "tecnoestruturas" eficientes,
que extinguiram as contradições sociais (ou as congelaram
historicamente), e lograram conter os conflitos nas "relações
humanas". Portanto, no ápice das grandes transformações
da civilização moderna, a história teria desaparecido
como realização coletiva dos seres humanos. Sob o capitalismo
monopolista ou sob o "socialismo real", não existiria
mais história.
Essa terrível mistificação que esconde tantas
ilusões e confusões, se pudesse conter um só
grão de verdade, justificaria a idéia de uma longa e
tenebrosa "Idade Média moderna", como subproduto
da civilização industrial. Os seres humanos chegaram
até aqui e pararam! Algo mais espantoso que a Torre de Babel
tomou conta da humanidade, reduzindo-a a um cativeiro dourado, que
não ergue nenhuma esperança substantiva quer aos reacionários,
quer aos revolucionários. O fim do mundo, não pelo dilúvio
- mas pela paralisação do ser humano como entidade racional
e moral e da sociedade como elemento impulsionador da mudança
social progressiva ou revolucionária. Na verdade, esse é
o limiar mais tétrico do "diálogo absurdo"
com Marx. Uma condição relativa e provisória
das sociedades capitalistas e das sociedades em transição
para o socialismo foi absolutizada e estabilizada, à luz de
um irracionalismo total, que concede à barbárie sublimada
e à alienação o caráter de estado permanente
e insuperável da vida humana sobre a Terra.
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A
razão ideológica absoluta |
Essa compreensão deformada e catastrófica de uma situação
histórica tão rica de potencialidade e de promessas
- por isso mesmo tão dramática e cheia de dilemas humanos
- não só responderia ao pensamento teórico e
prático de Marx, liquidaria com ele. A sociedade capitalista,
cuja produção e reprodução ele estudou
tão cuidadosa e rigorosamente, terminaria nesse melancólico
apodrecimento universal, que atingiria a todos e estabeleceria uma
nova meta à civilização moderna em convulsão:
a robotização global. A perversidade da tecnologia e
da ciência só teria paralelo na perversão do ser
humano, na vitória final da dominação, na arregimentação
dissimulada ou declarada como estilo de vida, reduzindo-se a complicada
matriz da sociedade humana em sucedâneo da colméia ou
do formigueiro. A liquidação de Marx seria completa,
pois "as evoluções sociais" deixaram de ser
"revoluções políticas", porém
sem o aparecimento de uma forma comunista de associação,
que extirpasse a desigualdade e a violência, as substituísse
pela auto-regulação e auto-administração
dos assuntos coletivos pela comunidade.
Evitei recorrer as citações. Poderia formular uma lista
de referências que, da extrema direita à ultra-esquerda,
arrolaria os principais nomes dos filósofos, cientistas sociais
e homens de ação que compartilham essa visão
"sincera" da realidade. É claro que esse estado de
espírito não constitui um produto da necessidade de
combater Marx ou de comprovar que a "evolução real"
está saindo às avessas de sua previsão. De fato,
esse pessimismo subliminar se equaciona como uma "síndrome
de decadência de uma civilização". Ele não
é um espelho da perversão humana; apenas retrata uma
espécie de moléstia intelectual madura, que compele
as melhores cabeças a cultivar certos demônios da inteligência,
quando esta se enrosca na irracionalidade do mundo.
Quando a ideologia sobe tanto à cabeça que nem a observação
de senso comum, nem a tecnologia mais sofisticada, nem a ciência,
nem a filosofia, nem a arte, nem a prática política,
nem a religião, isoladas ou em conjunto, conseguem preservar
os limites da autonomia relativa do ideológico, a razão
perde toda relação instrumental com o real e todos os
discursos acabam padecendo da mesma conturbação mental.
Só os historiadores, em parte, e os antropólogos, numa
escala menor, escaparam a essa síndrome de perversão
da razão, por ventura porque se desprenderam menos da tirania
dos fatos concretos. A razão ideológica absoluta impera
em todos os domínios e instrumentaliza todos os meios de conhecimento
formal, funcional ou sistêmico, imprimindo à crise da
civilização burguesa o caráter de um cataclismo
de fim do mundo e do gênero humano - algo que só a razão
ideológica absoluta pode trabalhar tranquilamente e transubstanciar
em uma realidade não-ameaçadora.
Esse esboço mais ou menos livre e reconhecidamente incompleto
nos põe na cola de Marx. O que se pode retirar, como conclusão,
não é que seja preciso, como auto-defesa, ler e reler
Marx, converter seus escritos em um catecismo. O que se evidencia
é a necessidade de restabelecer por completo as preocupações
que animaram as obras que escreveu sozinho ou em colaboração
com F. Engels, de 1843-1844 a 1850, e, principalmente, a orientação
que imprimiu às suas investigações científicas
e às suas atividades revolucionárias posteriores. A
atualidade de seu pensamento teórico e prático nasce,
em suma, de uma necessidade que brota de nossa presente situação
econômica, cultural e política. Nada de um "imperativo
de ilustração", de um "modelo a seguir"
ou de "doutrinas a completar" (ou criticar, com base nas
condições que enfrentamos). Tudo isso surge como coisas
que se fazem naturalmente e que devem prosseguir. Mas que não
definem a relação peculiar de Marx com a era atual.
Há um que fazer que precisa ser refeito e um modo de ser que
precisa ser recuperado, em toda a plenitude, na reflexão filosófica,
na investigação científica, na atividade política
íntegra e radical. É como se, nos dois extremos de um
"continuum" histórico, o que marca a época
formativa do modo específico de produção capitalista
e o que retrata sua época de declínio, a inteligência
revolucionária devesse desempenhar funções basicamente
idênticas e homólogas.
Necessitamos, de novo, de um pensamento crítico que seja capaz
de superar a filosofia em favor da ciência, mas sem abandoná-la,
suficientemente compreensivo e objetivo para articular entre si uma
atitude materialista consistente, o método científico
mais rigoroso e a análise dialética objetiva das categorias
de representação e de explicação do real.
Em suma, necessitamos de uma ciência social histórica
que abarque a totalidade da situação humana, que possa
apreender a um tempo natureza e personalidade, estrutura e dinamismo,
economia e sociedade, ideologia e verdade, o movimento histórico
efetivo como ligação entre passado e presente e como
criação incessante de um futuro novo, pelo qual a negação
do presente apareça como abolição revolucionária
da situação existente pela atividade coletiva dos seres
humanos. Uma ciência social histórica que combine, intrínseca
e objetivamente, a crítica de si mesma como conhecimento à
crítica da ordem existente tal como ela se produz pela luta
de classes, pela desalienação ativa e pela autoliberação
coletiva dos oprimidos, ou seja, que se manifeste univocamente como
teoria e prática, como expressão autêntica da
verdadeira ciência em sua capacidade de transcender o enquadramento
ideológico burguês e de fazer parte do "movimento
que abole o presente estado de coisas", isto é, de ser
comunista, de identificar-se com a situação social de
interesses de classe dos trabalhadores com o que ela significa para
o advento e o desenvolvimento de um novo ciclo histórico revolucionário.
No ponto de partida da ciências sociais, a ideologia de classe
dominante converteu o economista, por exemplo, em "sacerdote
da burguesia". Todavia, o economista distorcia a realidade, mas
era possível chegar a esta através da crítica
do conhecimento teórico deformado que ele produzia. Dominação
ideológica e hegemonia de classe cruzavam-se de tal modo na
cena histórica, que a instrumentalidade da ciência nas
duas direções assegurava à economia política
um mínimo de veracidade (embora essa fosse, apenas, uma veracidade
de burguesa). Nas condições objetivas que cercam o capitalismo
monopolista da era atual (que outros preferem chamar de capitalismo
tardio) não existe mais um espaço histórico que
permita restringir a deformação do conhecimento na esfera
das ciências sociais. A objetividade torna-se em si mesma incompatível
com a dominação ideológica da burguesia e a sua
hegemonia de classe exige uma conversão imediata da ciência
em técnica social de controle (como meio de obter consenso
ou de dissociar o comportamento das massas de qualquer objetivo independente).
Instaura-se, assim, uma evolução regressiva, graças
à qual se dissolve a substância do método científico,
embora se mantenham todas as aparências que infundem ao "conhecimento
científico" a categoria de uma forma específica
de saber. O paradigma de explicação das ciências
sociais ou fomenta os "procedimentos empíricos" (naturalmente
necessários à coleta de informações indispensáveis
para qualquer técnica social de controle); ou exalta os "procedimentos
sistêmicos", pelos quais a história é volatilizada
e a ciência é convertida em equivalente das divagações
filosofantes.
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A
crise das ciências sociais |
A regressão apontada está aí: o novo "sacerdote
da burguesia", o cientista político, por exemplo, opera
com um jargão abstrato e formal, reduz a análise funcional
a uma operacionalização de categorias mentais arbitrárias
tomadas como "axiomáticas", e converte a perspectiva
comparativa em uma sala de espelhos. O que resulta não é
um saber filosófico deturpado pela pretensão científica
- é um idealismo inconsequente, que restabelece o primado da
filosofia do espírito, destituindo-a, porém, de qualquer
modalidade de razão filosófica e de consciência
histórica.
É óbvio que o retorno a Marx não poderia deter
semelhante deterioração fantástica das ciências
sociais. Estamos diante de um processo histórico: a crise das
ciências sociais reflete e acompanha a crise da civilização
burguesa. No entanto, através de Marx resguarda-se o que essa
crise não pode nem deve afetar, como a proposta de uma ciência
social histórica rigorosa, precisa e implacável, que
não se omita diante de tal crise pela fútil negação
do tempo histórico, pelo esvaziamento da realidade e pelo repúdio
da causalidade concebida em termos materialistas e dialéticos.
Mas que esteja calibrada para crescer embrenhando-se em tal crise,
buscando o seu ponto de superação, o qual liga, naturalmente,
estrutura e história, teoria e prática, ciência
e revoluções, dissolução da civilização
burguesa e constituição de uma nova civilização.
Além disso, a referência a Marx (e o discernimento do
que representa, atualmente, a sua solução do problema
da explicação nas ciências sociais), abre um campo
construtivo para a avaliação do "marxismo envergonhado"
ou das várias modalidades ecléticas de "terceira
via", que exprimem a intenção de conciliar as "vantagens
da democracia" com a "necessidade do socialismo".
Existem diversas tentativas - intelectualmente atraentes, mas científica
e politicamente inconsistentes - de "sociologia crítica",
de "sociologia participante" e, de " sociologia insurgente",
por exemplo, que são importantes como indícios da fragmentação
da ideologia burguesa e da vulnerabilidade da hegemonia de classe
da burguesia. Elas não contêm, porém, qualquer
organicidade científica. Chega-se, inclusive, ao paradoxo da
condenação unilateral da ciência e da tecnologia
científica, com base na dominação a que dão
lugar, sem evidenciar-se o outro lado da medalha. O que a ciência
e a tecnologia científica significam como ruptura e transferência
dessa dominação? A compreensão de Marx equilibrava
os dois pratos da balança, como o demonstram os manuscritos
de 1844!
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Marx
não é um vidente |
É preciso não esquecer que Marx operou com as condições
objetivas da produção e da reprodução
do modo especial de produção capitalista. Ou seja, ele
apanhou o capitalismo em um momento que permitia considerar todos
os dinamismos fundamentais desse modo de produção: os
de sua constituição e transformação e
os de sua negação, dissolução e superação;
portanto, tanto os que levariam ao período de transição
socialista, quanto os que iriam exigir, mais remotamente, o advento
do comunismo. Hoje, o problema central seria o de investigar mais
intensamente as revoluções proletárias, as contradições
do chamado "socialismo difícil" e o que retarda e
por que o advento do comunismo. Um verdadeiro "diálogo
com Marx" teria de surgir nessa confluência da investigação
científica com o desenvolvimento histórico e os fins
essenciais do socialismo. A insistência nas sistematizações
do pensamento de Marx e a propensão a cultivar uma espécie
de "escolástica marxista" nada tem a ver com as premissas
filosóficas, científicas e comunistas compartilhadas
por K. Marx e F. Engels. Nada lhes era mais alheio que essa forma
pseudo-revolucionária de fomentar academicamente o "marxismo".
Ambos travaram o combate proletário direto e cotidiano. Qualquer
"avanço do marxismo" que não percorra este
caminho não passa de mero exercício intelectual.
É essencial, pis, que se tome a atualidade de Marx sob o ângulo
indicado. Não pela espantosa irradiação de influências
diretas e indiretas que se descortinam. Mas, precisamente, porque
só assim se evidencia o quanto o pensamento teórico
e prático de Marx continua plenamente vivo... e atual! Durante
a elaboração de "O Capital" e posteriormente,
Marx foi levado a estudar seriamente as relações do
crescente mundo colonial criado pelo industrialismo com as tarefas
centrais do movimento proletário e socialista na Europa. Que
sirva de exemplo o seu penetrante estudo da questão irlandesa.
Ele considerava vital que o proletariado inglês compreendesse
e se solidarizasse com a causa dos camponeses irlandeses. Não
via como quebrar a aliança entre aristocracia e burguesia industrial
e derrotar a hegemonia burguesa na Inglaterra sem que o movimento
proletário destruísse o terrível foco colonial
que o manietava, a partir da Irlanda. Portanto, não se tratava
apenas de fazer o diagnóstico da "aristocracia operária"
ou de verificar como as classes trabalhadoras da metrópole
entravam no rateio desigual do espólio colonial. Mas de impedir
a própria deterioração do movimento operário
e o seu aburguesamento progressivo, a ignorância do que é,
na realidade, a dominação de classe sob o capital industrial:
e, de outro lado, o que é e o que implica a firme independência
de classe do proletariado. O capitalismo monopolista e o seu padrão
de imperialismo se tornaram possíveis graças, entre
outras coisas, a uma solidariedade da classe operária que se
esfarelou por causa de interesses imediatistas, miúdos e destrutivos.
Nada melhor do que partir do próprio Marx para entender-se
quão difícil e complicado vem a ser o período
de transição para o socialismo. A conquista do poder
pela maioria não é um ponto final, mas um ponto de partida
delicado e complexo, inicialmente emaranhado em interesses, convenções
e instituições sociais, herdados de estruturas de classes
antagônicas que não podem ser extirpadas em um "fiat".
É fascinante acompanhar a clareza com que certas premissas
da dissolução da sociedade burguesa levaram Marx a reflexões
tão penetrantes - e que se iriam mostrar mais tarde, em quadros
históricos tão distintos, inquestionavelmente exatas.
Todavia, o que coloca Marx em nossos dias não é a sua
capacidade de previsão. Mas o fato de que tenha extraído
objetivamente, do movimento comunista visto como abolição
de um dado estado de coisas, qual era a essência e o próprio
vir a ser do período de transição. Ao contrário
do capitalismo, o socialismo não teria a escorá-lo uma
ordem social estavelmente fixada no solo histórico. Ele teria
de diluir-se, como negação da ordem burguesa e de si
próprio, mera antecipação parcial e provisória
de uma ordem social que só seria instituível e persistente
depois do advento do comunismo (ou seja, depois que o próprio
socialismo fosse dissolvido e superado). Aqui temos uma ampla perspectiva
para entendermos o nosso presente e, também, o futuro que ele
reserva à humanidade, independentemente das visões cataclismicas
que pontilham, nos círculos burgueses ou semiburgueses, as
avaliações derrotistas do "socialismo real".
É claro que essa representação compreensiva do
enlace entre transformação e dissolução
do capitalismo, emergência, natureza e duração
do socialismo, advento e significado do comunismo se assenta sobre
uma sólida identificação com o pólo operário
da luta de classes e com a estratégia da luta de classes do
ponto de vista de uma prolongada "revolução total".
Porque Marx não era, simplesmente, um visionário (como
pretendem certas fórmulas, que reduzem o marxismo à
"sua época") e porque ele encarava a revolução
como um processo de dissolução de uma determinada forma
antagônica de sociedade de classes, e de constituição
de uma sociedade sem classes, ele era capaz de diagnosticar as debilidades
estruturais do movimento operário e indicar como e onde este
poderia sofrer os percalços de um enfraquecimento paralisador.
Contudo, se a contra-revolução vencesse, ela poderia
anular tudo - extinguir a história e pôr a sociedade
burguesa a salvo de qualquer risco? Esse assunto foi aquele ao qual
Marx devotou a maior soma de análises históricas (e,
também, aquele que abrange situações mais contrastantes,
como as que dizem respeito às revoluções de 1848-49
à Comuna de Paris). A revolução não é
um acidente histórico e a "verdadeira revolução"
só se produzirá se as classes trabalhadoras souberem
defender com intransigência os seus interesses reais na luta
contra a velha sociedade. No entanto, a contra-revolução
não interrompe o fluxo revolucionário, que aguarda nas
estruturas mais profundas da sociedade o momento de eclosão
histórica. Ela adestra as classes para uma luta mais ou menos
terrível e, em particular, ensina aos assalariados o que podem
esperar nos limites da democracia burguesa. De outro lado, a contra-revolução
também abre, dentro e através dos antagonismos de classes,
as vias reais de sua relação dialética com o
movimento revolucionário. Este não é destruído:
é, por assim dizer, amoldado às condições
concretas, dentro das quais terá de desenvolver-se pela atividade
inconformista indestrutível das classes oprimidas. O oprimido
é o principal elemento dissolvente, produzido pela ordem social
capitalista, e dele dependerá a destruição dessa
ordem social e os surtos subsequentes da civilização.
Essa concepção antiintectualista e proletária
da revolução social fez de Marx o representante de uma
forma de comunismo que tinha mais que ver com o futuro distante, que
com o presente imediato. Ela tornou o seu pensamento teórico
e prático, perene e atual por um longo período de tempo,
que iria desdobrar-se do século 19 para o século 20
(e, como constatamos agora, para o século 21). O precursor
de uma nova ciência, de uma nova revolução e de
uma nova era. Em síntese, o único pensador moderno que
não envelheceu, por ser intrinsecamente radical e revolucionário.
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