O PT - DILEMAS DAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 9 de junho de 1988.

FLORESTAN FERNANDES

A presente disputa, que ocorre no PT, tem sido vista através de paradigmas equivocados. O PT ainda é um partido "virgem", que não foi deformado por duas moléstias legais: 1) o clientelismo, o paternalismo e o fisiologismo, que constituem o traço marcante de nossa tradição política subdemocrática; 2) pelo convívio com o poder, especialmente o poder institucional, organizado e corroído por interesses espúrios. Não são suas origens operárias nem suas posições socialistas que o protegem. É a sua idade, o idealismo por vezes cru e ingênuo, mas sadio e libertário, que o impulsiona nas contestações, nas solidariedades, nos sacrifícios que exigem companheirismo invulnerável nas lutas políticas cotidianas. O partido se tece, avança gradualmente, transforma-se. Dentro dele convivem várias ideologias e políticas de esquerda. Qual vencerá? Como será o PT em seu estágio maduro? Repetirá a tragédia da social democracia européia, os dramas do partido comunista ou se revelará capaz de unir as várias tendências e gerar o partido de esquerda de novo tipo que as Américas ibéricas necessitam?

Partido jovem e de jovens, de operários, sindicalistas e intelectuais, lança-se ao inevitável: a disputa do "poder oficial", ainda em plena formação e sem ter resolvido o que é (ou deveria ser) um "partido de massas e socialistas". Isso requer dos candidatos que sejam indulgentes diante da voracidade dos auditórios, que decidem de baixo para cima, a quem e por que irão apoiar. Os vários níveis de decisão partidária definem-se mais facilmente. Conhecem os candidatos e suas possibilidades eleitoriais. As bases, no entanto, não estão empenhadas em conceder prioridade ao elemento eleitoral. Querem "construir o partido". A pugna eleitoral é o objetivo, porém não é um valor. As bases vão ao fundo das discrepâncias das várias correntes, tentando depurá-las, para esclarecer, acelerar a maturidade e a unificação político-ideológica do partido. Elas também arrancam dos candidatos o que eles têm dentro de si, em suas mentes e corações. Temem o oportunismo, que infestou a nossa esquerda, e o baluartismo, que pré-fabrica os "melhores". Os candidatos são constrangidos a vomitar em público o que são, o que pensam e o que pretendem fazer. A escolha é dura e experimental. Deixa marcas indeléveis nos que passam por ela. Em suma, o prestígio e o potencial eleitoral contam só indiretamente, pois os que os possuem contam com maior apoio nas bases. A direção vê-se colhida em uma armadilha. Os dirigentes não podem predeterminar os arcos de alianças "mais viáveis e promissores". Eles são induzidos por mediações que sobem de baixo.

Dois companheiros meus se defrontam com essas exigências em escala máxima. Refiro-me a Plínio de Arruda Sampaio e a Luiza Erundina. Plínio já era meu amigo muito antes do aparecimento do PT. Conhecia sua enorme capacidade de trabalho, sua experiência administrativa, sua seriedade intelectual e o seu ardor reformista, que evoluiu, no Chile, para posições socialistas firmes. Na Assembléia Nacional Constituinte pude descobrir melhor suas qualidades de militante. Ele não pretende servir-se do PT, mas pôr-se a seu serviço, no campo mais amplo da instauração de uma sociedade democrática. Luiza Erundina é um vulcão. Fizemos uma dobradinha na campanha eleitoral e tive, assim, a oportunidade de aquilatar sua identidade com os oprimidos e o vigor de sua devoção ao PT. A sua cruzada consiste em conferir aos oprimidos meios próprios de luta política, para que eles conquistem, coletivamente, melhores condições de vida e logrem avançar até ao socialismo. Os partidos da ordem dificilmente poderiam juntar, numa mesma disputa, candidatos de tamanho valor comprovado e de igual competência. O que os diferencia, na perspectiva petista? O equacionamento das tarefas cruciais do partido, nesta conjuntura. Plínio focaliza um arco de alianças amplo, que facilite a desmontagem da "Nova" República e a implantação da democracia. Naquilo que é vital à estratégia do partido, dispõe-se a desenvolver e a fortalecer os conselhos populares. Contudo, um amplo arco de alianças implica em atribuir, pelo menos inicialmente, funções consultivas aos conselhos populares. Erundina também evita remeter o PT para o isolamento político. Porém, concebe o arco de alianças em um patamar ofensivo de luta de classes, circunscrevendo-o aos partidos de esquerda. De outro lado, abre maior espaço político aos conselhos populares, através de funções deliberativas. Em comum, os dois candidatos não cultivam ilusões. Os conselhos são vistos como órgãos da sociedade civil e, a curto ou a médio prazos, só poderão render reformas sociais decisivas, mas distantes da dualidade do poder. Trata-se da melhor maneira de administrar o sistema de poder municipal, sob condições reais de participação popular.

Por formação, minha ótica é disjuntiva. A questão cadente, para mim, são as tarefas do proletariado, em seus vários níveis e em conjunto, na transformação da sociedade civil e na conquista do poder. Os nossos trabalhadores ainda não saturaram as entidades sindicais e as camadas populares ainda não politizaram, efetivamente, seus movimentos sociais e suas organizações locais. Prevalece uma antinomia paralisadora. As condições objetivas seguem à frente das condições subjetivas de consciência e de luta política de classe. Herdamos um atraso considerável e que precisa ser superado rapidamente. As consequências negativas dessa situação concreta são transparentes. Os proletários não formam nem multiplicam conselhos populares e tão pouco optam em massa por partidos de esquerda. Dispersam-se e fortalecem os blocos de poder da burguesia, com seus candidatos tipo Montoro, Quadros ou Quércia. Por isso, as campanhas do PT devem conter elevado teor de socialização política.

Em meu entender, é aí que se tornam nítidas certas vantagens incisivas do programa de Erundina. Ele aponta, com extrema acuidade, os dilemas que São Paulo descarrega sobre os miseráveis, os mais ou menos pobres, os trabalhadores, como uma das megalópolis mais cruéis e desumanas da era atual. Dilemas que são políticos e somente se apresentarão como questões administrativas quando forem submetidos a controle social.

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