Tradução e nota introdutória de Leda Tenório
da Motta
O texto que se segue, uma aula magistral sobre o estilo por Louis-Ferdinand
Céline, foi gravado em disco, a convite, em outubro de
1957. Três anos antes da sua morte, seis depois de ter sido
anistiado por um tribunal militar. Num momento em que, entre a
repulsa e a fascinação, as Letras francesas se reaproximavam
do grande escritor, prêmio Renaudot em 1932, foragido na
Liberação, por sete anos exilado, condenado à
revelia e saqueado, contingências de uma passagem sacrificial
pelo opróbrio da guerra. Na outra face do disco, editado
para uma coleção por nome "Leur oeuvre et leur
voix", Pierre Brasseur e Arletty lêem extratos de "Voyage
au bout de la nuit" (sem tradução em português)
e "Morte a crédito" (Nova Fronteira). A fala
foi transposta para o volume "Céline II" da Pléiade,
coleção em que Céline entrou, ainda em vida,
no ano de 1960.
Ouvir
Céline: privilégio quando os "panfletos"
continuam censurados, inconsultos e inconsultáveis. Escondidos,
como uma vergonha. Os panfletos que não destoam da obra
celiniana. Exorbitantes como os romances, igualmente chocantes,
febris, aliciantes, "fascistas", como se diz. Na realidade,
é toda a obra de Céline que continua sob censura,
vagamente encoberta pela desculpa da "ficção".
Como se os panfletos não fossem, produtos da mesma febre,
outras tantas ficções. "Morte a prazo"
ou "Bagatelas", pouco importa. A abjeção
que destilam os escritos celinianos não conhece limites.
Céline é todo ele abjeto, antes, durante e depois
de Vichy, a época dos panfletos. Céline é
desde sempre "panfletário". Por sorte, teria
estado militando em causa errada. Por sorte também, nenhum
outro gênero narrativo, a ler-se a história da prosa
francesa depois de Proust, esteve tão à altura do
momento dito histórico. Céline, por circunstância,
estava na linha da guerra moderna. Como Proust, o mestre tácito,
na do salões. E ao apocalipse da guerra convinha o surto
celiniano. Uma histeria guerreira, já se disse. A manifestação,
a epifania do horror. Fascista? Antes "poeta". Não
há ideologia possível em Céline, sequer o
anti-semitismo, a questão mais do que delicada a que se
tem remetido os panfletos. Pois que revelação haveria
de se apoiar na sua verve relaxada, incontrolável e tresandada
- de resto, reconhecidamente, para o seu próprio escarmento?
"Idéias, nada de mais vulgar", afirma Céline
no disco. Céline: um panfletário sem idéias.
Uma retórica sem demonstração. É esse
o "estilo Céline". Pontuado a reticências
iradas, e a marcas de exclamação. Pontos de emoção.
Estilo é trabalho e emoção, dita ao gravador.
Num momento em que, curiosos, perplexos, admirados, os jornalistas
iam procurá-lo em Meudon. Essa não terá sido
a hora do desagravo. Vamos ouvir Céline?
*
Pois bem! Depois de passar por tantos lugares, de viver nos climas
os mais diferentes, e nas mais diferentes situações,
querem agora que eu dê as minhas impressões sobre
as minhas grandes obras, numa atmosfera de cadeira elétrica...
Mas
isto não vai me desconcertar de jeito nenhum, eu vou dizer
tudo o que penso e ninguém vai me impedir de falar. Sabem,
eu vou direto ao assunto, porque essas coisas saem caro, é
preciso medir as palavras - vamos ao que eu tenho a dizer, pelo
que sei e pelo que li. Nas "Memórias" de George
Sand - não se lê muito George Sand mas ainda se lê
um pouco as "Memórias", eu pelo menos as li -
há um capítulo notável onde, moça,
ela defende, sôfrega de vida, idéias de esquerda,
de extrema esquerda, até, para a época. Pelo seu
nascimento e pela sua notoriedade - como se sabe era uma bisneta
do príncipe de Saxe - ela tinha acesso aos grandes salões,
principalmente àqueles em que se reuniam ainda os representantes
da antiga aristocracia - mas da verdadeira! -, que existia ainda,
a duras penas, desde a corte de Luís 16 e mesmo de Luís
15. E ela contemplava esses representantes da aristocracia com
espanto enorme: a maneira como gesticulavam, como se mexiam, como
serviam seus petis-fours, como estendiam cadeiras, ou as retiravam,
como enfiavam suas perucas por entre os seios das damas, quando
não sob seus traseiros, em graças e fricotes mil...
Espantava-se de ver esses exemplares de uma época revolta
fazer tanta careta. Pois muito bem, pessoalmente, acho esse capítulo
essencial. E acho também que o próprio Proust serviu-se
dele à vontade no capítulo famoso em que vemos os
seus personagens envelhecer; o capítulo é realmente
famoso mas, neste ponto, acho que George Sand o antecedeu; trata-se,
realmente, de um grande trabalho literário. Pois bem, eu
tenho a mesma impressão quando leio um livro; a impressão
de estar vendo gente fazer careta. Eles fazem micagens completamente
inúteis. Eles não vão diretamente ao assunto,
desmancham-se em rodeios, avançam cadeiras, fazem preâmbulos,
mas não tocam diretamente no ponto sensível, não
é mesmo? Na emoção. Isto não tocam.
Aí está: para ser sincero, eu pego os romances dos
meus contemporâneos e penso: "Isto já é
algum trabalho, mas um trabalho inútil." É
isso o que eu penso. Porque eles não estão à
altura, nem no tom da sua época. No tom da época,
meu Deus... Pois bem... É preciso levar em conta que o
romance, já que de romance se trata, e que é sobre
ele que me pedem para opinar, já não tem mais a
missão que tinha; ele já não é mais
um órgão de informação. No tempo de
Balzac, aprendia-se a vida de um médico rural em Balzac;
no tempo de Flaubert, a vida do adultério em Bovary, etc,
etc... Hoje, estamos enfronhados nesses tópicos, mais que
enfronhados: graças à imprensa, aos tribunais de
justiça, à televisão e às enquetes
sócio-sanitárias. Ah! Histórias é
que não faltam, nem documentos, nem fotografias... Já
não precisamos mais disto. Acredito que o papel de documento,
mesmo o papel psicológico do romance esteja encerrado,
eis a minha impressão. E o que lhe restaria, neste caso?
Pois bem, pouca coisa: o estilo, e mais as circunstâncias
em que um tipo possa se encontrar. Proust, naturalmente, encontrava-se
na sociedade, ele vai falar dela, não é mesmo? Do
que lhe era dado presenciar, acrescido de pequenos dramas da pederastia.
Muito bem. Trata-se de se postar na linha em que a vida nos coloca
- e de não sair mais dali, de modo a recolher, e a transpor
para o estilo. Agora, em matéria de estilo... O estilo
desse tipo de coisa surge no mesmo tom do bacharelado, do jornal
de todo dia, no mesmo tom da apelação judiciária,
quer dizer, em estilo verbal, eloquente talvez, mas seguramente
nada emotivo. Eu vejo a coisa como os impressionistas deviam ver
os pintores de sua época, que aliás os pagavam na
mesma moeda. Com toda certeza, aos olhos de um impressionista,
a igreja de Antuérpia por um pintor da época, ainda
que um bom pintor, não haveria de ser exatamente um Van
Gogh. E reciprocamente. "Mas é um horror, é
um malfeitor, é preciso matá-lo", haveria de
dizer o pintor do impressionista. Pois muito bem, isto é
o que ainda se diz dos meus livros, com toda certeza.
Digo
que o que se escreve são romances inúteis porque
o que conta é o estilo e, diante do estilo, ninguém
quer se curvar. É uma coisa que pede muito trabalho e as
pessoas não são trabalhadeiras, elas não
vivem para trabalhar, vivem para gozar a vida, o que não
deixa tempo para o trabalho. Os impressionistas eram grandes trabalhadores.
Sem trabalho não se pode fazer grande coisa. Fica a eloquência
natural: o que é realmente muito ruim. É preciso
que a coisa fique na página. E ficar numa página
é coisa que pede um trabalho enorme.
Acho
que neste ponto há algo a criar, inteiramente, um estilo.
Pois bem, no caso dos estilos, não existem muitos numa
época, sabem? Sem querer ser muito pretensioso, não
existem muitos. Três ou quatro por geração
- é preciso dizer a verdade, e se não sou eu a dizer
ninguém dirá. Eles se tornam logo decadentes, não
duram mais que um momento. Existe uma noção da vida,
uma filosofia geral, que quer que a vida seja eterna, que ela
comece aos sessenta, aos cinquenta anos... Não! Não!
A vida é passageira! É o tempo quem rege, e ele
não dura para sempre. George Sand ria daqueles velhos trejeitos
dos antigos cortesãos. Mas se a víssemos hoje ela
própria nos pareceria perfeitamente ridícula. Existe,
pois, um tempo, um tempo preciso. Vejam as grandes histórias.
O que é que se sustenta no teatro? Pouca coisa. Voltamos
sempre a Shakespeare, forçosamente. Shakespeare tem o hábito
por si, isto o salva. Ele está fora de sua época.
Neste ponto, ele ganhou. No entanto, uma encenação
de Shakespeare em trajes civis seria péssima, sem nenhum
efeito. Tudo concorreria para isso.
Mas
diz-se: o romance de Céline é uma coisa que irrita,
é enervante, etc: porque não é no estilo
bacharel, no estilo aceito, o estilo do jornal, o estilo judiciário.
Estilo que se impõe verdadeiramente, formalmente, e que
fica, vai ficar para sempre, vou dizer a razão.
Fora do esquadro
Volto a esse estilo. Ele vem de uma certa maneira de se forçar
as frases, de tirá-las ligeiramente de sua significação
habitual, de tirá-las, por assim dizer, do esquadro, de
se deslocar as frases forçando o próprio leitor
a deslocar o sentido. Mas muito ligeiramente! Muito ligeiramente!
Porque sem leveza, tudo isto é uma gafe, não é
mesmo? A gafe! Então, a coisa pede um enorme recuo, sensibilidade,
e isto é muito difícil de se conseguir. É
preciso girar em torno. Em torno de que? Da emoção.
É
neste ponto que eu volto ao meu grande ataque contra o Verbo.
Vocês sabem, nas Escrituras diz-se: "No princípio
era o Verbo". Não! No princípio era a emoção.
O Verbo veio depois para substituir a emoção, assim
como o trote substituiu o galope, quando a lei natural do cavalo
é o galope. O trote foi-lhe imposto. Ao homem, fizeram-no
passar da poesia emotiva para a dialética, quer dizer,
para a verbiagem, não é mesmo? Ou para as idéias.
Idéias, nada de mais vulgar. As enciclopédias estão
cheias de idéias, quarenta volumes, repletos de idéias.
Muito boas, por sinal. Excelentes. Em seu tempo. A questão
não é essa. Isso não é minha alçada:
idéias, mensagens. Eu não sou um homem de mensagens.
Não sou um homem de idéias. Sou um homem de estilo.
E o estilo, meu Cristo, todo mundo pára nele. Porque é
um trabalho duro. Ele consiste, como eu dizia, em tomar as frases
e tirá-las do esquadro. Ou por outra: se vocês querem
que um pedaço de pau pareça reto na água,
é preciso entortá-lo antes porque a refração
faz com que, na água, ele pareça quebrado. É
preciso quebrar o pau antes de mergulhar na água. Isto
é um verdadeiro trabalho. É o trabalho do estilista.
Muitas
vezes as pessoas vêm me procurar para dizer: "Você
parece escrever com facilidade." Não! Eu não
escrevo com facilidade! Só escrevo com muita dificuldade!
De mais a mais, escrever é algo que acaba comigo. É
preciso que a coisa se faça com muita, muita fineza, com
muita delicadeza. É preciso umas 80.000 páginas
para fazer 800 de manuscrito, onde não se vê o trabalho.
Ao leitor não cabe vê-lo. Não é da
sua conta o que se passa nos porões ou no tombadilho da
embarcação - que ele não sabe dirigir. Tudo
o que lhe compete é gozar. Deleitar-se. Ele comprou o livro
e deve se deleitar. O meu dever é causar nele esse deleite,
e para isso eu trabalho. Para poder ouvir dele: "Ah! Foi
o Senhor que fez isso... Ah! como é fácil! Meu Deus,
se eu tivesse a sua facilidade!" Só que eu não
tenho a menor facilidade. A menor Tem gente muito mais dotada
do que eu. A única diferença é que eu trabalho.
E trabalhar é uma coisa que eles não querem, eles
não querem se concentrar. É esse o negócio.
Mas
alguém haverá de dizer: "Céline não
faz senão botar três pontos, três pontos...
"Sabem, os impressionistas também botavam três
pontos. Seurat botava três pontos em tudo; ele achava que
isso arejava, que assim a sua pintura podia flutuar. E ele tinha
razão. Mas não chegou a fazer escola. Ele é
respeitado, e um Seurat custa caro... Mas não se pode dizer
que tenha deixado continuadores. Nem eu tenho continuadores. Não
tenham medo. Alguém vai tirar um pouco daqui, um pouco
dali, mas não muito. É difícil demais. Assim
como no caso de Seurat, não há continuadores.
Eu
vou dizer por que. Vou mais longe agora. Eu me perguntava hoje
de manhã por que as pessoas resistem a mudar de estilo.
As grandes civilizações mudaram frequentemente de
estilo. Estou falando das grandes civilizações esquecidas,
desaparecidas, sumérios, arameus, todas essas civilizações,
deve haver quarenta ou cinquenta, entre o Tigre e o Eufrates,
que tiveram poetas, tiveram escritores, legisladores. Pois bem,
eles mudaram frequentemente de estilo. Ao passo que os franceses
ficaram apegados ao estilo Voltaire, que aliás era uma
linda forma, copiada por Bourget, por Anatole France, no fim por
todo mundo. Eu tive a oportunidade de ler a "Revue des Deux
Mondes" dos últimos cem anos. O que se vê ali
é toda sorte de romance fácil; bastaria que se acrescentassem
os telefones e os aviões e tudo estaria muito bem. Ficamos
presos a um estilo. Porque eu acho que para ter um estilo novo
é preciso uma civilização muito nova, ou
antes muito forte. Por exemplo, temos atualmente os chineses que
pisam na sua língua, e que estão se livrando de
seus caracteres, de seu próprio estilo, vocês sabem
que a língua chinesa é uma língua muito complexa,
que só era entendida por uma certa seita, graças
a certos artifícios. Pois muito bem, eles tiveram a coragem,
a força, digamos a paixão de se desvencilhar inteiramente
do chinês antigo para falar um outro chinês mais novo.
E isso é coisa que não costuma acontecer...Vejam,
os americanos nunca fizeram nada de novo. Quando querem uma palavra,
vão revirar o latim, a duras penas, nunca inventaram absolutamente
nada. É muito difícil inventar palavras, e é
muito difícil mudar de estilo. Tanto que eu chego a pensar
que esse aí é exatamente o que necessitava a pequena
civilização francesa, que terá durado quatrocentos
anos, quatro séculos, nada. Eles se apegaram, eu diria,
porque já não têm mais a força, a paixão
necessária para mudar. Não é possível.
Sabem,
eu fui médico durante vinte anos em Clichy, no dispensário
de Clichy, e eu me interessei pela história de Clichy.
Clicy-la-Garenne, perto de Paris. Eu cheguei a envolver um historiador
nessa história, um amigo meu, que já morreu. Ele
se chamava Sérouille. Eu escrevi um prefácio - censuraram
o livro e o prefácio (1), porque essa história toda
era proibida. Muito bem. Mas essa história de Clichy tinha
episódios notáveis, um deles era particularmente
gozado: num certo momento, por volta de 1870, tinha um padre em
Clichy que dizia: "Essa gente não entende nada de
latim, eu estou dizendo missa para nada, vou dizer a missa em
francês." Foi o suficiente para que ele caísse
nas garras da Comissão dos Ritos, ele acabou sendo expulso
de sua igreja e a missa voltou a ser rezada em latim. Por quê?
- eu perguntei a Sérouille. Ele pensou bastante e me disse:
"Porque já não havia mais fé."
É esse o negócio: a fé. Vejam os russos,
eles não tocam no russo, não é mesmo? Logo
não têm uma grande fé. E os franceses seguramente
já não têm mais fé para mudar a sua
língua, nem fervor para isso.
Eu
poderia até dar um exemplo vulgar e mais compreensível
tirado da publicidade que sai nos jornais que eu leio, os grandes
semanários. Eu não olho muito o texto, não
é interessante. Olho mais as propagandas. Elas me dão
a idéia exata do que as pessoas estão querendo.
Como elas custam muito caro, não são feitas à
toa. Tem uma propaganda de margarina, com um avô e uma avó.
A avó que diz: "Eu vou usar a margarina X." E
o avô que responde: "Mas você ficou louca! Na
nossa idade não se muda de hábitos!". Pois
muito bem, é este o caso da França. A França
passou da idade de mudar de hábito. Então é
bem provável que ela não vá mudar de estilo,
só para me agradar. Quanto a mim, vou continuar a remexer
nas minhas perfeições, nos meus refinamentos, o
que não vai adiantar nada. Eles continuarão a publicar
Bourget, Anatole France, frases bem costuradas, etc... É
uma questão de prestígio, é realmente uma
questão de vaidade. Eu fico desesperado com isso, é
uma coisa que me faz muito, muito mal. Isto posto, só me
resta ir embora. Não tenho mais grande coisa a dizer. Não...
Não... Muito obrigado. Assim está bom? Acho que
sim.
__________
(1)
Céline refere-se a uma história inédita de
Clichy, por Sérouille. Em algumas entrevistas, o escritor
voltaria a este mesmo assunto.