WITTGENSTEIN E A VONTADE
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
sábado, 11 de março de 1978.
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Quando
um homem se levanta de manhã, as coisas se passam da seguinte
maneira: ele se pergunta a si mesmo se é realmente hora
de levantar-se, se esforça para tomar uma decisão,
e de repente percebe que está se levantando. Este modo
de descrição torna clara a ausência de um
ato de vontade. Mas, antes de tudo, onde é que podemos
encontrar o protótipo deste ato de representação?
Ou então, como é que se chegou à conclusão
de que as coisas acontecem assim?
Creio que a experiência do esforço muscular constitui
o protótipo do ato de vontade. Ora, alguns elementos dessa
descrição me incitariam a pensar que não
há nada disso. Observe-se bem que uma pessoa não
conseguiria perceber que a gente se levanta do mesmo modo que
se percebe outra pessoa levantar-se. Não se observa, no
primeiro caso, uma série de movimentos sobre os quais não
podemos exercer qualquer controle. Não se observa um ato
reflexo.
Tomemos um exemplo: eu me coloco, de lado, encostado numa parede,
tocando a parede com as costas da mão do braço caído
e, deixando esse braço pendente, pela ação
do músculo deltóide, empurro fortemente a parede
com as costas da mão: se, nesse momento, eu me afastar
de repente da parede, sem me preocupar com meu braço, verei,
sem minha intervenção, meu braço levantar-se
como num movimento próprio.
Só num caso semelhante se poderá dizer com justa
razão: "Percebo que meu braço está
se levantando".
É claro, contudo, que as diferenças são marcantes
e múltiplas. O caso é que, entregando-me a essa
experiência, observo meu braço levantar-se, e o caso
em que olho alguém que se levanta, ou o caso em que vejo
a mim quando me levanto, especialmente neste último caso,
não pode haver elemento de surpresa, e eu, por outro lado,
não observo meus próprios movimentos da mesma forma
que observava os de uma pessoa que vejo virar-se de um lado para
outro em sua cama, dizendo comigo mesmo: "Será
que ele vai se levantar?"
A ação voluntária que eu completo ao levantar-me
é muito diferente desse movimento de meu braço que
se eleva involuntariamente, mas não se descobre entre esses
atos, pretensamente voluntários ou involuntários,
uma diferença singular e única, a presença
ou a ausência do ato de vontade.
A descrição deste ato de levantar-se, no qual uma
pessoa se dá conta de que está se levantando, pareceria
indicar que a pessoa se observa a si mesma no momento em que está
se levantando. É evidente, porém, que a observação
real está ausente. Contudo, não se poderia afirmar
que uma atitude de observação supõe obrigatoriamente
uma tensão de espírito contínua durante todo
o tempo em que dizemos que estamos observando.
Diversas séries de comportamentos e de experiências
podem ser qualificadas como uma atitude de observação.
Poder-se-ia falar, numa simplificação generalizada,
de curiosidade preliminar, de observação atenta
do acontecimento, de surpresa; e se pensarmos em toda a variedade
de expressões do rosto correspondentes a esses três
termos e ao fato de que a observação pode ainda
não ser sublinhada por nenhuma expressão particular,
a multiplicidade dos fenômenos correspondentes nos parecerá
evidente.
Eu declaro: "Quando disse, sem querer mentir: "o
trem parte às 15h30", não aconteceu nada a
não ser a emissão dessas palavras". Poderão
objetar "Aconteceu outra coisa, pois você pronunciou
uma frase sem pensar no que estava dizendo". Posso responder:
"Eu não quis dizer que não existia diferença
entre a palavra significante e a palavra automática ou
mentirosa; mas a oposição entre acreditar e não
acreditar no que uma pessoa diz refere-se a uma infinidade de
casos diferentes, as diferenças acusadas pela diversidade
das circunstâncias, não se aplica a uma diferença
unica, que consistira na presença ou ausência de
um certo estado de espírito."
Examinemos alguns casos característicos de ação
voluntária e involuntária. No caso em que uma pessoa
levanta uma carga pesada, o fato de a carga ser levantada voluntariamente
se caracteriza por diversas sensações de esforço
físico. Compare-se isso com o caso da escritura voluntária,
na qual, geralmente, não se tem essa impressão de
esforço; mesmo se se nota uma certa crispação
dos músculos e se a mão não se fatiga, não
se tem a impressão de um movimento penoso, característico,
pode-se dizer, da ação voluntária...
Compare-se, por outro lado, a maneira pela qual a mão se
eleva quando uma pessoa sustenta um peso, e a maneira pela qual
essa mão se levanta quando, por exemplo, se mostra alguma
coisa situada acima dos olhos. Este gesto será considerado
como um ato voluntário, embora não seja acompanhado
de nenhuma sensação de esforço.
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Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena em 1889 e morreu em Cambridge
em 1951. Fez estudos superiores em Berlim e em Londres, onde, por
influência de Bertand Russel, foi levado ao estudo da Lógica. Seu
primeiro livro, "Tractatus Logico Philophicus", foi escrito em cadernos
de campanha, durante a Primeira Guerra Mundial, e apareceu em 1920.
Sua obra é particularmente importante pela teoria da analise linguística
posta a serviço do pensamento filosófico. Wittgenstein é um filósofo
que interroga e propõe enigmas, e seus livros "Caderno Azul" e "Caderno
Marrom", são, indiscutivelmente, um dos mais belos ecos da filosofia
de Sócrates, especialmente no "Crátilo" e no "Teéteto" de Platão.
É do "Caderno Marrom" o texto que hoje publicamos.
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