Leda
Tenório da Motta
Não falemos de revolta, emoção barata que
pressupõe a esperança. "Minha mãe fez
tudo para que eu vivesse, era ter nascido que eu não devia",
esclarece Céline, de uma vez por todas, na abertura de
"Morte a Crédito". (1)
No
segundo romance de uma obra vasta, é bem verdade, e a 25
anos de distância de "Rigodon", ou do ponto final,
em 1961, na casa deprimente do subúrbio parisiense de Meudon.
Isso importa pouco porque, como sabem os que conhecem o tom do
texto celiniano humoral, frenético, obsessivo, obsceno,
demencial - nada ali é relativo, tudo é absoluto.
"Tudo o que não é blefe". Céline
é definitivo em qualquer ponto da obra. Que já nasce
madura nesse sentido, sem precisar crescer, como a do comum dos
mortais. E nesse tipo de barbaridade, entre outras coisas, que
repousa a sua presença marcante de escritor. E do mesmo
golpe, como não poderia deixar de ser, a sua tragédia
pessoal.
Retórica do achincalhe
Não se trata de questionar isso ou aquilo. Essa tarefa
o escritor deixava, cáustico como era, para o pessoal da
"gôche". Senão para os que pensavam direito,
e escreviam igual, como os chatos, no seu entender, dos seus contemporâneos.
Atrasados de 100 anos, "plagiários", "cromos"
uns dos outros. De André Gide, a quem a literatura deveria
apenas a contribuição da pederastia, a Mauriac,
Romain Rolland, Camus, Henry Miller, que muitos consideram o seu
discípulo direto. Passando por Sartre, o inimigo íntimo,
a quem Céline chama, desbocado, o "excitado da cachola"
("l'ágite du bocal"). "Eles escrevem todos
como se pintava no Grand Salon de la Médaile d'Or de 1862",
critica, com uma severidade que só faz revelar o tamanho
das suas próprias pretensões. Céline parte
para ser o melhor de todos. O salão a que se refere é
aquele, mítico, em que foram barrados os pintores impressionistas.
Por serem excelentes e em nome de um classicismo triunfante, oficialista
e cartorial.
Céline
tomará lugar no oposto de todas as tendências literárias
de sua época. No oposto extremo, mais precisamente. O escritor
não é apenas um "out-sider", é
um procurado pela polícia. Na verdade, para muito aquém
da esperança - e da postura civil que costuma coincidir
com ela - o sentimento celiniano do mundo é o mais completo
niilismo. Um derrotismo, um pessimismo. O escritor é, como
ele mesmo fantasmaticamente se capta, um impressionista maior
num salão de medalhas, "loteria ignóbil",
cujo ledo engano, a prática da besteira, é definitivamente
impossível desfazer.
O
que lhe resta, nestas condições, é soltar
o verbo, e em gratuidade. Não há nada a mudar, é
certo, mas muito a gritar. "O pequeno sucesso da minha existência
é ter conseguido, apesar de tudo, este feito, que todos
concordem, por um momento, direita, esquerda, centro, sacristias,
lojas (2), células, o conde de Paris, Josefina, o abade
Trololó, que eu sou o maior lixo que existe!" Esse
bate-boca monologante, essa retórica do achincalhe, por
difícil que seja aceitá-lo, é o que o século
francês, em matéria de prosa, tem de melhor a oferecer.
Alguém
lembrará, com razão, que todo pessimismo é
forma de dogmatismo. Ora, ainda neste caso, Louis-Ferdinand terá
levado a pior. O pautário dogmático sobre o qual
vai se basear, se é que se pode falar em bases quando se
fala de Céline, é nada menos que o "fascio".
Se é possível ser fascista quando se trabalha com
a dúvida... Mas admitamos: os panfletos de Céline
(3), em que peso à organização em solilóquios
delirantes, "modus operandi" que coincide com o de toda
a obra de ficção, à exceção
talvez de "Voyage au Bout de la Nuit", estilisticamente
embrionário, são tematicamente nazistóides.
Dinamites na literatura
Mais uma vez, é aí que está o ponto. Porque
Céline ideólogo é uma convergência
de aversões, uma crise de vômitos, antes que um programa
político. A idéia nazi, cuja passagem ao ato se
consumará em fogo justamente, sob suas vistas, numa Alemanha
acuada, lugar de exílio e auge da danação,
é uma fantasia de apocalipse. Céline vai aperfeiçoar
essa idéia. Em termos, como sempre, discursivos, já
que, como se tem hoje por estabelecido, Céline político
nunca foi homem de ação. Aos anticomunismo e antissemitismo
hitlerianos, ele vai acrescentar a sua verve anti-negra, anti-católica,
anti-maçônica, anti-colonialista, anti-militarista,
anti-industrialista, anti-alcóolica. Entre outras.
O
objetivo último, nesta série persecutória,
reverte facilmente a primeiro. Em se tratando, como é o
caso, de um escritor de primeiro plano: a respeitável língua
francesa escrita, veículo de uma auto-imagem nacional idealizada
e, de preferência, intocável. Céline vai dinamitar
o espaço literário francês do entre-guerra
- e do que resta do século, que já fora proustiano
- ao trazer para o seu venerável interior a carga pesada
da gíria, o "argot", língua do ódio,
como diz; do calão mais baixo, mais "França
profunda"; do acanalhado; do "parigot". (4).
Vai
contrapor-se, dessa maneira, vigorosamente, a um certo embuste
naturalista, que recebe a sujeira da língua nos diálogos
mas a mantêm à distância do pivô da narração
- ou do escritor. Vai estilizar, por luxo, esse material, num
duplo movimento poético, marcando também o abismo
que vai desse seu esteticismo ao "gauchismo" escrevente,
à la Barbusse.
Veia suicidária
Contra tudo e contra todos o Dr. Destouches. Inimigo do gênero
humano - no fim, além de Lucette Destouches, Céline
só se aproximava dos gatos e dos cachorros - e, por incrível
que pareça, um médico de profissão. Médico
de ambulatório de periferia. A medicina, neste caso, propicia
sobretudo a perspectiva do asqueroso. E confirma o sentimento
de perseguição. Nas últimas linhas do último
romance, a sua gana destruidora aponta para um último perigo:
o amarelo. Os chineses, alucina, vão tomar conta de todo
o planeta. Por uma feliz coincidência, que os comentaristas
não deixam escapar, o fim da nação francesa
"bate" com o fim do escritor. De tal forma o catastrofismo
celiniano, o antissemitismo, por exemplo, representam um movimento
auto-direcionado, uma veia suicidária. Ao terminar "Rigodon",
na constatação da invasão da França
por hordas de asiáticos, o escritor, pessoalmente, está
morrendo.
O
resgate da dívida que Céline terá contraído
então, na observância quotidiana da blasfêmia,
vai ser diretamente proporcional. Mais que à morte vindicativa
que lhe impõe, à revelia, um tribunal da Liberação,
mais que a condenação à prisão, posteriormente,
e a um "estado de indignidade nacional", mais que ao
confisco da metade dos seus bens, aquela metade certamente que
escapou ao saque da casa de Montmartre... o escritor vai ser condenado
à supuração do seu lirismo desandado. Ou,
o que talvez signifique o do veneno que secreta, profundamente
entranhado.
Céline,
em outras palavras, é um condenado à literatura.
Entendida como único lugar de se estar. "Que comece
a festa!". "Os que vão morrer vos saudam!",
escreve, nos últimos meses da Ocupação, de
dentro de "Féeries pour Une Autre Fois". Antecipando
assim o que será o auto-da-fé ultra-ofensivo, o
espetáculo histérico do instinto popular. Entregue
às feras - dos males o menor para quem está, antes,
entregue a si mesmo - mas romanescamente instalado. Essa não
seria a primeira vez, em todo caso, nem muito menos a última,
em que o escritor estaria, entre frágil e onipotente, em
desacordo perfeito com a voz geral.
Equívocos
Da morte física, Céline vai escapar - fugindo. O
que não tem tempo de fazer seu editor, Denoel, executado
em plena rua. O caminho do escritor, depois do Desembarque, é
na direção da bússola. Na falta, aparentemente,
de qualquer outra direção. O caminho é para
o "Norte", como chamou o penúltimo livro da trilogia
final. (5) Rumo à Dinamarca, via Baden-Baden, enclave petainista
alemão. Ao longo desse caminho, o escritor vai errar -
e urrar. Vai derivar como o "outro" execrado justamente,
como esse duplo deslavado de si mesmo: o judeu.
No
entretanto, é de revolta, pior, de revolução
que falam seus leitores, progressistas, em 1932. E é com
base nesse equívoco que as letras francesas vão
saudar, no ano da publicação de "Voyage au
Bout de la Nuit", o jovem Dr. Destouches, herói da
primeira guerra, aliás como Petain. Céline perde
o prêmio Gouncourt desse ano. Mas fica com o Renaudot. "Voyage
au Bout de la Nuit" explode como uma bomba. Desmorona o sistema
de equilíbrio francês dos anos 14-30, montado sobre
a guerra, a exploração colonial, o taylorismo industrial,
o conservadorismo da burguesia nacional.
Os
críticos começam a procurar, envolvendo nessa busca
a literatura francesa toda, e um bom recorte da ocidental, os
que seriam os seus antecessores. Rimbaud, Lautréamont,
Jarry, Dada pela iconoclastia, Juvenal, Bocaccio, o romance picaresco
espanhol, Swift, Valles pelo satirismo, Zola, Huysmans, D H Lawrence
pelo naturalismo, Tallement des Réaux, Froissart, Sévigné,
Saint-Simon pela crônica.
"Voyage
au Bout de la Nuit" - e de resto toda a obra de Céline
- seria panfleto? romance? autobiografia? epopéia? Céline
escreveria em língua falada? Falaria como o povo? Seria
um falso populista? Um gauchista? Um reacionário? Um poeta?
Um monstro? Alimentando a polêmica criada desde logo em
torno do seu nome, Céline responde em pessoa, e em disposição,
como sempre, extática: "Je suis un raffiné,
un aristocrate!". Quando não: "Je suis un styliste,
Monsieur!". Ou ainda, paradoxalmente: "J'ai écrit
'Voyage', pour payermon appartement". Sobretudo, ele tem
consciência de que a sua é uma descoberta inaudita,
um estilo truculento e, ao mesmo tempo, supremamente musical.
Decepcionando
os primeiros admiradores, recrutados, diga-se, à direita
e à esquerda, o que joga a favor da habilidade do escritor,
isto é, da sua indecisão ideológica, a bomba
celiniana era essencialmente destruidora. Letal, arrasante. Virtudes
de que o estilista de Meudon, na verdade, nunca abriu mão.
"Eu não envio mensagens ao mundo", escreve em
alguma parte. E acrescenta: "Eu não cogito para o
planeta". O planeta, é o que Céline espera
ver acabar, e em fogo. Ele chegou muito perto disso, nas adjacências
do Reischtag, durante o fim da segunda guerra mundial. A guerra,
essa "imensa, universal gozação", escreve
em "Voyage au Bout de la Nuit".
Decepção geral
A repousar sobre os louros do primeiro reconhecimento - "Voyage"
será levado para o cinema por Claude Autant-Lara - Céline
haveria de ser tomado por aquilo que nunca foi. E nem podia ser,
dada a sua envergadura: mais um escritor de esquerda. Aragon e
Elza Triolet apressam-se em traduzi-lo para o russo, no afã
de sublinhar um namoro bolchevique. Inutilmente. Céline
visita a URSS em 1936 e volta fazendo o que nenhum "intelectual",
na época, teria tido a coragem de fazer: falando mal. Tanto
quanto critica as indústrias Ford, que conhece numa missão
médica e cujo funcionamento diabólico descreve no
romance, atacando os EUA em bloco.
Em
"La Force de l'Age", Simone de Beauvoir considera o
anarquismo de Céline muito próximo do seu - e do
de Sartre. E note, o que é ainda mais significativo, a
diferença fundamental entre a escrita celiniana - "tão
viva quanto a palavra" - e o tom "marmóreo"
de Alain, Gide e Valéry.
Sartre,
por sua vez, vai extrair de Céline a epígrafe de
"La Nausée". Para anos depois, em 1945, no "Portrait
de l'Antisémite", acusar: "Se Céline pode
defender as teses sociais dos nazis, é que era pago para
isso". (6) Sarte não fornece provas do que afirma,
nem alude a um testemunho sequer. Este é o momento em que,
em Paris, começa a instrução do processo
Céline. Por isso também, o escritor nunca o perdoará:
"Ele precisava de dois anos de cadeia, três anos de
trincheira para aprender o verdadeiro existencialismo, e uma boa
invalidez para parar de divagar". (7)
Trotski,
Lévi-Strauss, então ligados aos socialistas, os
homens do "L'Humanité", o jornal do Partido Comunista
Francês, homenageiam, no momento do seu aparecimento, o
jovem autor. Fazendo coro com vozes de procedências outras.
Como a do bravo Leon Daudet, da ultra-direitista Action Française:
"Seus dons extraordinários podem e devem elevá-lo
agora aos Alpes, quer dizer, às alturas a que alguém
pode chegar depois de passar por charcos tão nauseabundos".
Reabilitação tardia
De "Mort à Crédit" em diante, e progressivamente,
ninguém mais vai se ocupar de Céline. Os panfletos
são recolhidos em 1939. O escritor entra no "Index
Librorum Prohibitorum". "Eu tinha tudo o que era preciso
para me tornar interessante", trata de explicar, em 1957,
de volta da Dinamarca, a uma jornalista da revista "L'Express".
A curiosidade em torno do escritor caído em desgraça
é imensa, nessa hora. Céline está sendo reabilitado
aos poucos, dificilmente, e seus livros publicados pela editora
da Nouvelle Revue Française, dirigida durante a fase da
Ocupação, por Drieu La Rochelle, que se suicida
na Liberação. Céline está também,
então, prestes a entrar para a "Pléiade".
Ainda
assim, o que predomina é o achaque: "Eu acabei cedendo
a mania sacrificial!... Antes tivesse ficado quieto, eu teria
feito uma carreira gloriosa, mas não! Acabei virando o
objeto preferido da sanha racista". Paranóico, ele
não distingue entre ofensor e ofendido. É ele Céline,
perseguidor (de boca) de judeus, o perseguido. É ele o
crucificado.
Teria
sido por total acaso, ademais, que pegou a fila dos acontecimentos
"pela direita". Deixando de se encaixar assim numa corrente
literária destinada ao sucesso - e ao lado bom da história:
a "série Sartre-Camus". "Esses naturalistas
modernizados, freudizados...", escarnece, num lamento.
Ora,
que importância pode ter hoje, sobretudo literária,
diante da obra deixada por Céline, e com um recuo de quase
meio século, o "pensum" humanista de um Camus?
__________
(1)
Os romances de Céline traduzidos no Brasil são,
por enquanto, só dois: "Morte a Crédito"
e "Norte", respectivamente o segundo e o penúltimo
do autor. Existe ainda uma tradução portuguesa do
primeiro romance: "Viagem ao Fundo da Noite".
(2)
Céline refere-se às lojas maçônicas.
(3)
Os panfletos - "Bagatelles pour un Massacre", "École
des Cadavres" e "Beaux Draps" - foram escritos
entre 1937-1941 e assinados por Céline com o seu nome civil:
Louis-Ferdinand Destouches. Por força da lei francesas
que proíbe a circulação de propaganda racista,
essa parte da obra de Céline, dificilmente separável
da ficção, é interdita.
(4)
O "parigot" é o parisiense, a língua das
ruas de Paris.
(5)
Escritos entre a Alemanha, a Dinamarca e a França, os três
últimos romances, todos em torno da sua própria
trajetória durante a guerra, são: "D'un Chateaul'Autre";
"Noro" e "Rigodon".
(6)
Esse artigo de Sartre, que é publicado em dezembro de 1945,
na revista "Les Temps Modernes", será mais tarde
inteiramente retomado em "Refletions sur la Question Juive".
(7)
Céline foi ferido no braço quando servia durante
a Primeira Guerra Mundial. Exagerando a extensão do seu
problema, ele reivindica até o fim da vida um ferimento
na cabeça, das sequelas do qual, imaginariamente, nunca
se recuperou.