Coimbra
guarda relíquias do passado remoto e do presente
FLORESTAN
FERNANDES
Especial para a Folha
As relações dos brasileiros com Portugal são atravessadas por emoções
e pensamentos complicados. Eu próprio sou brasileiro da primeira
geração. Convivi intensamente com a família de meu avós maternos
(na maioria vinda de Portugal); estive sujeito às explosões de verdades
cruas da minha mãe ("saímos de Portugal tangidos pela fome") e pertenci
prolongadamente, com o comandante Sarmento Pimentel, Miguel Urbano
Rodrigues e outros bravos companheiros, ao movimento pela anistia
dos presos políticos de Portugal e de Espanha. Esse movimento criou
laços morais e afetivos profundos, iberizando e aportuguesando ainda
mais o meu modo de ser.
Sem
detratar a metrópole, interpretei de maneira objetivamente crítica
as construções da herança do antigo sistema colonial. Ela nos atou
a uma servidão permanente, à dominação externa e ao monopólio da
riqueza, da cultura e do poder pelos privilegiados. Entretanto,
a revisão sociológica da formação histórica do Brasil não interferiu
na condição de "portuguesinho": quando avistei Lisboa e sobrevoei
a cidade, em 1965, as lágrimas brotaram e logo jorraram impetuosamente,
indo às favas as boas maneiras e o machismo. Ali estava, linda e
luminosa, uma jóia da civilização, que arrasou minha ignorada identidade
lusitana.
Não
existem duas Lisboas no mundo! Mas em Coimbra me envolvi no mesmo
alvoroço. A "cidade dos doutores", de um fato inconfundível e uma
poesia que exalta o complexo de Electra, possui várias histórias
superpostas, apresenta duas fisionomias (com suas partes alta e
baixa) e contém muitas relíquias do passado remoto ou do presente.
Ela mostra que o fascismo salazarista não respeitou nem a morfologia
nem a arquitetura de uma universidade multicentenária. Mas esbarrou
na resistência da duração. Essa resistência ainda não foi estudada
como tal nem pelos arqueólogos e antropólogos nem pelos historiadores.
Contudo, sem levá-la em conta não se explicará nunca porque cada
porção de Portugal - os camponeses em sua faina, as pequenas aglomerações
aldeãs, um almoço em um restaurante ou uma festa, cidades como Lisboa,
Coimbra ou Sintra, mesmo um personagem secundário de ficção, como
o Titó, etc. - transmite a totalidade psicocultural por inteiro.
Em
Coimbra o antigo, o moderno e o pós-moderno não aparecem no que
se preservou, no que se destruiu ou no que se reconstrói passo a
passo, na batalha pela continuidade da vida humana. Eles interagem
no mesmo espaço histórico e mental. São grandes espetáculos: as
galerias romanas; Conimbriga com seu museu, seus monumentos e, em
particular, seus preciosos mosaicos; as igrejas, os conventos, os
aquedutos, as casas e os bairros em subidas e descidas, o Mondego;
os padrões de cortesia; a comida doce e salgada, finíssima, servida
com generidade; a bebida rica e variada, que não se toma fora da
região com o mesmo prazer; as artesanias. Acima de tudo, contam
o sítio urbano e seus arredores, a universidade e o ser humano.
A
universidade granjeou fama e se inscreveu também nas tradições de
saber dos nossos letrados (até a vinda da Corte). Ela foi e é uma
espécie de diamante, engastado em Coimbra. Sob Salazar, essa articulação
sofreu um estilhaçamento. Todavia, ela se ilumina internamente,
por sua renovação e pelo entrelaçamento que vincula seus institutos
e professores com os ritmos do crescimento do saber no exterior
(de que é exemplo seu Centro de Estudos Sociais). O pioneirismo
gravita, pois, na seiva que corre por dentro ou procede dos vínculos
com a revolução da ciência e da tecnologia em nossa era. Isso nos
obriga a constar: a Universidade de Coimbra não "teve sua grandeza"
e tampouco reflete apenas os lucros amealhados. Como a cidade, recria
o seu esplendor.
A
dimensão do ser humano resulta de muitas variáveis. Não tive a oportunidade
de penetrar no horizonte intelectual dos camponeses e dos moradores
pobres da cidade e sua periferia. Conversei com alguns deles. São
desempenados, com olhos abertos para a transformação da sociedade
portuguesa e suas perspectivas. Preocupam-se com a integração ao
Mercado Comum Europeu e com os custos sociais que ela acarreta para
os de baixo. Mas não se intimidam: esperam o nascimento de um "novo
Portugal". Os camponeses permanecem um mistério. Do palácio em que
fui alojado via-os na labuta, mulheres e homens humildes, mal vestidos
e sombrios, ou tocando suas carretas na ida e na volta do trabalho
cotidiano. Poderiam lembrar meus avós, minha mãe ou meus tios? Não.
Seu aspecto não era o de estarem atados à miséria e ao desespero
de buscar além-mar outros destinos. Na roda dos professores e dos
estudantes fervilha um lusismo universalista do intelectual-semeador,
voltado para as suas lides como para os "seus" combates. A "revolução
dos cravos" dissolveu-se. O Mercado Comum pavimenta o caminho do
capitalismo monopolista, com leves compensações sociais-democratas.
Para muitos, no entanto, o socialismo subsiste como aspiração real.
Em Coimbra, os focos dessa disputa concentram-se entre os jovens,
como escolha em vir a ser. Nela, pulsa, como no passado, o coração
de Portugal. Só que, agora, o saber não é fonte de colonização.
Volta-se para a autoemancipação coletiva.
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