O
historiador marxista quis forjar um instrumental que servisse de
base para socialistas e democráticos
FLORESTAN
FERNANDES
Especial para a Folha
O maior enigma posto por Caio Prado Júnior, como pessoa, cidadão
e pensador, é sua ruptura radical com a ordem social existente.
Tomo a palavra no seu sentido etimológico, salientado por Marx ao
afirmar que ser radical é ir à raiz das coisas. Lamento o tempo
perdido. Nunca lhe perguntei nada sobre sua ruptura total com sua
classe; e os escritos iluminam esse período vital, de 1924 a 1928
e de 1924 a 1931. O que se passou na evolução da consciência social
crítica, que o guiou por transformações tão aceleradas e profundas?
Havia
efervescência intelectual e política na cidade de São Paulo. Os
fatos são conhecidos. E São Paulo, como a única cidade tipicamente
burguesa do Brasil, tocava as mentes dos seres sensíveis, conduzia
os operários à inquietação a uma atitude de quase repugnância diante
de um quadro doloroso de miséria, exploração e opressão. Ele não
foi único na rebeldia. Oswald de Andrade, Pagu e outros modernistas
ergueram a bandeira da antropofagia e do inconformismo político
como uma condenação sarcástica e simbólica às omissões imperantes.
Todavia, ninguém saído das elites revela idêntica tenacidade, congruência
e disposição de ir até o fim, às raízes das coisas.
O
modernismo só explica uma tendência à renovação, às vezes temperada
(ou destemperada) com oscilantes manifestações de iconoclastia.
Caio Prado Júnior ostenta uma aceleração contínua, que percorre
uma passagem rápida do radicalismo democrático-burguês para a oposição
intransigente proletário-comunista. Mantendo-se na mesma posição
de classe, inverteu as baterias e de seu combate e tornou-se um
militante, um político de proa (em 1935 já era vice-presidente da
Aliança Nacional Libertadora) e, reiterando a troca de identidade,
em 1947 tornou-se deputado por São Paulo (aliás, um deputado inovador
e exemplar).
É
óbvio que a ruptura política respondia às frustrações provocadas
pelo destino do Partido Democrático e pela traição dos "revolucionários"
de 1930 aos ideais de subversão da ordem. Porém havia outra ruptura
paralela, de natureza moral: não a substituição de "mores", mas
a ressocialização da pessoa dentro de "mores" antagônicos. A passagem
envolvia um renascimento para a vida, do qual brotou e cresceu um
comunista confiante na opção na qual jogara tudo, desde a lealdade
de classe até a relação intelectual com o mundo e o comportamento
político.
Os
cinco anos de faculdade de direito também não explicam uma evolução
que converte o radicalismo intelectual em transgressão. A instituição-chave
na seleção e preparação dos guardiões civis da ordem sempre alimenta
o aparecimento de um pugilo de filhos pródigos, que submergem na
contestação aos costumes, ao conservadorismo cultural e ao reacionarismo
político; e depois renascem como Fênix, para resguardar a austeridade
dos costumes e a lei como a "última ratio" da defesa da ordem. O
certo é que Caio Prado Júnior não poderia escapar desse lapso de
liberdade tolerada. E convém reconhecer que, enquanto ela dura,
essa liberdade é seminal. Ela sulca a imaginação, forjando uma insurgência
compensatória de curta duração. Contudo, ela é criadora e deixa
cicatrizes. Estimula muitas leituras e excursões proibidas ou demolidoras:
ainda agora os bacharéis contam entre os universitários que mais
lêem, dentro de um campo de irradiação muito vasto.
Portanto,
suponho que o modernismo e a atividade estudantil tiveram o seu
peso. Mas este não parece decisivo. Diria que contaram como reforço
psicológico à predisposição arraigadamente orientada para o inconformismo
moral (aliás, o ano de 1920, passado no Chelmsford Hall, na Inglaterra,
possui o mesmo significado, pelo avesso: como demonstração do que
é uma sociedade civil civilizada).
Se
a proposição do enigma está correta, a resposta procede de uma ruptura
moral interior. Nós, no interior do marxismo, sentimos alguma dificuldade
em aceitar uma explicação fundada exclusiva ou predominantemente
em uma ruptura moral. Parece que resvalamos para uma centralidade
idealista, que coloca no mesmo nível diversas rupturas convergentes
(ideológicas, sociais, políticas etc). Todavia, há um momento de
crise da personalidade no qual o desabamento de estruturas mentais
se conjuga à busca de outros conteúdos, com uma reorganização completa
de suas bases perspectivas e cognitivas. As tentativas de uma revolução
dentro de linhas radicais (a participação do PD e as expectativas
relacionadas com a "evolução liberal") precipitaram o processo psicológico
e político em outra direção, mais congruente, desvendada pelo Partido
Comunista do Brasil.
Esse
é o significado de uma ruptura plena, pois ela não se confia a certos
fins circunscritos; desencadeia-se e prossegue... O paradigma é
fornecido por Grandhi (mas pode ser inferido de alterações similares,
experimentadas por revolucionários marxistas, como Lênin ou Trosky,
situados nos limites de sua posição de classe de origem). A vantagem
desta interpretação está em que ela permite entender as razões da
consistência de Caio Prado Júnior, quando confrontado pelo partido
(na desobediência ao pragmatismo da disciplina e da hierarquia e,
mesmo, no conflito com as concepções nucleares extramarxistas de
essência e dos rumos da revolução socialista).
Portanto,
não existe uma ligação "mecânica" entre as decepções e a reorientação
política, o entusiasmo militante inicial e a publicação em 1933
(aos 26 anos de idade) do seu livro mais vibrante e, ao mesmo tempo,
o que reclama explicitamente o seu caráter marxista: "A Evolução
Política do Brasil e Outros Estudos - Ensaio de Interpretação Materialista
da História do Brasil".
O
subtítulo continha uma confissão para "escandalizar", um testemunho
de que a ruptura avançara tão longe, que não evocava uma "ovelha
negra" convencional, mas um pensador revolucionário, com quem a
sociedade burguesa teria de se haver. Uma "explosão juvenil", que
precisa ser compreendida no contexto histórico, em termos da concepção
de si próprio e da história sustentada vivamente pelo autor. O livro
resvala por lapsos lógicos, descritivos e interpretativos, que mereceriam
reparos de marxistas experimentados. Mas quem poderia ser, dentro
de nosso cosmos cultural, mais marxista?
Ainda carregamos limitações que somente uma dura e longa experiência
no manejo do materialismo histórico convidaria a ultrapassar. As
contradições não são situações a fundo e não lançam luz sobre o
"inferno" da vida nos trópicos e nas determinações recíprocas que
vinculavam a opressão senhorial à dinâmica da opressão escravista,
de escravos e "homens livres pobres". O "Estado escravista" continuou
de pé, dentro da ótica dos que o viam como um Estado constitucional,
parlamentar e democrático.
No
entanto, "A Evolução Política do Brasil" é um rebento maduro e correspondia,
como obra marxista, aos intentos de Caio Prado Júnior. No patamar
incipiente e mais puro de sua ruptura, ele desenha a versão do Brasil
que animaria suas investigações ulteriores e dá sua respostas aos
membros da classe social dominante e ao PCB, no qual ingressara.
Àqueles, para que descobrissem que construíram e reproduziram, cotidianamente,
a cadeia dentro da qual prenderam e degradaram a sua consciência
social, a condição humana e a ausência de saídas históricas dentro
de falsos padrões de democracia. Ao último, para afirmar-se em toda
a plenitude como um intelectual revolucionário livre, pronto avançar
na conquista da revolução social e na emancipação dos excluídos,
porém dotado de uma faculdade própria de submeter-se à disciplina
e às orientações partidárias. Compartilhava de sua estratégia: reformar,
primeiro; e destruir mais tarde aquele gigantesco presídio, designado
como Estado "moderno". Não obstante, não se prestaria a servir de
peão a qualquer conciliacionomismo ou oportunismo "táticos". O livro
põe em evidência, principalmente no ensaio primordial, qual é o
sentido que carrega e os desdobramentos que exige do autor para
que a construção de uma nova sociedade possibilitasse a criação
de um Estado realmente democrático e aberto aos aperfeiçoamentos
vindos de baixo.
A
obra seguinte, aparecida nove anos depois ("Formação do Brasil Contemporâneo
- Colônia"), adere a outro horizonte intelectual e político. Mais
depurado, como marxista e historiador, propõe-se uma ambição ciclópica:
uma devassa em quatro volumes da formação e evolução do Brasil,
do regime colonial escravocrata à contemporaneidade. Como historiador,
Caio Prado Júnior preocupava-se em cobrir as lacunas da história
descritiva da maioria dos cultores da matéria, e de corrigir as
armadilhas das obras de síntese histórica, algumas de alta qualidade,
que prevaleciam naquele instante. Como marxista, pretendia forjar
uma obra-mestra, que servisse de fundamento para que as correntes
socialistas e democráticas (especialmente o PCB) pudessem formular
uma representação sólida das debilidades, do trajeto e dos objetivos
específicos da revolução brasileira.
Saiu
apenas o primeiro volume que evidencia uma solidez na reconstrução
empírica e uma firmeza nos delineamentos teóricos a que não chega
o livro anterior. Então, tivera tempo de absorver rebentos da transplantação
cultural, medida pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
os quais aproveitou inteligentemente , em particular nas áreas da
geografia e da história. Foi pena que não fizesse o mesmo com referência
à sociologia, pois é aí que refletem as consequências negativas
das omissões ou vacilações mais graves. O talento para combinar
várias disciplinas, entretanto, enriquece o questionamento histórico
e torna a contribuição mais compreensiva e esclarecedora.
A
sociedade colonial e o modo de produção escravista encontram, finalmente,
o intérprete que iria considerá-las como uma totalidade "in statu
nascendi" e no seu vir a ser. Ela não seduziu só os leitores eruditos
e obrigatórios. Impregnou a imaginação histórica de Caio Prado Júnior,
convertendo-o em inventor e propagador de uma visão própria da história
do Brasil. Essa visão estava contida no primeiro livro. Todavia,
é na segunda obra que ela se expande como a fonte de suas grandes
descobertas e a objetivação de seus amplos limites.
No
conjunto aproxima-se mais da história "positiva" que em outras de
suas realizações. O que não impede que elucide, por vezes de modo
definitivo, a problemática específica do nosso mundo colonial. A
começar pelo sentido da colonização e do desmascaramento dos interesses
da metrópole, dos senhores e da grande exploração mercantil, até
o embrutecimento do escravo como coisa e dos mestiços e brancos
"pobres" como excluídos e ralé. Por isso, aí se acham os andaimes
de seus estudos sobre a questão agrária e o capitalismo mercantil,
assuntos que o atrairiam sem cessar, embora não possam ser devidamente
explorados aqui.
O
espaço também não comporta uma discussão, sumária que seja, de sua
"História Econômica do Brasil;" (1945), que o compeliu a observar
o vasto painel de longa duração como foco de referência de problemas
concretos. Se se impuseram algumas correções, estas não tiveram,
contudo, porte para impor uma revisão significativa da concepção
global.
O
seu livro de maior repercussão foi divulgado em 1966 - "A Revolução
Brasileira" - e possui uma importância política excepcional. Contém
um desafio ousado à ditadura. Mas constitui uma reflexão desafiadora
e um repúdio ao mecanicismo "marxista" forjado depois de ascensão
de Stalin ao poder e da influência manietadora da 3a. Internacional.
Nessa
obra, Caio Prado Júnior procede a uma crítica severa dos desvios
de rota da revolução socialista, programados e impostos como uma
deformação do marxismo; o uso invertido e ditatorial do centralismo
democrático; a simplificação grosseira da teoria e das práticas
marxistas da luta de classes e da revolução em escala mundial. Os
países dependentes, coloniais e neocoloniais tinham sido metidos
em um mesmo saco e em uma mesma camisa de força, que pressupunham
que a revolução pudesse ser "unívoca", monolítica, dirigida segundo
uma fórmula única, a partir das diretrizes da 3a. Internacional
e da União Soviética.
Desse
ângulo, o livro retoma o marxismo como processo, que nasce e cresce
por dentro das classes trabalhadoras e na busca de sua autoemancipação
coletiva, através da construção de uma sociedade nova.
O
núcleo de referência vem a ser o Brasil do momento da ditadura militar
e do auge da Guerra Fria. O que impele Cairo Prado Júnior a retomar
os temas de suas investigações, dissertando sobre os marcos coloniais
da dominação econômica, cultural e política da burguesia, a debilidade
dessa burguesia em termos de sua situação histórica, associada e
dependente, e os parâmetros da conquista da cidadania e da democracia
como requisitos da reforma agrária e de outras transformações sociais.
Ele fica exposto a várias críticas teóricas e práticas, inclusive
o da via reformista, gradualista e por etapas da implantação do
socialismo. Não obstante, recupera o entendimento de Marx e Engels
a respeito da revolução permanente, segundo o qual ela é produto
da luta de classes, não de utopias melhoristas ou humanitárias.
Nessa
ocasião, Caio Prado Júnior atingiu o clímax de sua grandeza como
marxista, cientista social e agente histórico. Marchando contra
a corrente, realizou uma síntese da evolução do Brasil e uma revisão
em profundidade de questões concretas, intrínsecas a certos dilemas
políticos, como a reforma agrária. Buscou o alargamento do marxismo
para adequá-lo às condições históricas variáveis de periferia, da
América Latina e do Brasil. E demonstrou como o intelectual, desempenhando
seus papéis e sem transcedê-los pela eficácia de partidos, pode
alcançar o cume de militância exigente e criativa.
Não
carecemos de estar de acordo com ele em tudo para realçar o seu
perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de enfrentar
sozinho os riscos de errar e a repressão política brutal, para admirá-lo
ainda mais dentro e acima de sua produção como historiador, geógrafo,
economista, cultor da lógica e da teoria da ciência, homem de ação
e político representativo
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