CÉLINE: SOBRE O ESTILO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 18 de março de 1984


Tradução e nota introdutória de Leda Tenório da Motta

O texto que se segue, uma aula magistral sobre o estilo por Louis-Ferdinand Céline, foi gravado em disco, a convite, em outubro de 1957. Três anos antes da sua morte, seis depois de ter sido anistiado por um tribunal militar. Num momento em que, entre a repulsa e a fascinação, as Letras francesas se reaproximavam do grande escritor, prêmio Renaudot em 1932, foragido na Liberação, por sete anos exilado, condenado à revelia e saqueado, contingências de uma passagem sacrificial pelo opróbrio da guerra. Na outra face do disco, editado para uma coleção por nome "Leur oeuvre et leur voix", Pierre Brasseur e Arletty lêem extratos de "Voyage au bout de la nuit" (sem tradução em português) e "Morte a crédito" (Nova Fronteira). A fala foi transposta para o volume "Céline II" da Pléiade, coleção em que Céline entrou, ainda em vida, no ano de 1960.

Ouvir Céline: privilégio quando os "panfletos" continuam censurados, inconsultos e inconsultáveis. Escondidos, como uma vergonha. Os panfletos que não destoam da obra celiniana. Exorbitantes como os romances, igualmente chocantes, febris, aliciantes, "fascistas", como se diz. Na realidade, é toda a obra de Céline que continua sob censura, vagamente encoberta pela desculpa da "ficção". Como se os panfletos não fossem, produtos da mesma febre, outras tantas ficções. "Morte a prazo" ou "Bagatelas", pouco importa. A abjeção que destilam os escritos celinianos não conhece limites. Céline é todo ele abjeto, antes, durante e depois de Vichy, a época dos panfletos. Céline é desde sempre "panfletário". Por sorte, teria estado militando em causa errada. Por sorte também, nenhum outro gênero narrativo, a ler-se a história da prosa francesa depois de Proust, esteve tão à altura do momento dito histórico. Céline, por circunstância, estava na linha da guerra moderna. Como Proust, o mestre tácito, na do salões. E ao apocalipse da guerra convinha o surto celiniano. Uma histeria guerreira, já se disse. A manifestação, a epifania do horror. Fascista? Antes "poeta". Não há ideologia possível em Céline, sequer o anti-semitismo, a questão mais do que delicada a que se tem remetido os panfletos. Pois que revelação haveria de se apoiar na sua verve relaxada, incontrolável e tresandada - de resto, reconhecidamente, para o seu próprio escarmento? "Idéias, nada de mais vulgar", afirma Céline no disco. Céline: um panfletário sem idéias. Uma retórica sem demonstração. É esse o "estilo Céline". Pontuado a reticências iradas, e a marcas de exclamação. Pontos de emoção. Estilo é trabalho e emoção, dita ao gravador. Num momento em que, curiosos, perplexos, admirados, os jornalistas iam procurá-lo em Meudon. Essa não terá sido a hora do desagravo. Vamos ouvir Céline?


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Pois bem! Depois de passar por tantos lugares, de viver nos climas os mais diferentes, e nas mais diferentes situações, querem agora que eu dê as minhas impressões sobre as minhas grandes obras, numa atmosfera de cadeira elétrica...

Mas isto não vai me desconcertar de jeito nenhum, eu vou dizer tudo o que penso e ninguém vai me impedir de falar. Sabem, eu vou direto ao assunto, porque essas coisas saem caro, é preciso medir as palavras - vamos ao que eu tenho a dizer, pelo que sei e pelo que li. Nas "Memórias" de George Sand - não se lê muito George Sand mas ainda se lê um pouco as "Memórias", eu pelo menos as li - há um capítulo notável onde, moça, ela defende, sôfrega de vida, idéias de esquerda, de extrema esquerda, até, para a época. Pelo seu nascimento e pela sua notoriedade - como se sabe era uma bisneta do príncipe de Saxe - ela tinha acesso aos grandes salões, principalmente àqueles em que se reuniam ainda os representantes da antiga aristocracia - mas da verdadeira! -, que existia ainda, a duras penas, desde a corte de Luís 16 e mesmo de Luís 15. E ela contemplava esses representantes da aristocracia com espanto enorme: a maneira como gesticulavam, como se mexiam, como serviam seus petis-fours, como estendiam cadeiras, ou as retiravam, como enfiavam suas perucas por entre os seios das damas, quando não sob seus traseiros, em graças e fricotes mil... Espantava-se de ver esses exemplares de uma época revolta fazer tanta careta. Pois muito bem, pessoalmente, acho esse capítulo essencial. E acho também que o próprio Proust serviu-se dele à vontade no capítulo famoso em que vemos os seus personagens envelhecer; o capítulo é realmente famoso mas, neste ponto, acho que George Sand o antecedeu; trata-se, realmente, de um grande trabalho literário. Pois bem, eu tenho a mesma impressão quando leio um livro; a impressão de estar vendo gente fazer careta. Eles fazem micagens completamente inúteis. Eles não vão diretamente ao assunto, desmancham-se em rodeios, avançam cadeiras, fazem preâmbulos, mas não tocam diretamente no ponto sensível, não é mesmo? Na emoção. Isto não tocam. Aí está: para ser sincero, eu pego os romances dos meus contemporâneos e penso: "Isto já é algum trabalho, mas um trabalho inútil." É isso o que eu penso. Porque eles não estão à altura, nem no tom da sua época. No tom da época, meu Deus... Pois bem... É preciso levar em conta que o romance, já que de romance se trata, e que é sobre ele que me pedem para opinar, já não tem mais a missão que tinha; ele já não é mais um órgão de informação. No tempo de Balzac, aprendia-se a vida de um médico rural em Balzac; no tempo de Flaubert, a vida do adultério em Bovary, etc, etc... Hoje, estamos enfronhados nesses tópicos, mais que enfronhados: graças à imprensa, aos tribunais de justiça, à televisão e às enquetes sócio-sanitárias. Ah! Histórias é que não faltam, nem documentos, nem fotografias... Já não precisamos mais disto. Acredito que o papel de documento, mesmo o papel psicológico do romance esteja encerrado, eis a minha impressão. E o que lhe restaria, neste caso? Pois bem, pouca coisa: o estilo, e mais as circunstâncias em que um tipo possa se encontrar. Proust, naturalmente, encontrava-se na sociedade, ele vai falar dela, não é mesmo? Do que lhe era dado presenciar, acrescido de pequenos dramas da pederastia. Muito bem. Trata-se de se postar na linha em que a vida nos coloca - e de não sair mais dali, de modo a recolher, e a transpor para o estilo. Agora, em matéria de estilo... O estilo desse tipo de coisa surge no mesmo tom do bacharelado, do jornal de todo dia, no mesmo tom da apelação judiciária, quer dizer, em estilo verbal, eloquente talvez, mas seguramente nada emotivo. Eu vejo a coisa como os impressionistas deviam ver os pintores de sua época, que aliás os pagavam na mesma moeda. Com toda certeza, aos olhos de um impressionista, a igreja de Antuérpia por um pintor da época, ainda que um bom pintor, não haveria de ser exatamente um Van Gogh. E reciprocamente. "Mas é um horror, é um malfeitor, é preciso matá-lo", haveria de dizer o pintor do impressionista. Pois muito bem, isto é o que ainda se diz dos meus livros, com toda certeza.

Digo que o que se escreve são romances inúteis porque o que conta é o estilo e, diante do estilo, ninguém quer se curvar. É uma coisa que pede muito trabalho e as pessoas não são trabalhadeiras, elas não vivem para trabalhar, vivem para gozar a vida, o que não deixa tempo para o trabalho. Os impressionistas eram grandes trabalhadores. Sem trabalho não se pode fazer grande coisa. Fica a eloquência natural: o que é realmente muito ruim. É preciso que a coisa fique na página. E ficar numa página é coisa que pede um trabalho enorme.

Acho que neste ponto há algo a criar, inteiramente, um estilo. Pois bem, no caso dos estilos, não existem muitos numa época, sabem? Sem querer ser muito pretensioso, não existem muitos. Três ou quatro por geração - é preciso dizer a verdade, e se não sou eu a dizer ninguém dirá. Eles se tornam logo decadentes, não duram mais que um momento. Existe uma noção da vida, uma filosofia geral, que quer que a vida seja eterna, que ela comece aos sessenta, aos cinquenta anos... Não! Não! A vida é passageira! É o tempo quem rege, e ele não dura para sempre. George Sand ria daqueles velhos trejeitos dos antigos cortesãos. Mas se a víssemos hoje ela própria nos pareceria perfeitamente ridícula. Existe, pois, um tempo, um tempo preciso. Vejam as grandes histórias. O que é que se sustenta no teatro? Pouca coisa. Voltamos sempre a Shakespeare, forçosamente. Shakespeare tem o hábito por si, isto o salva. Ele está fora de sua época. Neste ponto, ele ganhou. No entanto, uma encenação de Shakespeare em trajes civis seria péssima, sem nenhum efeito. Tudo concorreria para isso.

Mas diz-se: o romance de Céline é uma coisa que irrita, é enervante, etc: porque não é no estilo bacharel, no estilo aceito, o estilo do jornal, o estilo judiciário. Estilo que se impõe verdadeiramente, formalmente, e que fica, vai ficar para sempre, vou dizer a razão.


Fora do esquadro

Volto a esse estilo. Ele vem de uma certa maneira de se forçar as frases, de tirá-las ligeiramente de sua significação habitual, de tirá-las, por assim dizer, do esquadro, de se deslocar as frases forçando o próprio leitor a deslocar o sentido. Mas muito ligeiramente! Muito ligeiramente! Porque sem leveza, tudo isto é uma gafe, não é mesmo? A gafe! Então, a coisa pede um enorme recuo, sensibilidade, e isto é muito difícil de se conseguir. É preciso girar em torno. Em torno de que? Da emoção.

É neste ponto que eu volto ao meu grande ataque contra o Verbo. Vocês sabem, nas Escrituras diz-se: "No princípio era o Verbo". Não! No princípio era a emoção. O Verbo veio depois para substituir a emoção, assim como o trote substituiu o galope, quando a lei natural do cavalo é o galope. O trote foi-lhe imposto. Ao homem, fizeram-no passar da poesia emotiva para a dialética, quer dizer, para a verbiagem, não é mesmo? Ou para as idéias. Idéias, nada de mais vulgar. As enciclopédias estão cheias de idéias, quarenta volumes, repletos de idéias. Muito boas, por sinal. Excelentes. Em seu tempo. A questão não é essa. Isso não é minha alçada: idéias, mensagens. Eu não sou um homem de mensagens. Não sou um homem de idéias. Sou um homem de estilo. E o estilo, meu Cristo, todo mundo pára nele. Porque é um trabalho duro. Ele consiste, como eu dizia, em tomar as frases e tirá-las do esquadro. Ou por outra: se vocês querem que um pedaço de pau pareça reto na água, é preciso entortá-lo antes porque a refração faz com que, na água, ele pareça quebrado. É preciso quebrar o pau antes de mergulhar na água. Isto é um verdadeiro trabalho. É o trabalho do estilista.

Muitas vezes as pessoas vêm me procurar para dizer: "Você parece escrever com facilidade." Não! Eu não escrevo com facilidade! Só escrevo com muita dificuldade! De mais a mais, escrever é algo que acaba comigo. É preciso que a coisa se faça com muita, muita fineza, com muita delicadeza. É preciso umas 80.000 páginas para fazer 800 de manuscrito, onde não se vê o trabalho. Ao leitor não cabe vê-lo. Não é da sua conta o que se passa nos porões ou no tombadilho da embarcação - que ele não sabe dirigir. Tudo o que lhe compete é gozar. Deleitar-se. Ele comprou o livro e deve se deleitar. O meu dever é causar nele esse deleite, e para isso eu trabalho. Para poder ouvir dele: "Ah! Foi o Senhor que fez isso... Ah! como é fácil! Meu Deus, se eu tivesse a sua facilidade!" Só que eu não tenho a menor facilidade. A menor Tem gente muito mais dotada do que eu. A única diferença é que eu trabalho. E trabalhar é uma coisa que eles não querem, eles não querem se concentrar. É esse o negócio.

Mas alguém haverá de dizer: "Céline não faz senão botar três pontos, três pontos... "Sabem, os impressionistas também botavam três pontos. Seurat botava três pontos em tudo; ele achava que isso arejava, que assim a sua pintura podia flutuar. E ele tinha razão. Mas não chegou a fazer escola. Ele é respeitado, e um Seurat custa caro... Mas não se pode dizer que tenha deixado continuadores. Nem eu tenho continuadores. Não tenham medo. Alguém vai tirar um pouco daqui, um pouco dali, mas não muito. É difícil demais. Assim como no caso de Seurat, não há continuadores.

Eu vou dizer por que. Vou mais longe agora. Eu me perguntava hoje de manhã por que as pessoas resistem a mudar de estilo. As grandes civilizações mudaram frequentemente de estilo. Estou falando das grandes civilizações esquecidas, desaparecidas, sumérios, arameus, todas essas civilizações, deve haver quarenta ou cinquenta, entre o Tigre e o Eufrates, que tiveram poetas, tiveram escritores, legisladores. Pois bem, eles mudaram frequentemente de estilo. Ao passo que os franceses ficaram apegados ao estilo Voltaire, que aliás era uma linda forma, copiada por Bourget, por Anatole France, no fim por todo mundo. Eu tive a oportunidade de ler a "Revue des Deux Mondes" dos últimos cem anos. O que se vê ali é toda sorte de romance fácil; bastaria que se acrescentassem os telefones e os aviões e tudo estaria muito bem. Ficamos presos a um estilo. Porque eu acho que para ter um estilo novo é preciso uma civilização muito nova, ou antes muito forte. Por exemplo, temos atualmente os chineses que pisam na sua língua, e que estão se livrando de seus caracteres, de seu próprio estilo, vocês sabem que a língua chinesa é uma língua muito complexa, que só era entendida por uma certa seita, graças a certos artifícios. Pois muito bem, eles tiveram a coragem, a força, digamos a paixão de se desvencilhar inteiramente do chinês antigo para falar um outro chinês mais novo. E isso é coisa que não costuma acontecer...Vejam, os americanos nunca fizeram nada de novo. Quando querem uma palavra, vão revirar o latim, a duras penas, nunca inventaram absolutamente nada. É muito difícil inventar palavras, e é muito difícil mudar de estilo. Tanto que eu chego a pensar que esse aí é exatamente o que necessitava a pequena civilização francesa, que terá durado quatrocentos anos, quatro séculos, nada. Eles se apegaram, eu diria, porque já não têm mais a força, a paixão necessária para mudar. Não é possível.

Sabem, eu fui médico durante vinte anos em Clichy, no dispensário de Clichy, e eu me interessei pela história de Clichy. Clicy-la-Garenne, perto de Paris. Eu cheguei a envolver um historiador nessa história, um amigo meu, que já morreu. Ele se chamava Sérouille. Eu escrevi um prefácio - censuraram o livro e o prefácio (1), porque essa história toda era proibida. Muito bem. Mas essa história de Clichy tinha episódios notáveis, um deles era particularmente gozado: num certo momento, por volta de 1870, tinha um padre em Clichy que dizia: "Essa gente não entende nada de latim, eu estou dizendo missa para nada, vou dizer a missa em francês." Foi o suficiente para que ele caísse nas garras da Comissão dos Ritos, ele acabou sendo expulso de sua igreja e a missa voltou a ser rezada em latim. Por quê? - eu perguntei a Sérouille. Ele pensou bastante e me disse: "Porque já não havia mais fé." É esse o negócio: a fé. Vejam os russos, eles não tocam no russo, não é mesmo? Logo não têm uma grande fé. E os franceses seguramente já não têm mais fé para mudar a sua língua, nem fervor para isso.

Eu poderia até dar um exemplo vulgar e mais compreensível tirado da publicidade que sai nos jornais que eu leio, os grandes semanários. Eu não olho muito o texto, não é interessante. Olho mais as propagandas. Elas me dão a idéia exata do que as pessoas estão querendo. Como elas custam muito caro, não são feitas à toa. Tem uma propaganda de margarina, com um avô e uma avó. A avó que diz: "Eu vou usar a margarina X." E o avô que responde: "Mas você ficou louca! Na nossa idade não se muda de hábitos!". Pois muito bem, é este o caso da França. A França passou da idade de mudar de hábito. Então é bem provável que ela não vá mudar de estilo, só para me agradar. Quanto a mim, vou continuar a remexer nas minhas perfeições, nos meus refinamentos, o que não vai adiantar nada. Eles continuarão a publicar Bourget, Anatole France, frases bem costuradas, etc... É uma questão de prestígio, é realmente uma questão de vaidade. Eu fico desesperado com isso, é uma coisa que me faz muito, muito mal. Isto posto, só me resta ir embora. Não tenho mais grande coisa a dizer. Não... Não... Muito obrigado. Assim está bom? Acho que sim.

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(1) Céline refere-se a uma história inédita de Clichy, por Sérouille. Em algumas entrevistas, o escritor voltaria a este mesmo assunto.


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