Nota Sôbre Frederico Nietzsche

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 19 de outubro de 1944

Neste texto foi mantida a grafia original

FLORESTAN FERNANDES

Parece-nos audácia incrível escrever-se um artigo de jornal sôbre Frederico Nietzsche. Sòmente a comemoração do centenário de seu nascimento poderia dar tanta coragem a todos nós que enfrentamos as dificuldades da emprêsa. Por isso, não me atrevo a mais do que isto: escrever algumas notas sôbre Nietzsche em forma de artigo. Todavia, que ninguém se iluda: querendo conhecer Nietzsche verdadeiramente não perca tempo, comigo e com outros - vá diretamente a Nietzsche, meu caro leitor. Sairá, como os demais, com uma imagem de Nietzsche. Mas essa valerá mais do que tudo que se poderá escrever dêle e de seu pensamento.

Na esfera dos valores Nietzsche foi verdadeiramente revolucionário: todos sabemos como a civilização ocidental está impregnada dos valores éticos oriundos do cristianismo - principalmente aquêles padrões de altruísmo, piedade, caridade, paciência etc., tôda a ética do homem que deve agir pensando nas consequências que sua ação pode ter sôbre os outros - "não faças aos outros o que não queres que te façam" - saindo o homem ocidental constantemente de si mesmo, para avaliar sua conduta do ponto de vista da sociedade. Pois bem, o lado revolucionário da contribuição de Nietzsche se revela aí: Nietzsche rejeita, juntamente com o cristianismo, todo o sistema de valores que êle implica. Foi às últimas consequências possíveis em sua crítica dos valores, pois. Enquanto Comte renega a teologia cristã, para depois chegar a uma religião positivista e aproveitar os valores básicos do cristianismo, principalmente o altruísmo - o sacrifício consciente pelos outros - procurando salvar sobretudo a família, como fonte de normas morais, e as correntes socialistas - mesmo as que explicam o religioso a partir do social - conservam mais ou menos os seus valores éticos fundamentais. Nietzsche chega à própria negação do cristianismo - como religião e como ideologia, recusando todos os seus valores. Nesse sentido ainda ultrapassa Stirner, porque o significado de sua posição é muito mais profundo. Não se trata apenas de considerar o eu como a realidade única e primária; trata-se de chegar ao homem plenamente realizado. E aquêle contínuo desdobramento do eu que a ética cristã exige é pura perda de personalidade: ganha o rebanho, não o homem. Ao contrário, o homem deve condensar-se, realizar-se, e não seguir a moral do rebanho, a moral da submissão, moral do escravo - moral do cristianismo, em suma. Êsse problema estava duplamente colocado na época nietzscheana: de um lado devido à crítica parcial, às vêzes desonesta ou reacionária dos valores: doutro, pela própria imersão dos indivíduos nesses valores. A sensação de desgraça de Nietzsche e o seu ódio à mediocridade burguesa explicam-se, assim, também històricamente. É o momento em que a burguesia vai atingindo, nos países europeus, a plenitude e em que o desenvolvimento da classe assegura-lhe o domínio na sociedade. Porém, é do mesmo modo aqui que começa a negação da classe: ela começa a viver a fase inevitável de esmagamento. O homem burguês tem o domínio sôbre os outros, todavia, não tem o poder do homem sôbre si mesmo. Êle sucumbe lentamente e com êle começa a sucumbir tôda a classe e o sistema de valores comprometido pela ligação com o cristianismo e pela aceitação de valores substancialmente contrários à sua própria essência. Deixa de ser fonte de valores, para ser expressão servil dos valores, porque êstes se identificam com os interêsses exclusivos de uma classe satisfeita. O homem perde-se completamente.

O rompimento com Wagner é fundamental para se compreender a posição de Nietzsche em relação a êsse problema por assim dizer histórico. A música wagneriana perdeu o seu valor para Nietzsche; para êle Wagner não podia ser sincero: Siegfried e Parsifal são incompatíveis. O dramático da ruptura, todavia, está na compreensão da música wagneriana como uma expressão e índice da decadência e da impossibilidade de se realizar uma arte vigorosa, uma arte heróica e poética; a música alemã jamais poderia levar ao renascimento da tragédia na cultura européia. O Nietzsche de 1872 enganara-se quando acreditou na possibilidade de uma arte dionisíaca esquiliana na Europa, através de Wagner. O seu ressentimento atenuou-se por saber o quanto Wagner, e êle próprio, estavam vivendo uma fase decadente. A diferença, parece-lhe é que Wagner é sua vítima e por isso surge como uma expressão mesma da decadência: enquanto que êle Nietzsche toma consciência da crise e procura superá-la. Esta tentativa de superação consciente do movimento histórico leva-o justamente a criar uma filosofia de crítica aos valores de uma sociedade burguesa arruinada culturalmente por uma porção de prejuízos, os quais fazem capitular o homem mesmo diante das normas supremas desenvolvidas pela classe em seu período de luta com a nobreza.

Chegar até aqui, entretanto, é fácil. O difícil é resolver um problema que nos interessa muito: qual o significado dessa crítica nietzscheana, essa ânsia de transmutação de valores? Porque o pensamento de Nietzsche, parece-me, é um pensamento de vitalidade, um pensamento construtivo. Não se trata mais da destruição volteriana: a crítica de Nietzsche não chega a ser, no fundo, uma crítica destrutiva - êle dá origem, em sua crítica, também a uma teoria de valores. O trabalho de demolição constituia uma tarefa subalterna, e estava parcialmente realizado: a sua crítica foi mais de coerência (como ficou implícito acima), em que procurava impedir, como se diz vulgarmente, que continuassem a tapar o sol com a peneira. Estabelecidas as premissas, as consequências são inevitáveis; covardes são os que, temendo as consequências, procuram iludir-se e iludir os outros, ocultando-as. O esfôrço de Nietzsche, porém, orienta-se no sentido de tornar bem claro como elas são terríveis: aniquilação de todos os valores desvitalizados e sem raízes no homem. A crítica é em si mesmo uma contribuição, porque tem seu lado construtivo; mas Nietzsche vai mais longe e nos fornece - ainda que aqui tenha apenas se revelado um virtuose do pensamento - uma substituição pelos contrários como se pode ver principalmente em "Assim Falava Zaratustra". O super-homem é um homem que se situa num momento de crise de valores e por isso se coloca acima do convencional e também pode ser verdadeiramente homem definindo seus próprios valores (êste é o pressuposto básico da teoria nietzscheana dos valores). Para êle não existe valores definitivos, sejam coisas ou idéias. É por excelência o homem que mede, que avalia, e por isso pode operar a transmutação dos valores. O seu aspecto odioso é apenas aparente: porque êle representa a própria idéia de progresso. Sem o super-homem o mundo pararia e o desenvolvimento humano seria impossível - em todos os sentidos. É preciso que alguém enfrente a ordem existente, o costumeiro, para que haja vida e para que o mal se transforme dialeticamente em seu contrário - o bem. Só sob essa condição a humanidade não chegará a faltar a si mesma um dia. Aí entra a necessidade de uma ética especial para o homem que vive continuamente em perigo, desafiando sempre o estereotipado para atingir a inovação. Depois, o mal torna-se bem e o processo precisa ser repetido pelo super-homem, eternamente insatisfeito. E a norma socrática de decadência - "conhece-te a ti mesmo" - deve ser substituída pela norma mais humana do "supera-te a ti mesmo", porque o homem pode ser: êle não precisa senão de si mesmo.

O que pode nos interessar mais, todavia, é para onde nos leva essa concepção. É uma reação como sugerem alguns, visando salvar consigo tôda a burguesia: é um retôrno ao passado, à aristocracia; ou é uma superação do próprio momento histórico? É óbvio que parcialmente Nietzsche revela tôdas essas três tendências e por isso tem sido aproveitado, mais ou menos excusamente, por Abel e por Caim. Nietzsche, contudo, não poderia ser atraído para o passado, mas pelo passado. Essa distinção é importante: sua aristocracia não significa, profundamente, retôrno; essa confusão dos autores modernos, baseados em sua lei de recorrência, é lamentável. Nietzsche não queria voltar ao passado, pois sua filosofia é uma filosofia dinâmica. Isto compromete até certo ponto a idéia de que sua filosofia pode ser uma filosofia reacionária, também, feita em favor da burguesia. De fato, suas idéias principais aproveitaram a burguesia, pelo menos aparentemente: porque uma reorganização da sociedade com bases em "elites" favoreceria sobretudo a classe dominante, e porque poderia levá-la a uma redefinição de valores que, por sua vez, poderia modificar o processo social novamente em seu benefício. Êsse, porém, é um argumento frívolo que nem ser lembrado mereceria: há quem possa supor que a burguesia, supondo isso socialmente possível, poderia aceitar todo um novo sistema de valores, arriscando-se a perder o prestígio que os seus próprios valores, sejam quais forem os seus defeitos, asseguram-lhe e apressar contra si mesmo o processo social? A hipótese de que Nietzsche tivesse essa pretensão nem pode ser lembrada: êle não quer salvar a burguesia - antes, procura apressar a sua ruína. Ela significa a maior garantia dos valores que repugnam a Nietzsche: a sorte de ambos é inseparável.

Do mesmo modo que é antiburguês, Nietzsche é anti-socialista, afirmando isto várias vêzes. Apesar de tudo, sua filosofia tem mais contatos com êste último - o socialismo - principalmente com aquela corrente que deriva diretamente de Marx e Engels. A luta do proletariado com a burguesia significa que a antinomia do senhor e do escravo, para que Hegel chamou pela primeira vez a atenção, repete-se historicamente. O senhor vem a depender do escravo e êste desenvolve ràpidamente uma mentalidade de senhor - com as vantagens de ser mais realista e mais prático. E luta para conseguir os privilégios daquele. Não há, pois, um abismo, entre o marxismo e Nietzsche, por exemplo; nem quanto à visão dinâmica e dramática da vida, e nem mesmo quanto à necessidade da violência e da ética do "viver em perigo". Em compensação, a distância entre Nietzsche e outras formas do socialismo, principalmente as correntes conciliatórias, é incomensurável, ou seja, aproximadamente a mesma que o separa da democracia.

Em síntese, não se poder dizer que nesse sentido Nietzsche ultrapassa o momento histórico. O seu ideal de organização social é o ideal defendido hoje em dia, por exemplo, por Max Scheller: a sociedade deve assemelhar-se a uma pirâmide, em que a base seja ocupada pelos medíocres e o vértice pelos homens superiores. Uma sociedade de castas, mais ou menos como a sociedade grega no período clássico. Os medíocres são tão úteis, socialmente, quanto os super-homens, e desempenham principalmente os trabalhos mecânicos. Quando houver insatisfação na base da pirâmide, os líderes do movimento devem ser sugados, passando para o vértice, para o grupo dos senhores (processo para garantir a estabilidade da organização social). Ainda aqui Nietzsche leva o seu pensamento às últimas consequências, porque a vida social, nessas condições, só seria possível numa sociedade em que a distância social correspondesse a distância cultural entre os indivíduos. E êsse seria o caminho para a Europa atingir uma arte dionisíaca e uma filosofia colocada fora do domínio exclusivo da consciência.

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