FLORESTAN
FERNANDES
A
Igreja Católica enfrenta um terrível desafio. Precisa disputar a
hegemonia cultural e espiritual entre dois mundos que ameaçam a
sua existência e sobrevivência. O capital comercializa a fé e a
converte em uma fonte de lucro. Mas dilacera as bases morais e religiosas
da fé. O movimento socialista e comunista superou várias superstições:
mas a sua principal tendência não pode abrir mão de sua filosofia
histórica materialista. Uma convivência tornou-se possível, mas
os dois lados precisariam superar-se para conviver criativamente.
Uma revolução ecumênica forjou as bases de um entendimento. Outrossim,
a barbárie gerada pela civilização da época do capitalismo monopolista,
em sua forma mais avançada, jogou nas mesmas masmorras cristãos
e libertários, católicos e comunistas. Tornou-se possível, pois,
a superação, a defesa da humanidade como um valor absoluto e primordial.
A condição para que essa superação se convertesse em processo histórico
permanente consistia em que a Igreja Católica se descolasse do seu
útero materno, um sistema universal e autocrático de pompa, riqueza
e poder. Isso lançaria a Igreja Católica adiante de todas as forças
culturais e políticas, que pretendem engendrar o novo homem e a
nova sociedade. No entanto, com o correr do tempo o tradicionalismo
e o conservantismo se recompuseram, restabeleceram os centros e
os nervos do antigo sistema absolutista e autocrático de poder,
e anularam os papéis pastorais do sacerdote e dos núcleos de base.
Nunca o papa representou tão centralizadamente a onisciência e a
onipotência, destroçando por completo as perspectivas de uma teologia
democrática, unificadora e de comunhão fraternal dos "homens de
boa vontade", católicos ou não.
Esse
processo histórico já foi investigado por vários tipos de especialistas.
O fato é que Roma voltou a brilhar como a corte do dignitário mais
poderoso do universo e a Europa reconquistou a condição de espaço
privilegiado do poder institucional da Igreja Católica. A periferia
é um celeiro de fiéis, de cérebros, de riqueza e do poder de um
vasto império, que passa a valer cada vez menos, à medida em que
a "restauração" atinge o seu auge. Como o sistema capitalista de
poder, a Igreja Católica desfruta de uma periferia, de subsistemas
associados e dependentes do pólo imperial. O poder do papa se multiplicou
por cem, depois que ele se projetou energicamente, à frente de todos
e de tudo, como o depositário da fé e da esperanças inerentes ao
catolicismo e aos vínculos com outras Igrejas cristãs, identificadas
com a defesa ativa do capitalismo monopolista e da rendição passiva
dos "povos em desenvolvimento"...
Quem
perde com isso? Sem dúvida, a própria Igreja Católica, que vive
o drama interno da "restauração", por natureza uma contra-revolução
prolongada. O pior é que prevaleceram os interesses materiais e
a missão terrena mais estreita da Igreja Católica, como sistema
mundial de poder autocrático. Mas ao perder, ela ganha, no jogo
dialético do poder temporal, institucionalizado hierarquicamente
e em interação com os aliados preferidos, os quais defendem a família,
a liberdade e a civilização cristã, submetendo a periferia a um
processo sem fim de espoliação neocolonial crescente. Os "condenados
da terra", aqueles que deveriam ser os prediletos, recebem, em partilha
com os que os exploram impiedosamente, a parte que lhes cabe no
ósculo ritual sobre o solo "pátrio". Os milhões de miseráveis, que
acorrem ao papa para receber a sua benção, a sua mensagem de fé
e de esperança, esses ficam privados até da ilusão de que poderiam
possuir humanidade nos limites da religião e da compreensão pastoral
evangélica de sua prioridade na órbita puramente religiosa.
Aqui
está o busílis da questão. Não podemos ser indiferentes ao significado
concreto e às consequências desse imenso drama. Eles nos toca diretamente!
Nos momentos de dor e sofrimento, de tortura e humilhação, d. Paulo
Evaristo Arns não se escondeu atrás de suas responsabilidades pastorais.
Não usou duas linguagens, dois códigos éticos, dois sistemas de
comportamento: um íntimo; outro exteriorizado. Sem arroubos teatrais,
modestamente, como alguém que se via realizando uma missão dolorosa,
pelo que ela continha de aviltante, para os que praticavam a violência
e para os que a sofriam, ele sempre estava no lugar certo na hora
exata (e perigosa). Além disso, modernizou a sua diocese metropolitana,
tratou do estudo da pobreza e dos menores abandonados em São Paulo,
dos errantes da terra, estilhaçou o isolamento intelectual da Igreja
Católica, dinamizou a PUC e deu ênfase às funções culturais do Tuca,
abriu novas vias de relação com os jovens e com os estudantes, providenciou
para que a tortura não ficasse oculta, sob vários véus intransponíveis,
realizou tantas outras coisas que seria difícil enumerar e pôr em
uma ordem correta. Essa é a "nova Igreja Católica", que deveria
expandir-se na periferia. São Paulo é um exemplo, talvez o maior
e o mais dignificante de todos. E o que recebe por isso? Os conservadores
católicos, pastores ou crentes, se unem não para imitá-lo e louvá-lo,
mas para "tornar este mundo mais seguro", para os míopes e os que
se aferram a privilégios como a razão de ser de sua vida.
Deixo
de lado o mal que se praticou com d. Lucino Mendes de Almeida, um
ilustre bispo, porque é um desdobramento das distorções que a "restauração"
reservou para São Paulo. Trata-se de uma inversão grotesca, que
não honra a imaginação dos que a puseram em prática - atos sem grandeza
e destituídos de sentido. Porque há algo ainda mais escandaloso:
as violências que se pretendem impor a d. Pedro Casadáliga, bispo
de São Félix do Araguaia. Um poeta, pertencente a uma plêiade de
grandes homens da Igreja Católica, no Norte e no Nordeste, um sacerdote
de incomparável coragem física e moral, um defensor enérgico dos
índios e dos pobres mais oprimidos e espoliados. É um símbolo da
renovação, da Igreja revolucionária, que repele a hipocrisia, a
covardia, o poder, a ostentação. Mexer com ele, tentar condená-lo!
Em nome do quê? A Igreja Católica restaurada pretende selecionar
seus mártires entre as suas melhores e mais representativas figuras?
Este
não é o momento de calar, de recorrer à solidariedade convencional.
Travamos os mesmos combates, tendo em vista objetivos análogos,
embora defendamos valores por vezes em conflito e empreguemos meios
diferentes de luta para formar o novo homem e a nova sociedade.
Orgulho-me desses companheiros de viagem e declaro meu integral
repudio às injustiças que estão enfrentando. Sem acreditar em milagres,
espero que o bom senso prevaleça, porque a Igreja Católica não pode,
nos dias que correm, produzir mártires como se ela fosse uma réplica
barata das ditaduras mais hediondas de nossa era. Como combater
Pinochet com uma das mãos (embora ignorando o destino trágico do
Haiti) e com a outra destruir sacerdotes, bispos e cardeais que
se batem contra Pinochet, como se opõem, em campo aberto, destemidos,
contra o despotismo militar e o ódio arrasador da violência civil
"conservadora"?
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