O DILEMA HISTÓRICO DA IGREJA CATÓLICA

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1988

FLORESTAN FERNANDES

A Igreja Católica enfrenta um terrível desafio. Precisa disputar a hegemonia cultural e espiritual entre dois mundos que ameaçam a sua existência e sobrevivência. O capital comercializa a fé e a converte em uma fonte de lucro. Mas dilacera as bases morais e religiosas da fé. O movimento socialista e comunista superou várias superstições: mas a sua principal tendência não pode abrir mão de sua filosofia histórica materialista. Uma convivência tornou-se possível, mas os dois lados precisariam superar-se para conviver criativamente. Uma revolução ecumênica forjou as bases de um entendimento. Outrossim, a barbárie gerada pela civilização da época do capitalismo monopolista, em sua forma mais avançada, jogou nas mesmas masmorras cristãos e libertários, católicos e comunistas. Tornou-se possível, pois, a superação, a defesa da humanidade como um valor absoluto e primordial. A condição para que essa superação se convertesse em processo histórico permanente consistia em que a Igreja Católica se descolasse do seu útero materno, um sistema universal e autocrático de pompa, riqueza e poder. Isso lançaria a Igreja Católica adiante de todas as forças culturais e políticas, que pretendem engendrar o novo homem e a nova sociedade. No entanto, com o correr do tempo o tradicionalismo e o conservantismo se recompuseram, restabeleceram os centros e os nervos do antigo sistema absolutista e autocrático de poder, e anularam os papéis pastorais do sacerdote e dos núcleos de base. Nunca o papa representou tão centralizadamente a onisciência e a onipotência, destroçando por completo as perspectivas de uma teologia democrática, unificadora e de comunhão fraternal dos "homens de boa vontade", católicos ou não.

Esse processo histórico já foi investigado por vários tipos de especialistas. O fato é que Roma voltou a brilhar como a corte do dignitário mais poderoso do universo e a Europa reconquistou a condição de espaço privilegiado do poder institucional da Igreja Católica. A periferia é um celeiro de fiéis, de cérebros, de riqueza e do poder de um vasto império, que passa a valer cada vez menos, à medida em que a "restauração" atinge o seu auge. Como o sistema capitalista de poder, a Igreja Católica desfruta de uma periferia, de subsistemas associados e dependentes do pólo imperial. O poder do papa se multiplicou por cem, depois que ele se projetou energicamente, à frente de todos e de tudo, como o depositário da fé e da esperanças inerentes ao catolicismo e aos vínculos com outras Igrejas cristãs, identificadas com a defesa ativa do capitalismo monopolista e da rendição passiva dos "povos em desenvolvimento"...

Quem perde com isso? Sem dúvida, a própria Igreja Católica, que vive o drama interno da "restauração", por natureza uma contra-revolução prolongada. O pior é que prevaleceram os interesses materiais e a missão terrena mais estreita da Igreja Católica, como sistema mundial de poder autocrático. Mas ao perder, ela ganha, no jogo dialético do poder temporal, institucionalizado hierarquicamente e em interação com os aliados preferidos, os quais defendem a família, a liberdade e a civilização cristã, submetendo a periferia a um processo sem fim de espoliação neocolonial crescente. Os "condenados da terra", aqueles que deveriam ser os prediletos, recebem, em partilha com os que os exploram impiedosamente, a parte que lhes cabe no ósculo ritual sobre o solo "pátrio". Os milhões de miseráveis, que acorrem ao papa para receber a sua benção, a sua mensagem de fé e de esperança, esses ficam privados até da ilusão de que poderiam possuir humanidade nos limites da religião e da compreensão pastoral evangélica de sua prioridade na órbita puramente religiosa.

Aqui está o busílis da questão. Não podemos ser indiferentes ao significado concreto e às consequências desse imenso drama. Eles nos toca diretamente! Nos momentos de dor e sofrimento, de tortura e humilhação, d. Paulo Evaristo Arns não se escondeu atrás de suas responsabilidades pastorais. Não usou duas linguagens, dois códigos éticos, dois sistemas de comportamento: um íntimo; outro exteriorizado. Sem arroubos teatrais, modestamente, como alguém que se via realizando uma missão dolorosa, pelo que ela continha de aviltante, para os que praticavam a violência e para os que a sofriam, ele sempre estava no lugar certo na hora exata (e perigosa). Além disso, modernizou a sua diocese metropolitana, tratou do estudo da pobreza e dos menores abandonados em São Paulo, dos errantes da terra, estilhaçou o isolamento intelectual da Igreja Católica, dinamizou a PUC e deu ênfase às funções culturais do Tuca, abriu novas vias de relação com os jovens e com os estudantes, providenciou para que a tortura não ficasse oculta, sob vários véus intransponíveis, realizou tantas outras coisas que seria difícil enumerar e pôr em uma ordem correta. Essa é a "nova Igreja Católica", que deveria expandir-se na periferia. São Paulo é um exemplo, talvez o maior e o mais dignificante de todos. E o que recebe por isso? Os conservadores católicos, pastores ou crentes, se unem não para imitá-lo e louvá-lo, mas para "tornar este mundo mais seguro", para os míopes e os que se aferram a privilégios como a razão de ser de sua vida.

Deixo de lado o mal que se praticou com d. Lucino Mendes de Almeida, um ilustre bispo, porque é um desdobramento das distorções que a "restauração" reservou para São Paulo. Trata-se de uma inversão grotesca, que não honra a imaginação dos que a puseram em prática - atos sem grandeza e destituídos de sentido. Porque há algo ainda mais escandaloso: as violências que se pretendem impor a d. Pedro Casadáliga, bispo de São Félix do Araguaia. Um poeta, pertencente a uma plêiade de grandes homens da Igreja Católica, no Norte e no Nordeste, um sacerdote de incomparável coragem física e moral, um defensor enérgico dos índios e dos pobres mais oprimidos e espoliados. É um símbolo da renovação, da Igreja revolucionária, que repele a hipocrisia, a covardia, o poder, a ostentação. Mexer com ele, tentar condená-lo! Em nome do quê? A Igreja Católica restaurada pretende selecionar seus mártires entre as suas melhores e mais representativas figuras?

Este não é o momento de calar, de recorrer à solidariedade convencional. Travamos os mesmos combates, tendo em vista objetivos análogos, embora defendamos valores por vezes em conflito e empreguemos meios diferentes de luta para formar o novo homem e a nova sociedade. Orgulho-me desses companheiros de viagem e declaro meu integral repudio às injustiças que estão enfrentando. Sem acreditar em milagres, espero que o bom senso prevaleça, porque a Igreja Católica não pode, nos dias que correm, produzir mártires como se ela fosse uma réplica barata das ditaduras mais hediondas de nossa era. Como combater Pinochet com uma das mãos (embora ignorando o destino trágico do Haiti) e com a outra destruir sacerdotes, bispos e cardeais que se batem contra Pinochet, como se opõem, em campo aberto, destemidos, contra o despotismo militar e o ódio arrasador da violência civil "conservadora"?

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