FLORESTAN
FERNANDES
Especial
para a "Folha da Manhã"
Pode-se
encarar as relações do romance com o folclore sob vários aspectos,
desde o mais elementar aproveitamento do material folclórico como
um fator de realce na observação direta, até à possibilidade de
uma estética que permita um contato e uma comunhão maior entre o
público e o povo. Mas, há uma questão que afeta qualquer tentativa,
ampla ou restrita, do aproveitamento dêsse material por parte do
romancista: sua validade e limites. Sim, porque é preciso considerar
que o romancista faz literatura e não folclore e que além disso
os folcloristas podem também ter suas idéias sôbre o assunto. A
questão coloca-se, pois, em têrmos das relações entre o folclore
e a literatura.
Disse
que se deve considerar também o ponto de vista particular do folclorista.
Deve-se, é claro, porém, mais por uma razão de ordem, que por uma
questão de precedência. O folclorista foi dos últimos a tratar dos
fatos folclóricos - lendas, tradições, mitos, superstições, crendices,
técnicas de cozimento do barro, de modelação, formas de cultivo
da terra, estilos típicos de vida etc. - e quando êle surgia no
Século XIX tinha diante de si um trabalho de notação tão grande,
que poderia iniciar o estudo do folclore indiretamente, nas grandes
obras, começando na antiguidade clássica no teatro grego e em Homero,
passando por Vergílio e Petrônio, até chegar a Gil Vicente, Cervantes,
Mistral... O folclore confundia-se na literatura, embora não houvesse
preocupação alguma em se fazer arte popular. É, aliás, uma sobrevivência
dessa fase muito extensa a idéia de que o folclore constitui uma
parte da literatura.
O
aparecimento dos folcloristas modificou um pouco essa visão das
coisas. De um lado porque êles distinguiam o folclore - cujo têrmo
também criaram - em folclore subjetivo, em que se procura sistematizar
e estudar os elementos folclóricos, buscando por aí atingir uma
formulação científica e teórica, sob os auspícios do positivismo,
e em folclore objetivo, item sob que seriam agrupados todos os elementos
folclóricos, tôdas as danças, as cantigas, as superstições, as crendices,
os provérbios, aquêles modos de ser e de agir típicos de um povo
ou de uma região, o próprio conteúdo do folclore, pois. Já aí ficou
feita uma divisão de trabalho. O estudo propriamente dito do material
folclórico compete ao folclorista, ou qualquer outro especialista
em ciências sociais. O literato, como tal, nada tem que ver com
o "folclore subjetivo". E, é óbvio, pouco lhe interessam as questões
teóricas e os aspectos técnicos do folclore; quando o romancista,
por exemplo, se utiliza de material folclórico, faz notação ou faz
estilização. Põe-se em contato direto com o fato folclórico - um
personagem mítico, como a Iara ou o Saci - nas esferas do folclore
objetivo sem nenhuma outra preocupação.
Os
folcloristas do século XIX e alguns dêste século, entretanto, desvendaram
um novo modo possível de se encarar as relações entre o folclore
e a literatura - ou, mais precisamente, de situar um e outro, partindo
do próprio conceito de folclore. O folclore seria a cultura dos
meios populares, das camadas baixas da população - nas zonas rurais
e urbanas - em poucas palavras: a "cultura dos incultos". Era, pois,
o conjunto de conhecimentos, técnicas e modos de ser dos iletrados,
transmitido oralmente. Distinguia-se da literatura, cultura dos
meios elevados, dos letrados e dos "cultos". A diferença entre a
literatura popular e a literatura erudita é apresentada como uma
diferença fundamental, de natureza: duas formas culturais antagônicas
e, em certo sentido exclusivas. O burguês e o homem do povo - terminologia
de Saintyves e de Maunier - seriam a expressão dêsse antagonismo.
Aquêle vivendo a idade positiva contiana, pensando racional e logicamente
as coisas, capaz também de progresso; enquanto o segundo revelaria
uma etapa anterior do desenvolvimento das sociedades ocidentais
surgindo como um homem imobilizado pelo passado e sufocado sob o
pêso da tradição, pensando as coisas de modo anti-racional e ilógico.
A diferença de mentalidades seria irredutível. Contudo, ela não
é inata: o homem herda-a socialmente, revelando-a à medida que traduz
o seu próprio meio social e cultural, a sua "cultura" - sua literatura
e o seu folclore. Mas, essa irredutibilidade, essa diferença de
natureza, abre um abismo entre o folclore e a literatura. Por isso
diante do artista - romancista ou poeta - que se orientasse por
esta concepção, haveria só três caminhos possíveis: aproveitar o
folclore como fonte de sugestão. Aí o tema folclórico seria mero
ponto de partida, e o que se incorporaria à literatura seria uma
estilização do fato folclórico, e não o próprio fato folclórico.
A essência, pois, da literatura, conservar-se-ia salva. O romance
"Pedro Malasarte" do sr. José Vieira é um exemplo. Ou então o folclore
surge como uma fonte de argumentos estranhos, exóticos e fortes
- de motivos e temas novos, dando uma côr ao fundo do romance, um
ambiente de vida desconhecido. O trabalho do romancista, no caso,
se reduz a um aproveitamento superficial dos fatos folclóricos.
É a notação rápida dos "costumes populares" dos românticos. Nunca
ultrapassam os limites do descritivo e não há nenhum esfôrço no
sentido de entender o homem sob o ângulo daqueles elementos folclóricos.
E, ainda, o terceiro caminho, que é a tentativa mais arrojada: tentar
uma conciliação entre as duas culturas, entre os dois "tipos" de
homem. O tema folclórico deixa de ser simples ponto de partida,
para assumir uma importância nova - o artista acaba atribuindo uma
realidade essencial do mito, submetendo-se-lhe definitivamente.
É a fascinação do abismo, pois o artista pode se despenhar de uma
vez no folclore, como Mistral, adotando uma atitude de participação,
sem que se possa avaliar até onde a solução pode ser aceita como
intermediária. A finalidade maior do artista, entretanto, muitas
vêzes é consciente, neste caso! A revelação essencial e integral
de um povo, dando uma amostra do conflito das duas mentalidades
e um comêço de síntese. Parece-me ser a de Goethe a tentativa mais
vigorosa, no gênero; mas êle já estaria esquecido se não ficasse
mais próximo da "cultura", que da simples peça de títeres que era
o "Fausto". O resultado e o destino dessas aventuras é sempre êsse:
fatalmente o artista dá maior ênfase aos valores de seu meio restrito,
distanciando-se dos valores do povo à medida que as duas esferas
de valores também se distanciam.
Modernamente,
esboça-se um movimento que tende ao aproveitamento mais profundo
dêsses valores folclóricos. De um lado, liga-se a uma concepção
mais ampla de folclore. O folclore como uma expressão das condições
presentes, típicas, da vida do povo, envolvendo todo seu estilo
de vida. Essa concepção abre uma nova ponte entre a literatura e
o folclore porque, então, desaparece aquela imagem do homem do povo
vivendo imobilizado pela tradição e incapaz de progresso, surgindo
em seu lugar o ser humano que êle é. Ou seja, a atenção do artista
desloca-se dos fatos folclóricos pròpriamente dita para as pessoas
que êles caracterizam. Surge aí o homem que interessa à literatura
contemporânea, revelando em suas canções, em suas cantigas em suas
modinhas, em seus desafios, em seus ABC, aquilo que êle pensa, que
êle crê no momento e também o que êle deseja e o revolta. Os valores
folclóricos como uma forma, mesmo de expressão da história contemporânea
do povo e também de sua ideologia política. Aí é possível encarar
o aproveitamento do material folclórico de outra maneira. Primeiro,
em si mesmo como documentário; segundo, como uma espécie de pesquisa
de busca da verdadeira imagem do "homem do povo". É o que acontece
por exemplo no romance moderno de um Jorge Amado ou de um Cyro Alegria.
A estilização é relegada e à notação segue-se um trabalho profundo
de compreensão do homem em função de seus valores típicos. Os limites
entre a literatura e o folclore não só tornam-se menos nítidos e
rígidos, como a literatura apresenta-se como uma forma fecunda de
revelação do folclore.
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