FLORESTAN
FERNANDES
O capitalismo foi incapaz de introduzir na América Latina o ciclo
de suas revoluções típicas. Para garantir o seu desenvolvimento,
o capital teve de recorrer, com frequência, a ditaduras cruéis.
Oscilou sempre entre o conservantismo, a revolução política (pela
cúpula) e reformas de superfície, de alcance social restrito, culminando
na consagração da contra-revolução preventiva como último recurso
de autodefesa. E em confronto com esse quadro que se deve avaliar
a revolução cubana. Ela retira a América Latina da constante das
"revoluções interrompidas" e da retórica ideológica "liberal", que
proclama o reformismo e o nacionalismo democrático, enquanto o capital
se vale da força bruta dos militares e da opressão como um estilo
de vida. A internacionalização das economias somente beneficia os
interesses financeiros, nacionais e estrangeiros. Os trabalhadores
assistem atônitos ao espraiar de uma "abundância" que não os alcança
e que multiplica sem cessar os índices de miséria, de migrações
dos miseráveis, de violência contra os desvalidos, de exclusão,
espoliação e marginalização dos mais humildes.
A
revolução cubana não só rompeu com esse paradigma, ela forjou uma
realidade histórica oposta. Ela comprovou que a pobreza, a "apatia
das massas" e o subdesenvolvimento não são obstáculos intransponíveis
à mudança social revolucionária. Ficou patente que qualquer país
latino-americano tinha ao alcance das mãos uma saída revolucionária
para os seus dilemas, insolúveis dentro do capitalismo. A Ilha possui
pequeno porte geográfico e demográfico; fôra reduzida à condição
de produtor de um único artigo (o açúcar) e de um único mercado
importador e exportador (os Estados Unidos); sofrera intensa devastação,
seja por seu poderoso vizinho, seja por classes dirigentes totalmente
corruptas; conhecera, ao longo do tempo, o egoismo frio de governos
coloniais, de ditaduras mais ou menos impiedosas, de regimes democráticos
de fachada e descobrira que nada poderia esperar de um Estado títere,
um meio para outros fins das oligarquias internas, das plutocracias
estrangeiras e do governo dos Estados Unidos. Os males do ciclo
de trabalho da cana, a miséria crônica da maior parte dos menores,
o desamparo dos velhos, o inferno em que se transformara a vida
quotidiana das classes subalternas, a ruína irreparável da maioria
das famílias pobres não entravam em linha de conta na esfera política.
Esta só cuidava do desenvolvimento caucionando pelos interesses
da matriz e das classes privilegiadas locais. Tal situação não comportava
alternativa e o grosso da população ou se submetia passivamente
a uma ordem social perversa ou teria de recorrer a uma insurreição
cruenta contra ela. A revolução social brotava, portanto, como um
"produto natural , o fruto maduro de uma ordem social que caminhava
cegamente na direção de um desmoronamento explosivo. A guerrilha,
que conquistou o poder, não gerou por si mesma essa situação histórica
revolucionária. Ela própria foi causada por tal situação, que iria
exigir ainda, mais tarde, a aplicação de práticas guerrilheiras
na condução do Estado revolucionário e em todas as esferas da vida.
A
guerrilha e o Exército rebelde que a substituiu, se constituiram
no braço armado da revolução, primeiro para bater a ditadura de
Batista, em seguida para derrotar o despotismo arrogante dos Estados
Unidos, reduzir a escombros o antigo regime e lançar os alicerces
de Cuba revolucionária. A revolução cubana encerrava uma época histórica
e, o que é mais importante, abria a época histórica nova, impregnada
de nacionalismo libertário, de antiimperialismo, de socialismo e
de comunismo revolucionários. Uma confluência de ideais e de valores
contraditórios, que se unificavam na prática porque eram sustentadas
por forças sociais nativas e centrípetas e porque correspondiam
à ascenção do Povo ao centro da cena histórica. A autonomia da Nação
se configurava como expressão da vontade coletiva dos trabalhadores
e a continuidade da revolução repousava em seus ombros, como a única
classe revolucionária que aparecera como tal na história de Cuba.
Os esquecidos e excluídos se convertiam, assim, na verdadeira garantia
de que poderiam ocorrer zigue-zagues e até oscilações perturbadoras
e retrocessos, mas eles não reduziriam a revolução cubana a uma
"revolução interrompida".
Isso não quer dizer que a revolução cubana tenha cumprido todas
as suas tarefas no quadro histórico da pré-transição. É óbvio que
não. A pobreza e o subdesenvolvimento continuam lá, embora tenham
deixado de ser um fator de desigualdade crescente, de dominação,
de iniquidades sociais e políticas, de exploração do homem pelo
homem, de cruel hegemonia estrangeira. A diferenciação do sistema
de produção enfrenta barreiras que nascem de condições naturais,
com frequência agravadas pela praga norte-americana. As bases materiais
da instauração do socialismo são comprimidas naturalmente, exigem
enormes e permanentes sacrifícios, impõem técnicas drásticas de
acumulação e de centralização do planejamento, o que afeta negativamente
e por vezes impede uma consolidação mais rápida da democracia proletária.
Essas coisas não são ignoradas nem escamoteadas ideologicamente.
Elas comparecem com objetividade nos discursos e escritos de Fidel
Castro, nos relatórios do Partido Comunista Cubano e em outros documentos
oficiais. De outro lado, elas são de conhecimento comum e fazem
parte da reeducação pelos fatos duros da vida. Da criança ao velho,
todos sabem o que custa o que consomem (como objetivação do trabalho
humano produtivo), o que representa e qual é o destino do que deixam
de consumir (como condição da igualdade e do desenvolvimento socialista)
e por que o carro não pode ser posto adiante dos bois em todos os
níveis (como ocorre com a instrução pública, a assistência médica
e hospitalar, o amparo à velhice, a garantia de emprego e a defesa
militar). Prevalece uma grande ansiedade por novas conquistas e
pela superação das limitações e contradições imperantes - inclusive
as que dizem respeito ao controle democrático do Estado revolucionário.
Mas ninguem se dispõe a arriscar tudo o que se obteve em uma cartada
afoita e infantil. Os "milagres" fazem parte da tradição capitalista,
especialmente na periferia, porque as promessas nada valem.
O
teste político da revolução cubana só se delineia efetivamente na
década de setenta. As metas mais ambiciosas de redimensionamento
da produção e de aceleração concentrada do desenvolvimento econômico
são concebidas em função da famosa crise da safra, uma crise que
parecia econômica, mas era global e punha em questão a eficácia
do governo e de todo o regime, o que Fidel Castro percebeu e aproveitou
corajosamente. Parecia que essa década permitira dar um grande salto
econômico, administrativo e político, encerrando a fase preparatória
à transição socialista propriamente dita. Contudo, perdas de safras,
ocasionadas por fatores naturais, sabotagens de origem externa,
oscilações nos mercados de preços, etc., interferiram nas previsões
e no rendimento das programações. A década de oitenta herdou problemas
que deveriam estar resolvidos ou, pelo menos, atenuados. Não obstante,
os programas de experimentação e de implantação e de experimentação
e de implantação do poder popular foram cumpridos à risca. Depois
dos tateios iniciais da década de sessenta e de várias tentativas
ulteriores de encetar a institucionalização do poder popular, finalmente
emergia um salto qualitativo decisivo (com vistas à situação de
Cuba). Subsistem muitas arestas e contradições, que não vem ao caso
de bater aqui. Em si mesmo o avanço é importantíssimo. Ele ajuda
certos requisitos de organização do poder popular às bases materiais
e aos ritmos históricos efetivos da revolução. Alem disso, permite
estabelecer um mínimo de controles democráticos institucionalizados
sobre o planejamento, as tendências à burocratização e as atividades
de um poderoso partido único. Não consigna nenhum passe de mágica
com referência à autogestão operária ou outras manifestações da
forma política de democracia socialista. Mas confere corpo e fluidez
à influência organizada do poder popular. E, ao fazê-lo, recupera
e refunde os ideais tidos por guevarianos (embora sejam, na verdade,
profundamente cubanos) de não permitir a preponderância do "desenvolvimento
econômico" sobre a "revolução social". Guevara se batia por uma
interdependência, que faria socialismo e comunismo correrem parelhas
em todas as transformações essenciais. A institucionalização do
poder popular restabelece, portanto, o sentido histórico da revolução
cubana. O socialismo não vem para ficar, mas ele precisa ser consolidado
como condição para o advento do comunismo em uma etapa mais distante.
A
revolução cubana, dessa perspectiva, desvenda o futuro da América
Latina. Uma nova civilização já começou a ser criada, em uma sociedade
nova e por homens novos, libertos das servidões do colonialismo
e do neocolonialismo. O que está em jogo não é mais o que se imaginou,
na década de sessenta, ser a "via cubana" para a revolução e o socialismo
- a guerrilha. Após vinte e cinco anos de vitória e aprofundamento
da revolução, Cuba dá uma lição de humildade, de firmeza e de determinação,
inclusive, que a revolução possui vários caminhos na América Latina.
Em um plano mais amplo, ela realiza uma síntese que torna o socialismo
e o comunismo realidades nativas. Portanto, Cuba não exporta, como
se disse com maldade, o "socialismo da miséria". Ela é um dos países
socialistas mais autênticos e o único que imprimiu vida estuante
própria ao principio da liberdade igualitária.
|