| FLORESTAN 
              FERNANDES  
              Fala-se muito atualmente em romance social brasileiro, ligando-se 
              o seu aparecimento aos nomes mais consagrados de nossa literatura 
              contemporânea, principalmente àquela plêiade nordestina, surgida 
              após a efêmera passagem do nosso mal definido modernismo. Mas, se 
              atentarmos ao significado das palavras, e não voltarmos as costas 
              aos problemas correlatos que elas suscitam, o assunto se põe de 
              um modo bem mais complexo.  Primeiro 
              que tudo, trata-se do próprio "romance social". O que vem a ser 
              romance social? Parece-nos que há um equívoco no emprêgo da expressão, 
              demasiada simplista em sua essência devido a um certo esquematismo 
              com que vulgarmente representamos a literatura brasileira em particular 
              e a literatura em geral. E êste está mais relacionado à hierarquização 
              ou divisão dos autores em "escolas", do que ao próprio conteudo 
              de suas obras. É o esquema puro e simples do "como se": faríamos 
              literatura como se faz um "plano" de estudos para um longo período 
              de férias. A questão todavia é mais complicada. O romance não é 
              um "como se"; é sobretudo vida e por mais que o autor evite, sempre 
              traduz alguma coisa que ultrapassa os quadros preestabelecidos. 
               Por 
              isso, romance social pode ser todo romance, porque o individuo não 
              existe por si e para si. À medida que as situações se sucedem - 
              mesmo no esquema a-social e atemporal dos romances "interiores" 
              - uma rêde mais ou menos complicada de relações vai aparecendo e 
              se precisando constituindo o ambiente existencial dos protagonistas 
              e geralmente dentro de um clima ao qual não é completamente estranho 
              o próprio romancista. Pouco a pouco, todo um mundo se forma: aquêle 
              mundo em que os personagens existem e que torna coerente a sua ação 
              e um sem número de valores se condensam, explicando logicamente 
              a razão de ser daquele mundo e a conduta dos indivíduos que o representam 
              mesmo que êsse mundo seja um mundo de dissipação e de dandís. Êle 
              existe e o julgamento do autor se faz a partir de sua capacidade 
              em recriar ambientes e nestes criar um clima de vida humana, por 
              meio de personagens vivos, em interação, caracterizados por sua 
              conduta e pelos padrões de comportamento que a explicam. O importante, 
              pois, não é o enredo, que pode ser artificialmente produzido pelo 
              autor, em função de um determinado gôsto ou princípios estéticos 
              que vão orientar as situações e as colocar num todo orgânico; tão 
              pouco o grau ou intensidade de tragédia que êle pode insuflar na 
              vida de seus personagens, atingindo o climax desta ou daquela maneira. 
              Êsses e outros problemas implícitos são condições puramente artesanais, 
              por assim dizer parte dos instrumentos de trabalho, de acessórios, 
              de que o autor dispõe e de que podem resultar a perfeição, o bem 
              acabado e o equilíbrio da obra - os seus aspectos formais, externos 
              e também o mecanismo de estruturação interna. O essencial, entretanto, 
              é a fixação do drama cotidiano: o autor apenas ressuscita os personagens: 
              sua fôrça criadora e o valor da obra dependem do modo que os pode 
              acompanhar nessa segunda vida. Exemplificando: "Quincas Borba" poderia 
              ter sido uma obra prima da literatura universal; o rigido esquematismo 
              do enredo - que se pode transformar em gráfico, facilmente - levou, 
              entretanto, Machado de Assis a algumas incongruências, fazendo-o 
              sair do plano existencial dos personagens e cometer certos artificialismos 
              que só não descambaram para o grosseiro devido ao profundo domínio 
              que tinha da parte artesanal de sua arte; nas mãos de outro romancista, 
              que dominasse menos os recursos técnicos do romance e não soubesse 
              tirar partido do lado ridículo das situações falsas, seria um dramalhão 
              de circo.  Estaríamos, 
              pois, em qualquer romance, diante de um romance social. Social por 
              causa de um certo ambiente existencial, por causa das relações dos 
              personagens e sua posição naquele ambiente, sua reação aos valores 
              nele implicados etc.; mas isto não serve para caracterizar um romance. 
              Pode quando muito localizar o autor num determinado grupo de indivíduos; 
              "La Recherche du Temps Perdu" só poderia ser escrita por uma pessoa 
              efetivamente ligada àquele meio e com experiências positivas a seu 
              respeito, Proust, por exemplo. E para facilitar o que poderia chamar 
              de crítica cientifica (Hannequim) e pouco mais (como: estudo da 
              psicologia social - a partir do comportamento dos personagens de 
              Macedo e de Veríssimo, evidenciando-se as diferenças implicadas 
              pela transformação do meio social).  Há 
              outro tipo de romance que pode ser chamado também de romance social 
              e que no Brasil não produziu nenhum rebento notável; é o romance 
              interessado, o romance-tese, que se põe a serviço de alguma ideologia. 
              O romancista toma ao mesmo tempo uma posição e desenvolve um tema, 
              com a intenção de, pelo menos, fazer o seu público pensar sôbre 
              aquêles problemas. Errôneamente chamou-se a esta tendência de "populista", 
              ligando o aspecto propriamente doutrinário à condição dos personagens 
              dos romances.  Acontece 
              que a passagem da sociedade democrática de "elites" para uma sociedade 
              liberal democrática de massas refletiu-se no campo da cultura, fazendo 
              com que muitos autores se preocupassem com o povo, com a massa humilde, 
              do mesmo modo que os do século XIX e ainda hoje alguns afetivamente 
              presos aos seus valores tivessem como tema básico de seus romances 
              a burguesia, que aproveitara a Revolução. Aquêles autores, é lógico, 
              colocaram-se no polo opôsto e sustentaram - de um modo velado, como 
              entre nós, ou abertamente - a reivindicação das massas ou mais propriamente 
              dos pobres, buscando-as frequentemente numa das correntes doutrinárias 
              provenientes do socialismo (como por exemplo Istrati que desenvolve 
              os princípios do sindicalismo em tôrno de personagens da classe 
              proletária na "Casa Thüringer"). De modo que ficou mais ou menos 
              estabelecido que a repercussão das transformações das sociedades 
              ocidentais nas esferas do romance, fôsse a manifestação de uma tendência 
              social e que o romancista servia-se do romance para chamar a atenção 
              dos governos para os problemas das massas, já que não era para apresentar 
              o sofrimento como o sentido profunda da vida, como na solução dostoiewskiana... 
               E 
              dúplice confusão se fêz: 1) esqueceu-se que nas primeiras manifestações 
              do romance sua principal preocupação foi a burguesia vitoriosa e 
              suas reivindicações; 2) que nem sempre o autor desenvolve um tema 
              ou toma uma atitude que se poderia chamar ideológica, apenas focaliza 
              a vida dos personagens das classes que constituem o centro da cena, 
              não se importando se são humildes ou pertencem às últimas camadas 
              da classe burguesa.  Parece-nos 
              que essa confusão se faz no Brasil ao se caracterizar como romance 
              social a obra de José Lins do Rego, Jorge Amado, José Américo, etc., 
              etc.. Êles têm de social aquêle ambiente existencial a que pertencem 
              os indivíduos e ao qual já nos referimos acima: pouco importa que 
              sejam humildes ou não.  O 
              romance social, strictu sensu, seria o romance em que o autor se 
              dedicasse ao estudo de uma estrutura social e ao funcionamento da 
              sociedade. Ora, qualquer um dos autores contemporâneos só faz isso 
              parcialmente (José Lins do Rego, por exemplo, focaliza os aspectos 
              relacionados ao engenho de açúcar e à transição que se está processando 
              das formas patriarcais para outras semi-urbanas; José Américo fixa 
              mais a miséria e a mobilidade das populações nordestinas acarretadas 
              pelas sêcas e certos atavismos ibero-brasileiros). Neste particular 
              ficam aquem de José de Alencar, que procurou em seus romances estudar 
              a sociedade brasileira do império dentro de um plano através de 
              figuras típicas, como a mulher, o gaucho etc., relacionando-as aos 
              costumes e à moral da época (vê-se que procurou abordar pois, estrutura 
              social e cultural, ao mesmo tempo).  Entretanto, 
              alguma coisa deve caracterizar o romance brasileiro contemporâneo 
              como social, alguma coisa que escape ao rígido formalismo das conceituações. 
              Parece-nos que essa caracterização, todavia deve ser procurada noutro 
              sentido. Não nas relações entre o autor e certas ideologias, ou 
              entre o autor e os ambientes sociais analisados, mas dinâmicamente 
              no desenvolvimento do romance brasileiro e suas conexões com a vida 
              social. 
 
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