FLORESTAN
FERNANDES
A presente disputa, que ocorre no PT, tem sido vista através de
paradigmas equivocados. O PT ainda é um partido "virgem", que não
foi deformado por duas moléstias legais: 1) o clientelismo, o paternalismo
e o fisiologismo, que constituem o traço marcante de nossa tradição
política subdemocrática; 2) pelo convívio com o poder, especialmente
o poder institucional, organizado e corroído por interesses espúrios.
Não são suas origens operárias nem suas posições socialistas que
o protegem. É a sua idade, o idealismo por vezes cru e ingênuo,
mas sadio e libertário, que o impulsiona nas contestações, nas solidariedades,
nos sacrifícios que exigem companheirismo invulnerável nas lutas
políticas cotidianas. O partido se tece, avança gradualmente, transforma-se.
Dentro dele convivem várias ideologias e políticas de esquerda.
Qual vencerá? Como será o PT em seu estágio maduro? Repetirá a tragédia
da social democracia européia, os dramas do partido comunista ou
se revelará capaz de unir as várias tendências e gerar o partido
de esquerda de novo tipo que as Américas ibéricas necessitam?
Partido
jovem e de jovens, de operários, sindicalistas e intelectuais, lança-se
ao inevitável: a disputa do "poder oficial", ainda em plena formação
e sem ter resolvido o que é (ou deveria ser) um "partido de massas
e socialistas". Isso requer dos candidatos que sejam indulgentes
diante da voracidade dos auditórios, que decidem de baixo para cima,
a quem e por que irão apoiar. Os vários níveis de decisão partidária
definem-se mais facilmente. Conhecem os candidatos e suas possibilidades
eleitoriais. As bases, no entanto, não estão empenhadas em conceder
prioridade ao elemento eleitoral. Querem "construir o partido".
A pugna eleitoral é o objetivo, porém não é um valor. As bases vão
ao fundo das discrepâncias das várias correntes, tentando depurá-las,
para esclarecer, acelerar a maturidade e a unificação político-ideológica
do partido. Elas também arrancam dos candidatos o que eles têm dentro
de si, em suas mentes e corações. Temem o oportunismo, que infestou
a nossa esquerda, e o baluartismo, que pré-fabrica os "melhores".
Os candidatos são constrangidos a vomitar em público o que são,
o que pensam e o que pretendem fazer. A escolha é dura e experimental.
Deixa marcas indeléveis nos que passam por ela. Em suma, o prestígio
e o potencial eleitoral contam só indiretamente, pois os que os
possuem contam com maior apoio nas bases. A direção vê-se colhida
em uma armadilha. Os dirigentes não podem predeterminar os arcos
de alianças "mais viáveis e promissores". Eles são induzidos por
mediações que sobem de baixo.
Dois
companheiros meus se defrontam com essas exigências em escala máxima.
Refiro-me a Plínio de Arruda Sampaio e a Luiza Erundina. Plínio
já era meu amigo muito antes do aparecimento do PT. Conhecia sua
enorme capacidade de trabalho, sua experiência administrativa, sua
seriedade intelectual e o seu ardor reformista, que evoluiu, no
Chile, para posições socialistas firmes. Na Assembléia Nacional
Constituinte pude descobrir melhor suas qualidades de militante.
Ele não pretende servir-se do PT, mas pôr-se a seu serviço, no campo
mais amplo da instauração de uma sociedade democrática. Luiza Erundina
é um vulcão. Fizemos uma dobradinha na campanha eleitoral e tive,
assim, a oportunidade de aquilatar sua identidade com os oprimidos
e o vigor de sua devoção ao PT. A sua cruzada consiste em conferir
aos oprimidos meios próprios de luta política, para que eles conquistem,
coletivamente, melhores condições de vida e logrem avançar até ao
socialismo. Os partidos da ordem dificilmente poderiam juntar, numa
mesma disputa, candidatos de tamanho valor comprovado e de igual
competência. O que os diferencia, na perspectiva petista? O equacionamento
das tarefas cruciais do partido, nesta conjuntura. Plínio focaliza
um arco de alianças amplo, que facilite a desmontagem da "Nova"
República e a implantação da democracia. Naquilo que é vital à estratégia
do partido, dispõe-se a desenvolver e a fortalecer os conselhos
populares. Contudo, um amplo arco de alianças implica em atribuir,
pelo menos inicialmente, funções consultivas aos conselhos populares.
Erundina também evita remeter o PT para o isolamento político. Porém,
concebe o arco de alianças em um patamar ofensivo de luta de classes,
circunscrevendo-o aos partidos de esquerda. De outro lado, abre
maior espaço político aos conselhos populares, através de funções
deliberativas. Em comum, os dois candidatos não cultivam ilusões.
Os conselhos são vistos como órgãos da sociedade civil e, a curto
ou a médio prazos, só poderão render reformas sociais decisivas,
mas distantes da dualidade do poder. Trata-se da melhor maneira
de administrar o sistema de poder municipal, sob condições reais
de participação popular.
Por
formação, minha ótica é disjuntiva. A questão cadente, para mim,
são as tarefas do proletariado, em seus vários níveis e em conjunto,
na transformação da sociedade civil e na conquista do poder. Os
nossos trabalhadores ainda não saturaram as entidades sindicais
e as camadas populares ainda não politizaram, efetivamente, seus
movimentos sociais e suas organizações locais. Prevalece uma antinomia
paralisadora. As condições objetivas seguem à frente das condições
subjetivas de consciência e de luta política de classe. Herdamos
um atraso considerável e que precisa ser superado rapidamente. As
consequências negativas dessa situação concreta são transparentes.
Os proletários não formam nem multiplicam conselhos populares e
tão pouco optam em massa por partidos de esquerda. Dispersam-se
e fortalecem os blocos de poder da burguesia, com seus candidatos
tipo Montoro, Quadros ou Quércia. Por isso, as campanhas do PT devem
conter elevado teor de socialização política.
Em
meu entender, é aí que se tornam nítidas certas vantagens incisivas
do programa de Erundina. Ele aponta, com extrema acuidade, os dilemas
que São Paulo descarrega sobre os miseráveis, os mais ou menos pobres,
os trabalhadores, como uma das megalópolis mais cruéis e desumanas
da era atual. Dilemas que são políticos e somente se apresentarão
como questões administrativas quando forem submetidos a controle
social.
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