FLORESTAN
FERNANDES
Parece-nos
audácia incrível escrever-se um artigo de jornal sôbre Frederico
Nietzsche. Sòmente a comemoração do centenário de seu nascimento
poderia dar tanta coragem a todos nós que enfrentamos as dificuldades
da emprêsa. Por isso, não me atrevo a mais do que isto: escrever
algumas notas sôbre Nietzsche em forma de artigo. Todavia, que ninguém
se iluda: querendo conhecer Nietzsche verdadeiramente não perca
tempo, comigo e com outros - vá diretamente a Nietzsche, meu caro
leitor. Sairá, como os demais, com uma imagem de Nietzsche. Mas
essa valerá mais do que tudo que se poderá escrever dêle e de seu
pensamento.
Na
esfera dos valores Nietzsche foi verdadeiramente revolucionário:
todos sabemos como a civilização ocidental está impregnada dos valores
éticos oriundos do cristianismo - principalmente aquêles padrões
de altruísmo, piedade, caridade, paciência etc., tôda a ética do
homem que deve agir pensando nas consequências que sua ação pode
ter sôbre os outros - "não faças aos outros o que não queres que
te façam" - saindo o homem ocidental constantemente de si mesmo,
para avaliar sua conduta do ponto de vista da sociedade. Pois bem,
o lado revolucionário da contribuição de Nietzsche se revela aí:
Nietzsche rejeita, juntamente com o cristianismo, todo o sistema
de valores que êle implica. Foi às últimas consequências possíveis
em sua crítica dos valores, pois. Enquanto Comte renega a teologia
cristã, para depois chegar a uma religião positivista e aproveitar
os valores básicos do cristianismo, principalmente o altruísmo -
o sacrifício consciente pelos outros - procurando salvar sobretudo
a família, como fonte de normas morais, e as correntes socialistas
- mesmo as que explicam o religioso a partir do social - conservam
mais ou menos os seus valores éticos fundamentais. Nietzsche chega
à própria negação do cristianismo - como religião e como ideologia,
recusando todos os seus valores. Nesse sentido ainda ultrapassa
Stirner, porque o significado de sua posição é muito mais profundo.
Não se trata apenas de considerar o eu como a realidade única e
primária; trata-se de chegar ao homem plenamente realizado. E aquêle
contínuo desdobramento do eu que a ética cristã exige é pura perda
de personalidade: ganha o rebanho, não o homem. Ao
contrário, o homem deve condensar-se, realizar-se, e não seguir
a moral do rebanho, a moral da submissão, moral do escravo - moral
do cristianismo, em suma. Êsse problema estava duplamente colocado
na época nietzscheana: de um lado devido à crítica parcial, às vêzes
desonesta ou reacionária dos valores: doutro, pela própria imersão
dos indivíduos nesses valores. A sensação de desgraça de Nietzsche
e o seu ódio à mediocridade burguesa explicam-se, assim, também
històricamente. É o momento em que a burguesia vai atingindo, nos
países europeus, a plenitude e em que o desenvolvimento da classe
assegura-lhe o domínio na sociedade. Porém, é do mesmo modo aqui
que começa a negação da classe: ela começa a viver a fase inevitável
de esmagamento. O homem burguês tem o domínio sôbre os outros, todavia,
não tem o poder do homem sôbre si mesmo. Êle sucumbe lentamente
e com êle começa a sucumbir tôda a classe e o sistema de valores
comprometido pela ligação com o cristianismo e pela aceitação de
valores substancialmente contrários à sua própria essência. Deixa
de ser fonte de valores, para ser expressão servil dos valores,
porque êstes se identificam com os interêsses exclusivos de uma
classe satisfeita. O homem perde-se completamente.
O
rompimento com Wagner é fundamental para se compreender a posição
de Nietzsche em relação a êsse problema por assim dizer histórico.
A música wagneriana perdeu o seu valor para Nietzsche; para êle
Wagner não podia ser sincero: Siegfried e Parsifal são incompatíveis.
O dramático da ruptura, todavia, está na compreensão da música wagneriana
como uma expressão e índice da decadência e da impossibilidade de
se realizar uma arte vigorosa, uma arte heróica e poética; a música
alemã jamais poderia levar ao renascimento da tragédia na cultura
européia. O Nietzsche de 1872 enganara-se quando acreditou na possibilidade
de uma arte dionisíaca esquiliana na Europa, através de Wagner.
O seu ressentimento atenuou-se por saber o quanto Wagner, e êle
próprio, estavam vivendo uma fase decadente. A diferença, parece-lhe
é que Wagner é sua vítima e por isso surge como uma expressão mesma
da decadência: enquanto que êle Nietzsche toma consciência da crise
e procura superá-la. Esta tentativa de superação consciente do movimento
histórico leva-o justamente a criar uma filosofia de crítica aos
valores de uma sociedade burguesa arruinada culturalmente por uma
porção de prejuízos, os quais fazem capitular o homem mesmo diante
das normas supremas desenvolvidas pela classe em seu período de
luta com a nobreza.
Chegar
até aqui, entretanto, é fácil. O difícil é resolver um problema
que nos interessa muito: qual o significado dessa crítica nietzscheana,
essa ânsia de transmutação de valores? Porque o pensamento de Nietzsche,
parece-me, é um pensamento de vitalidade, um pensamento construtivo.
Não se trata mais da destruição volteriana: a crítica de Nietzsche
não chega a ser, no fundo, uma crítica destrutiva - êle dá origem,
em sua crítica, também a uma teoria de valores. O trabalho de demolição
constituia uma tarefa subalterna, e estava parcialmente realizado:
a sua crítica foi mais de coerência (como ficou implícito acima),
em que procurava impedir, como se diz vulgarmente, que continuassem
a tapar o sol com a peneira. Estabelecidas as premissas, as consequências
são inevitáveis; covardes são os que, temendo as consequências,
procuram iludir-se e iludir os outros, ocultando-as. O esfôrço de
Nietzsche, porém, orienta-se no sentido de tornar bem claro como
elas são terríveis: aniquilação de todos os valores desvitalizados
e sem raízes no homem. A crítica é em si mesmo uma contribuição,
porque tem seu lado construtivo; mas Nietzsche vai mais longe e
nos fornece - ainda que aqui tenha apenas se revelado um virtuose
do pensamento - uma substituição pelos contrários como se pode ver
principalmente em "Assim Falava Zaratustra". O super-homem é um
homem que se situa num momento de crise de valores e por isso se
coloca acima do convencional e também pode ser verdadeiramente homem
definindo seus próprios valores (êste é o pressuposto básico da
teoria nietzscheana dos valores). Para êle não existe valores definitivos,
sejam coisas ou idéias. É por excelência o homem que mede, que avalia,
e por isso pode operar a transmutação dos valores. O seu aspecto
odioso é apenas aparente: porque êle representa a própria idéia
de progresso. Sem o super-homem o mundo pararia e o desenvolvimento
humano seria impossível - em todos os sentidos. É preciso que alguém
enfrente a ordem existente, o costumeiro, para que haja vida e para
que o mal se transforme dialeticamente em seu contrário - o bem.
Só sob essa condição a humanidade não chegará a faltar a si mesma
um dia. Aí entra a necessidade de uma ética especial para o homem
que vive continuamente em perigo, desafiando sempre o estereotipado
para atingir a inovação. Depois, o mal torna-se bem e o processo
precisa ser repetido pelo super-homem, eternamente insatisfeito.
E a norma socrática de decadência - "conhece-te a ti mesmo" - deve
ser substituída pela norma mais humana do "supera-te a ti mesmo",
porque o homem pode ser: êle não precisa senão de si mesmo.
O
que pode nos interessar mais, todavia, é para onde nos leva essa
concepção. É uma reação como sugerem alguns, visando salvar consigo
tôda a burguesia: é um retôrno ao passado, à aristocracia; ou é
uma superação do próprio momento histórico? É óbvio que parcialmente
Nietzsche revela tôdas essas três tendências e por isso tem sido
aproveitado, mais ou menos excusamente, por Abel e por Caim. Nietzsche,
contudo, não poderia ser atraído para o passado, mas pelo passado.
Essa distinção é importante: sua aristocracia não significa, profundamente,
retôrno; essa confusão dos autores modernos, baseados em sua lei
de recorrência, é lamentável. Nietzsche não queria voltar ao passado,
pois sua filosofia é uma filosofia dinâmica. Isto compromete até
certo ponto a idéia de que sua filosofia pode ser uma filosofia
reacionária, também, feita em favor da burguesia. De fato, suas
idéias principais aproveitaram a burguesia, pelo menos aparentemente:
porque uma reorganização da sociedade com bases em "elites" favoreceria
sobretudo a classe dominante, e porque poderia levá-la a uma redefinição
de valores que, por sua vez, poderia modificar o processo social
novamente em seu benefício. Êsse, porém, é um argumento frívolo
que nem ser lembrado mereceria: há quem possa supor que a burguesia,
supondo isso socialmente possível, poderia aceitar todo um novo
sistema de valores, arriscando-se a perder o prestígio que os seus
próprios valores, sejam quais forem os seus defeitos, asseguram-lhe
e apressar contra si mesmo o processo social? A hipótese de que
Nietzsche tivesse essa pretensão nem pode ser lembrada: êle não
quer salvar a burguesia - antes, procura apressar a sua ruína. Ela
significa a maior garantia dos valores que repugnam a Nietzsche:
a sorte de ambos é inseparável.
Do
mesmo modo que é antiburguês, Nietzsche é anti-socialista, afirmando
isto várias vêzes. Apesar de tudo, sua filosofia tem mais contatos
com êste último - o socialismo - principalmente com aquela corrente
que deriva diretamente de Marx e Engels. A luta do proletariado
com a burguesia significa que a antinomia do senhor e do escravo,
para que Hegel chamou pela primeira vez a atenção, repete-se historicamente.
O senhor vem a depender do escravo e êste desenvolve ràpidamente
uma mentalidade de senhor - com as vantagens de ser mais realista
e mais prático. E luta para conseguir os privilégios daquele. Não
há, pois, um abismo, entre o marxismo e Nietzsche, por exemplo;
nem quanto à visão dinâmica e dramática da vida, e nem mesmo quanto
à necessidade da violência e da ética do "viver em perigo". Em compensação,
a distância entre Nietzsche e outras formas do socialismo, principalmente
as correntes conciliatórias, é incomensurável, ou seja, aproximadamente
a mesma que o separa da democracia.
Em
síntese, não se poder dizer que nesse sentido Nietzsche ultrapassa
o momento histórico. O seu ideal de organização social é o ideal
defendido hoje em dia, por exemplo, por Max Scheller: a sociedade
deve assemelhar-se a uma pirâmide, em que a base seja ocupada pelos
medíocres e o vértice pelos homens superiores. Uma sociedade de
castas, mais ou menos como a sociedade grega no período clássico.
Os medíocres são tão úteis, socialmente, quanto os super-homens,
e desempenham principalmente os trabalhos mecânicos. Quando houver
insatisfação na base da pirâmide, os líderes do movimento devem
ser sugados, passando para o vértice, para o grupo dos senhores
(processo para garantir a estabilidade da organização social). Ainda
aqui Nietzsche leva o seu pensamento às últimas consequências, porque
a vida social, nessas condições, só seria possível numa sociedade
em que a distância social correspondesse a distância cultural entre
os indivíduos. E êsse seria o caminho para a Europa atingir uma
arte dionisíaca e uma filosofia colocada fora do domínio exclusivo
da consciência.
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